sábado, 3 de outubro de 2015

VOLTA ZOLA QUE FAZES FALTA



JOSÉ PACHECO PEREIRA  - Público, opinião

Muita gente se esquece que Zola foi processado, condenado, teve que se exilar e deve ter coleccionado uma das maiores séries de insultos que a língua francesa conhece e muitas ameaças. Mas isso é pouca coisa face às vítimas actuais e futuras do “não há alternativa”.

Um das interrogações que se fazem sobre esta crise nacional e europeia, é onde é que estão os intelectuais, que relações têm hoje os intelectuais com a política, o que é que explica o muito audível silêncio dos intelectuais face às múltiplas violências, dolos, manipulações, injustiças que ocorreram nos últimos anos de “crise”?

É verdade que algumas vozes se fizeram ouvir como as de Krugman, Stieglitz e Pikkety, e a eles podíamos acrescentar, por muito que isso irrite muita gente, Varoufakis. Mas até a escassez destas vozes mostram que a questão permanece em aberto. O papel do intelectual expresso no célebre J’Accuse de Zola, denunciando a perseguição a Dreyfus, ter-se-á extinto? Homens como Raymond Aron, Sartre ou Bertrand Russell, que tinham uma intervenção cívica constante, deixaram de ter sentido? Continua a existir o modelo do “intelectual orgânico” gramsciano?

Não é fácil responder a estas questões até porque as circunstâncias, as personalidades e as causas são muito diferentes e isso muda muito a avaliação que podemos fazer do papel do intelectual na acção cívica e política. Até porque o balanço do século XX não é brilhante quanto aos intelectuais. Se o “caso Dreyfus” criou um arquétipo com a intervenção de Zola, a maioria dos intelectuais do século XX mostrou um fascínio com tudo o que era errado, tudo o que representou um imenso sofrimento para a maioria das pessoas comuns, que era suposto a sua voz proteger. Refiro-me à enorme capacidade de justificação e legitimação que os intelectuais do século XX tiveram com o comunismo e o fascismo. Há excepções, como Thomas Mann ou Orwell, por exemplo, mas são excepções. A regra foi ver os intelectuais na vanguarda da legitimação de regimes e actos iníquos e por razões que são, em muitos, casos “intelectuais”, que tem a ver com a sua função desejada ou presumida.

Por regra, os intelectuais não gostam da democracia, retomando uma muito antiga maneira de pensar que remonta a Platão e às críticas à democracia ateniense, tendo como reverso o fascínio pelo “comunismo” da altura, Esparta. A democracia consolidada retira aos intelectuais o seu papel de oráculo e de “conselheiros “ privilegiados do Rei, ou mais tarde, de intérpretes do sentido da História que tinham nas “vanguardas”. A laicização das sociedades e a crise das teorias teleológicas da História, colocam em causa a possibilidade de um discurso de “revelação” que as torna, ou menos laicas, ou dependentes de um qualquer sentido da história também ele “revelado”. Por tudo isto, a nostalgia de um intelectual “orgânico” numa democracia é não só ambígua como perigosa, como o é a saudade que existe de “utopias”, “projectos”, “destinos” ou mais prosaicamente de “políticas de espírito”, que tendem a menosprezar as liberdades concretas a favor de “amanhãs que cantam” não se sabe muito bem que canção. As sociedades democráticas são menos confortáveis e protegidas quanto a utopias? Sim, é por isso que são também mais livres e que o indivíduo e a felicidade tem nelas maior papel.

Por isso, em democracias consolidadas, com poderes e contrapoderes fortes, em que mais do que os procedimentos do voto, existem “costumes” democráticos, em que nas sociedades existe uma preocupação de diminuir as injustiças sociais e uma visão laica da política em democracia como um contínuo melhorismo do presente, o predomínio do “bem comum”, o intelectual à medida de Zola tem pouco sentido e função. Pode assumir causas, mas essas causas desenvolvem-se numa ecologia de liberdade e de tensão a favor da justiça, da justiça social e por isso, os intelectuais não funcionam, e ainda bem, como poder ou contrapoder. Podemos dizer que sociedades deste tipo são uma excepção e que estão longe de estarem perfeitas, mas uma voz de ruptura tem aí pouco sentido e necessidade, a não ser que haja um soçobrar da racionalidade. A não ser… que seja mesmo a existência dessas sociedades, das liberdades, da democracia plural, do confronto livre de alternativas o que esteja em causa. Então voltamos para traz e precisamos de novo de Zola.

A chamada “crise” que surgiu no sistema financeiro mundial, se estendeu dos EUA para a Europa, gerou depois um subproduto político, que podia não ter surgido, a crise das dívidas soberanas, que se estendeu da Grécia a Portugal, reforçou um poder transnacional europeu que escapa ao controlo democrático, diminuiu as soberanias e lhes estiolou o espaço de liberdade, retirou aos parlamentos nacionais o poder orçamental que os justifica, actua por diktats como se viu na Grécia, fracturou o sistema político entre partidos de primeira e de segunda, logo entre votos que servem e votos inúteis, cavou profundas divisões nas sociedades entre gerações, novos e velhos, e entre empregados e desempregados, coloca em causa a existência de direitos e o principio do contrato social e do estado de boa-fé, gera desigualdades e exclusões, aumentou a pobreza, tornou os trabalhadores em “funcionários” sem direitos e sem garantias, diminuiu as funções sociais do estado e acentuou um estado fiscal com todas as prepotências, que é securitário e intrusivo da liberdade, tornou os mais fortes mais fortes, e deu-lhes o exclusivo “direito á liberdade”, tudo isto e muito mais exige de novo que se “acuse” como Zola fez.

Com esta “crise” surgiu e reforçou-se uma corrente política e ideológica que, não sendo nova e comunicando com muito de uma ideologia da direita dos interesses, ganhou uma enorme agressividade e se associou a mecanismos de poder nacionais e transnacionais. Não estamos a falar de uma ideia, no livre jogo plural das ideias em democracia, mas de um poder e de uma justificação do poder, de uma ideia com armas, que considera as outras uma “irrealidade”, uma “fantasia”, um “conto de crianças”. Não se trata de um “neoliberalismo”, classificação que a descreve mal e ilusoriamente, mas de um sistema de ideias e práticas de poder que tem uma componente perigosamente antidemocrática: refiro-me à ideologia do “não há alternativa”, do “there is no alternative”, da TINA, apresentada como emanação da natureza das coisas, logo como “inevitável”.

A TINA implica a substituição da política em democracia a uma variante débil de marxismo, a subordinação de tudo a uma visão pobre e simplista da economia que funciona como a “infra-estrutura” que é “determinante”, ou seja condiciona a “superestrutura”, a política. É, como já o escrevi, uma forma de marxismo dos imbecis, com o “não há alternativa” e a sua peculiar arrogância de se afirmar como a “realidade”, de que não se pode escapar, quando é assente em escolhas políticas, com o seu neomalthusianismo simplista, que o torna muito parecido com o “socialismo científico” de Engels. O “não há alternativa” é uma ideologia antidemocrática e aqui, de facto, precisamos de vozes que se ergam sem tolerância, nem transigência, em defesa da democracia pluralista, do melhorismo social, de uma política de “bem comum”, assente na justiça social e nas liberdades. E, como no J’Accusede Zola, com nomes dos responsáveis, com nomes dos jornais que serviram a “campanha abominável”, e sem medo da retaliação dos poderosos. Muita gente se esquece que Zola foi processado, condenado, teve que se exilar e deve ter coleccionado uma das maiores séries de insultos que a língua francesa conhece e muitas ameaças. Mas isso é pouca coisa face às vítimas actuais e futuras do “não há alternativa”.

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