JOSÉ PACHECO PEREIRA - Público,
opinião
Muita
gente se esquece que Zola foi processado, condenado, teve que se exilar e deve
ter coleccionado uma das maiores séries de insultos que a língua francesa
conhece e muitas ameaças. Mas isso é pouca coisa face às vítimas actuais e
futuras do “não há alternativa”.
Um
das interrogações que se fazem sobre esta crise nacional e europeia, é onde é
que estão os intelectuais, que relações têm hoje os intelectuais com a
política, o que é que explica o muito audível silêncio dos intelectuais face às
múltiplas violências, dolos, manipulações, injustiças que ocorreram nos últimos
anos de “crise”?
É
verdade que algumas vozes se fizeram ouvir como as de Krugman, Stieglitz e
Pikkety, e a eles podíamos acrescentar, por muito que isso irrite muita gente,
Varoufakis. Mas até a escassez destas vozes mostram que a questão permanece em
aberto. O papel do intelectual expresso no célebre J’Accuse de Zola,
denunciando a perseguição a Dreyfus, ter-se-á extinto? Homens como Raymond
Aron, Sartre ou Bertrand Russell, que tinham uma intervenção cívica constante,
deixaram de ter sentido? Continua a existir o modelo do “intelectual orgânico”
gramsciano?
Não
é fácil responder a estas questões até porque as circunstâncias, as
personalidades e as causas são muito diferentes e isso muda muito a avaliação
que podemos fazer do papel do intelectual na acção cívica e política. Até
porque o balanço do século XX não é brilhante quanto aos intelectuais. Se o
“caso Dreyfus” criou um arquétipo com a intervenção de Zola, a maioria dos
intelectuais do século XX mostrou um fascínio com tudo o que era errado, tudo o
que representou um imenso sofrimento para a maioria das pessoas comuns, que era
suposto a sua voz proteger. Refiro-me à enorme capacidade de justificação e
legitimação que os intelectuais do século XX tiveram com o comunismo e o
fascismo. Há excepções, como Thomas Mann ou Orwell, por exemplo, mas são
excepções. A regra foi ver os intelectuais na vanguarda da legitimação de regimes
e actos iníquos e por razões que são, em muitos, casos “intelectuais”, que tem
a ver com a sua função desejada ou presumida.
Por
regra, os intelectuais não gostam da democracia, retomando uma muito antiga
maneira de pensar que remonta a Platão e às críticas à democracia ateniense,
tendo como reverso o fascínio pelo “comunismo” da altura, Esparta. A democracia
consolidada retira aos intelectuais o seu papel de oráculo e de “conselheiros “
privilegiados do Rei, ou mais tarde, de intérpretes do sentido da História que
tinham nas “vanguardas”. A laicização das sociedades e a crise das teorias
teleológicas da História, colocam em causa a possibilidade de um discurso de
“revelação” que as torna, ou menos laicas, ou dependentes de um qualquer
sentido da história também ele “revelado”. Por tudo isto, a nostalgia de um
intelectual “orgânico” numa democracia é não só ambígua como perigosa, como o é
a saudade que existe de “utopias”, “projectos”, “destinos” ou mais
prosaicamente de “políticas de espírito”, que tendem a menosprezar as
liberdades concretas a favor de “amanhãs que cantam” não se sabe muito bem que
canção. As sociedades democráticas são menos confortáveis e protegidas quanto a
utopias? Sim, é por isso que são também mais livres e que o indivíduo e a felicidade
tem nelas maior papel.
Por
isso, em democracias consolidadas, com poderes e contrapoderes fortes, em que
mais do que os procedimentos do voto, existem “costumes” democráticos, em que
nas sociedades existe uma preocupação de diminuir as injustiças sociais e uma
visão laica da política em democracia como um contínuo melhorismo do presente,
o predomínio do “bem comum”, o intelectual à medida de Zola tem pouco sentido e
função. Pode assumir causas, mas essas causas desenvolvem-se numa ecologia de
liberdade e de tensão a favor da justiça, da justiça social e por isso, os
intelectuais não funcionam, e ainda bem, como poder ou contrapoder. Podemos
dizer que sociedades deste tipo são uma excepção e que estão longe de estarem
perfeitas, mas uma voz de ruptura tem aí pouco sentido e necessidade, a não ser
que haja um soçobrar da racionalidade. A não ser… que seja mesmo a existência
dessas sociedades, das liberdades, da democracia plural, do confronto livre de
alternativas o que esteja em causa. Então voltamos para traz e precisamos de
novo de Zola.
A
chamada “crise” que surgiu no sistema financeiro mundial, se estendeu dos EUA
para a Europa, gerou depois um subproduto político, que podia não ter surgido,
a crise das dívidas soberanas, que se estendeu da Grécia a Portugal, reforçou
um poder transnacional europeu que escapa ao controlo democrático, diminuiu as
soberanias e lhes estiolou o espaço de liberdade, retirou aos parlamentos
nacionais o poder orçamental que os justifica, actua por diktats como se viu na
Grécia, fracturou o sistema político entre partidos de primeira e de segunda,
logo entre votos que servem e votos inúteis, cavou profundas divisões nas
sociedades entre gerações, novos e velhos, e entre empregados e desempregados,
coloca em causa a existência de direitos e o principio do contrato social e do
estado de boa-fé, gera desigualdades e exclusões, aumentou a pobreza, tornou os
trabalhadores em “funcionários” sem direitos e sem garantias, diminuiu as
funções sociais do estado e acentuou um estado fiscal com todas as
prepotências, que é securitário e intrusivo da liberdade, tornou os mais fortes
mais fortes, e deu-lhes o exclusivo “direito á liberdade”, tudo isto e muito
mais exige de novo que se “acuse” como Zola fez.
Com
esta “crise” surgiu e reforçou-se uma corrente política e ideológica que, não
sendo nova e comunicando com muito de uma ideologia da direita dos interesses,
ganhou uma enorme agressividade e se associou a mecanismos de poder nacionais e
transnacionais. Não estamos a falar de uma ideia, no livre jogo plural das
ideias em democracia, mas de um poder e de uma justificação do poder, de uma
ideia com armas, que considera as outras uma “irrealidade”, uma “fantasia”, um
“conto de crianças”. Não se trata de um “neoliberalismo”, classificação que a descreve
mal e ilusoriamente, mas de um sistema de ideias e práticas de poder que tem
uma componente perigosamente antidemocrática: refiro-me à ideologia do “não há
alternativa”, do “there is no alternative”, da TINA, apresentada como emanação
da natureza das coisas, logo como “inevitável”.
A
TINA implica a substituição da política em democracia a uma variante débil de
marxismo, a subordinação de tudo a uma visão pobre e simplista da economia que
funciona como a “infra-estrutura” que é “determinante”, ou seja condiciona a
“superestrutura”, a política. É, como já o escrevi, uma forma de marxismo dos
imbecis, com o “não há alternativa” e a sua peculiar arrogância de se afirmar
como a “realidade”, de que não se pode escapar, quando é assente em escolhas
políticas, com o seu neomalthusianismo simplista, que o torna muito parecido
com o “socialismo científico” de Engels. O “não há alternativa” é uma ideologia
antidemocrática e aqui, de facto, precisamos de vozes que se ergam sem
tolerância, nem transigência, em defesa da democracia pluralista, do melhorismo
social, de uma política de “bem comum”, assente na justiça social e nas
liberdades. E, como no J’Accusede Zola, com nomes dos responsáveis, com
nomes dos jornais que serviram a “campanha abominável”, e sem medo da
retaliação dos poderosos. Muita gente se esquece que Zola foi processado,
condenado, teve que se exilar e deve ter coleccionado uma das maiores séries de
insultos que a língua francesa conhece e muitas ameaças. Mas isso é pouca coisa
face às vítimas actuais e futuras do “não há alternativa”.
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