quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Angola. O MAR DAQUELE DIA...



José Mena Abrantes – Rede Angola, opinião

Quando aqui voltar na próxima quinta-feira já terá sido celebrado o 40º aniversário da Independência Nacional. Poderão alguma vez aqueles que não viveram em Angola durante todo esse período ter a mínima noção do que significam essas quatro décadas para os que aqui sempre estiveram, enfrentando com resignação, esperança ou coragem todos os desafios, crises e carências?

É muito fácil hoje, para quem nasceu em datas mais recentes, se habituou a viver fora do país ou acabou de arribar de latitudes menos gravosas, dedicar-se a criticar a torto e a direito a deficiência de serviços essenciais (educação, saúde, água, luz, saneamento básico, etc.), as limitações a um debate mais aberto e inclusivo nos órgãos de informação públicos, o caos do trânsito, a falta de espaços de lazer e de cultura, etc.

Nós, os que nunca daqui saímos, estamos perfeitamente conscientes de que tudo está muitíssimo melhor do que já esteve em qualquer outra altura (escusam de lembrar a actual crise, eu sei que ela existe!). Podia estar melhor? Claro que sim! Vivemos já no melhor dos mundos possíveis? Claro que não! O melhor dos mundos nunca existiu (a não ser que seja já a Finlândia!), podemos quando muito ir tendendo para ele.

Desses 40 anos, os primeiros 27 foram de agressões e guerras, que provocaram a destruição de quase todas as infra-estruturas económicas (barragens, condutas de água, postes de transporte de energia eléctrica, fábricas, casas, estradas, pontes, linhas de caminho-de-ferro, etc.), a minagem de campos agrícolas, a pilhagem de recursos naturais, o abandono das áreas rurais e o sobrepovoamento das cidades…

Que provocaram, acima de tudo, centenas de milhares de mortos e feridos, a deslocação de cerca de quatro milhões de pessoas dos seus locais de origem, a desagregação das estruturas familiares, a perda de valores estruturantes da personalidade, a degradação do convívio e da solidariedade social, o enfraquecimento da moral e dos bons costumes e o aumento da vulnerabilidade a interesses puramente materiais.

Pretender que em menos de uma década e meia se atinjam níveis de desenvolvimento do Primeiro Mundo, que se anulem desigualdades sociais gritantes, que se garantam quadros de qualidade para todos os serviços e que todos, do cidadão comum ao dirigente, sejam impolutos ou se rejam por normas e preceitos de democracias mais consolidadas, é exigir aos angolanos um estatuto de super-heróis, um sentido ético e uma capacidade de realização que mais nenhum povo do mundo demonstrou ter em tão pouco tempo.

É claro que parte da culpa nos cabe a nós, porque nos consideramos ultra-especiais e adoptamos, em especial diante de estrangeiros, a pose de sermos os ‘melhores’ e ‘maiores’ em tudo: das riquezas naturais às paisagens exóticas; da música à culinária; do basquetebol à dança; das tradições à moda moderna; da ‘macheza’ masculina à beleza feminina, etc. Para além de termos vencido o apartheid e sermos insubmissos a qualquer potência!

Essa postura afirmativa e independente, facilmente confundida com arrogância, gera naturais anticorpos e de certa forma ajuda a explicar a animosidade com que tantos órgãos de informação estrangeiros, em especial portugueses, abordam os assuntos angolanos; o ressabiamento de tantos opinadores ignorantes e o conteúdo, desfasado da realidade ou desactualizado, de tantos relatórios de organismos internacionais ou ONG’s de vocação terceiro-mundista e paternalista.

Os nossos concidadãos mais viajados também não ajudam a dourar um pouco mais a imagem, porque o seu comportamento no exterior do país, especialmente em grupo, quase sempre suscita uma primeira reacção de desagrado, desconfiança ou distância: pela exuberância dos gestos e tom de voz, pela intrusão despreocupada no espaço alheio, pelo estilo provocador e pelo consumo desenfreado e exibicionista.

Paradoxalmente, no entanto, essa primeira impressão negativa quase sempre se transforma em pouco tempo num clima de alegre simpatia e de confraternização descontraída. Isso talvez explique por que razão um relatório das Nações Unidas sobre a Felicidade Mundial (World Happiness), publicado em fins de 2013, considera Angola o mais feliz entre todos os países de África e o segundo, a seguir ao Brasil, entre os de língua oficial portuguesa.

Para essa avaliação, a ONU baseou-se em parâmetros como a expectativa de vida saudável, as percepções de corrupção, a liberdade para fazer escolhas de vida, o apoio social e a solidariedade, a generosidade e o PIB… Nunca tinham ouvido falar nisto? É natural, o relatório foi pouco divulgado porque não dizia mal do país e raros terão lido a minha primeira crónica no Rede Angola, em 1/2/2014, em que falava do assunto.

Mas será que essa classificação se justifica e merecemos mesmo que nos incluam entre os mais felizes? O dramaturgo George Bernard Shaw escreveu um dia: “não temos o direito de consumir felicidade sem produzi-la, assim como não temos o direito de consumir riqueza sem produzi-la”. E achava que existiam duas tragédias na vida: “uma é não conquistar o que o seu coração deseja; a outra é conquistar”.

O angolano contraria duplamente essa tese: por um lado fica feliz quando conquista o que o seu coração deseja. Exemplo: a imagem mais forte que retenho da multidão concentrada na Praça da Independência, na noite de 10 para 11 de Novembro de 1975, é a de um mais-velho humilde que murmurava preces de gratidão para a negrura do céu, enquanto lágrimas de felicidade lhe escorriam pelo rosto enrugado.

Por outro lado, não é por ainda não ter conquistado tudo o que o seu coração deseja que o angolano deixa de estar feliz. A acreditar em Shaw, isso devia ser para ele uma tragédia. Mas esse não é o caso (ONU dixit!) e o angolano é capaz de se rir e de fazer humor da própria desgraça, assim como nos primeiros anos a seguir à Independência dançava feliz, nas farras, músicas que falavam de “morrer em Angola com armas de guerra na mão”…

É esse espírito optimista, essa alegria e gosto pela vida que nesta data gostaria de realçar, dedicando o poema abaixo (incluído na minha peça ‘Amêsa ou A canção do desespero’) a todos os angolanos que continuam a acreditar na certeza da vitória:

Bandeira da Independência

“Pedra a pedra / dente a dente / se afia a lâmina / se constrói a roda… // Gesto a gesto / onda a onda / se desfralda a bandeira / se desdobra a maré… // Estrela a estrela / lua a lua / se ilumina a noite / se reflecte o sol… // E nas praias / enfim libertas / búzios na areia / guardam em si / para todo o sempre / o som maior / do mar daquele dia…”.

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