José
Mena Abrantes – Rede Angola, opinião
Quando
aqui voltar na próxima quinta-feira já terá sido celebrado o 40º aniversário da
Independência Nacional. Poderão alguma vez aqueles que não viveram em Angola
durante todo esse período ter a mínima noção do que significam essas quatro
décadas para os que aqui sempre estiveram, enfrentando com resignação,
esperança ou coragem todos os desafios, crises e carências?
É
muito fácil hoje, para quem nasceu em datas mais recentes, se habituou a viver
fora do país ou acabou de arribar de latitudes menos gravosas, dedicar-se a
criticar a torto e a direito a deficiência de serviços essenciais (educação,
saúde, água, luz, saneamento básico, etc.), as limitações a um debate mais
aberto e inclusivo nos órgãos de informação públicos, o caos do trânsito, a
falta de espaços de lazer e de cultura, etc.
Nós,
os que nunca daqui saímos, estamos perfeitamente conscientes de que tudo está
muitíssimo melhor do que já esteve em qualquer outra altura (escusam de lembrar
a actual crise, eu sei que ela existe!). Podia estar melhor? Claro que sim!
Vivemos já no melhor dos mundos possíveis? Claro que não! O melhor dos mundos
nunca existiu (a não ser que seja já a Finlândia!), podemos quando muito ir
tendendo para ele.
Desses
40 anos, os primeiros 27 foram de agressões e guerras, que provocaram a
destruição de quase todas as infra-estruturas económicas (barragens, condutas
de água, postes de transporte de energia eléctrica, fábricas, casas, estradas,
pontes, linhas de caminho-de-ferro, etc.), a minagem de campos agrícolas, a
pilhagem de recursos naturais, o abandono das áreas rurais e o sobrepovoamento
das cidades…
Que
provocaram, acima de tudo, centenas de milhares de mortos e feridos, a
deslocação de cerca de quatro milhões de pessoas dos seus locais de origem, a
desagregação das estruturas familiares, a perda de valores estruturantes da
personalidade, a degradação do convívio e da solidariedade social, o
enfraquecimento da moral e dos bons costumes e o aumento da vulnerabilidade a
interesses puramente materiais.
Pretender
que em menos de uma década e meia se atinjam níveis de desenvolvimento do
Primeiro Mundo, que se anulem desigualdades sociais gritantes, que se garantam
quadros de qualidade para todos os serviços e que todos, do cidadão comum ao
dirigente, sejam impolutos ou se rejam por normas e preceitos de democracias
mais consolidadas, é exigir aos angolanos um estatuto de super-heróis, um
sentido ético e uma capacidade de realização que mais nenhum povo do mundo
demonstrou ter em tão pouco tempo.
É
claro que parte da culpa nos cabe a nós, porque nos consideramos
ultra-especiais e adoptamos, em especial diante de estrangeiros, a pose de
sermos os ‘melhores’ e ‘maiores’ em tudo: das riquezas naturais às paisagens
exóticas; da música à culinária; do basquetebol à dança; das tradições à moda
moderna; da ‘macheza’ masculina à beleza feminina, etc. Para além de termos
vencido o apartheid e sermos insubmissos a qualquer potência!
Essa
postura afirmativa e independente, facilmente confundida com arrogância, gera
naturais anticorpos e de certa forma ajuda a explicar a animosidade com que
tantos órgãos de informação estrangeiros, em especial portugueses, abordam os
assuntos angolanos; o ressabiamento de tantos opinadores ignorantes e o
conteúdo, desfasado da realidade ou desactualizado, de tantos relatórios de
organismos internacionais ou ONG’s de vocação terceiro-mundista e paternalista.
Os
nossos concidadãos mais viajados também não ajudam a dourar um pouco mais a
imagem, porque o seu comportamento no exterior do país, especialmente em grupo,
quase sempre suscita uma primeira reacção de desagrado, desconfiança ou
distância: pela exuberância dos gestos e tom de voz, pela intrusão
despreocupada no espaço alheio, pelo estilo provocador e pelo consumo
desenfreado e exibicionista.
Paradoxalmente,
no entanto, essa primeira impressão negativa quase sempre se transforma em
pouco tempo num clima de alegre simpatia e de confraternização descontraída.
Isso talvez explique por que razão um relatório das Nações Unidas sobre a
Felicidade Mundial (World Happiness), publicado em fins de 2013, considera
Angola o mais feliz entre todos os países de África e o segundo, a seguir ao
Brasil, entre os de língua oficial portuguesa.
Para
essa avaliação, a ONU baseou-se em parâmetros como a expectativa de vida
saudável, as percepções de corrupção, a liberdade para fazer escolhas de vida,
o apoio social e a solidariedade, a generosidade e o PIB… Nunca tinham ouvido
falar nisto? É natural, o relatório foi pouco divulgado porque não dizia mal do
país e raros terão lido a minha
primeira crónica no Rede Angola, em 1/2/2014, em que falava do assunto.
Mas
será que essa classificação se justifica e merecemos mesmo que nos incluam
entre os mais felizes? O dramaturgo George Bernard Shaw escreveu um dia: “não
temos o direito de consumir felicidade sem produzi-la, assim como não temos o
direito de consumir riqueza sem produzi-la”. E achava que existiam duas
tragédias na vida: “uma é não conquistar o que o seu coração deseja; a outra é
conquistar”.
O
angolano contraria duplamente essa tese: por um lado fica feliz quando
conquista o que o seu coração deseja. Exemplo: a imagem mais forte que retenho
da multidão concentrada na Praça da Independência, na noite de 10 para 11 de
Novembro de 1975, é a de um mais-velho humilde que murmurava preces de gratidão
para a negrura do céu, enquanto lágrimas de felicidade lhe escorriam pelo rosto
enrugado.
Por
outro lado, não é por ainda não ter conquistado tudo o que o seu coração deseja
que o angolano deixa de estar feliz. A acreditar em Shaw, isso devia ser para
ele uma tragédia. Mas esse não é o caso (ONU dixit!) e o angolano é capaz de se
rir e de fazer humor da própria desgraça, assim como nos primeiros anos a
seguir à Independência dançava feliz, nas farras, músicas que falavam de
“morrer em Angola com armas de guerra na mão”…
É
esse espírito optimista, essa alegria e gosto pela vida que nesta data gostaria
de realçar, dedicando o poema abaixo (incluído na minha peça ‘Amêsa ou A canção
do desespero’) a todos os angolanos que continuam a acreditar na certeza da
vitória:
Bandeira
da Independência
“Pedra
a pedra / dente a dente / se afia a lâmina / se constrói a roda… // Gesto a
gesto / onda a onda / se desfralda a bandeira / se desdobra a maré… // Estrela
a estrela / lua a lua / se ilumina a noite / se reflecte o sol… // E nas praias
/ enfim libertas / búzios na areia / guardam em si / para todo o sempre / o som
maior / do mar daquele dia…”.
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