Não
pensei que veria o estado de direito, duramente conquistado, dando lugar a um
estado de exceção e barbárie. Nas favelas e territórios de periferia, o
encontro entre jovens negros e a polícia pode sempre ser fatal
Átila
Roque - Ponte Jornalismo, Rio de Janeiro – em Correio do Brasil, opinião
Não
dá para saber se falta uma ou duas gotas, mas o caldo está prestes a entornar.
A chapa está quente, a paciência se esgotou, a tristeza, a sensação de
injustiça é muito grande. A dor e a raiva produzem ódio. E o ódio não mede
esforços nem recua diante de nada. Nossa frágil democracia se encontra ameaçada
pelo espírito mesquinho, egoísta e racista que ainda viceja em nossa sociedade,
incapaz de reagir e se indignar diante da violência seletiva que acomete
milhares de jovens Brasil afora.
enho
experimentado um sentimento de vergonha por ser parte de uma geração que tendo
apanhado da polícia nos estertores da ditadura não conseguiu deixar como legado
para os nossos filhos um Estado que coloque a defesa da vida e dos direitos de
todas as pessoas em primeiro lugar. Não pensei que veria o estado de direito,
duramente conquistado, dando lugar a um estado de exceção e barbárie.
Uma
parte significativa da sociedade brasileira, em particular as classes médias e
altas, têm convivido como se não lhe dissesse respeito, com a violência de uma
polícia covarde que espanca adolescentes que protestam contra fechamento de
escolas, como presenciamos nos últimos dias em São Paulo; e mata outros nas
periferias de nossas cidades pelo simples fato de serem jovens e negros.
Precisamos encarar de frente que a violência e o racismo continuam a fazer
parte do sistema de práticas e valores que sustentam as desigualdades e regulam
as relações de poder na sociedade brasileira.
O
mito do país pacífico e racialmente democrático faliu faz tempo, mas ainda não
foi devidamente exposto e admitido pela sociedade. Não gostamos do que vemos
quando nos olhamos no espelho. O sistema de justiça e segurança pública cumpre
o papel de reguladores da ordem e são os principais operadores de um sistema
que se esmera em garantir que cada um saiba qual é o seu lugar e que não ouse
reivindicar o direito à mobilidade social e espacial não autorizada.
A
tragédia que se abateu sobre Wesley, Wilton, Roberto, Carlos Eduardo e Cleiton,
os jovens e adolescentes negros assassinados por policiais no Complexo da
Pedreira, em Costa Barros, na zona norte do Rio de Janeiro, não foi um caso
isolado. Nas favelas e territórios de periferia, o encontro entre jovens negros
e a polícia pode sempre ser fatal. Estamos diante de uma rotina em que a
polícia adentra as periferias e favelas com a disposição de matar. A quantidade
de tiros no carro em os rapazes se encontravam não deixa dúvidas sobre a
intenção dos policiais. Estes cinco jovens foram executados brutalmente em
nosso nome, não tenhamos ilusões, com armas e farta munição de guerra (111
tiros) financiada pelos nossos impostos. O pretexto da guerra contra o tráfico
se presta a que estados de exceção de direitos sejam, na prática, decretados
nesses territórios sob o olhar complacente da mídia, das autoridades e boa
parte da sociedade.
É
duro dizer isso sabendo que o preço pago por muitos policiais também é alto. Em
certa medida podemos dizer que os profissionais de segurança pública que tem,
com muita frequência a mesma origem social desses jovens, morrem em uma escala
muito alta, assassinados simplesmente por serem policiais. A grande maioria, no
entanto, fora de serviço. O ciclo de violência e a engrenagem da guerra torna a
vida do policial tão descartável quanto a dos jovens que morrem em suas mãos,
uma realidade somente comparável a situações de guerra. Mas não estamos em
guerra e mesmo a guerra tem regras.
Há
poucos meses, a Anistia Internacional lançou o relatório “Você matou meu filho
– Homicídios cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro”. A pesquisa
indica que nos últimos cinco anos, os autos de resistência representaram em
média 16% do total de homicídios cometidos na capital fluminense. Em 2012 os
homicídios decorrentes de ações de policiais em serviço chegou a representar
cerca de 20% do total de homicídios. Sob qualquer ponto de vista estamos diante
de um escândalo ético e de um retrato dramática da falência sistêmica do
sistema de segurança pública.
A
mesma pesquisa apontou o perfil das vítimas dos homicídios decorrentes de
intervenção policial no Rio de Janeiro: 99,5% homens, 79% negros e 75% jovens.
A área de segurança pública (AISP) responsável pela maior quantidade de mortes
foi justamente a do 41º Batalhão da Polícia Militar, o mesmo ao qual pertencem
os policiais acusados de executarem com 111 tiros os cinco jovens que tiveram a
ousadia de transitar pela cidade e ultrapassar os “muros” nem tão invisíveis
que os condenava a não sair de seus territórios.
O
Brasil vive um estado de emergência. Estamos a ponto de perder a oportunidade
histórica de acolher a potência da juventude das favelas e das periferias para
criar um país mais generoso e justo. Não é favor, mas direito. E vai ser
reivindicado de uma maneira ou de outra. A expectativa e a aspiração à
igualdade avançou e não será interrompida. Ou paramos e damos uma resposta
agora ou será tarde demais. A panela não vai aguentar muito tempo essa rotina
de brutalidade e humilhação.
A
História, sempre ela, certamente um dia cobrará o silêncio cúmplice da
sociedade diante
desse verdadeiro extermínio. E, espero, os nossos netos ou bisnetos pedirão
desculpas pela inacreditável apatia de seus avós e bisavós que conseguiam
dormir enquanto lá fora ocorria um massacre.
*Átila
Roque é historiador e diretor executivo da Anistia Internacional.
Sem comentários:
Enviar um comentário