Como
os mares puderam retardar o aquecimento global. As consequências: acidez,
declínio dos corais, cardumes despovoados. A questão: agir já, ou enfrentar o
imprevisível
Jean-Pierre
Gattuso e Alexandre Magnan – Outras Palavras - Tradução: Inês
Castilho - Imagem: Sebastião
Salgado
A
massa de água que recobre mais de dois terços do planeta funciona como um
“integrador do clima” e limita a extensão das mudanças climáticas por dois
motivos principais. De um lado, absorve a quase totalidade do calor que se
acumula na atmosfera: os oceanos armazenaram 93% do excesso de calor provocado
pelo aumento de gases de efeito estufa (1), ao preço de seu próprio aquecimento
e elevação dos níveis do mar, principalmente através da expansão e derretimento
da camada de gelo da Groenlândia. Por outro lado, os oceanos capturam uma
parcela significativa (28% desde 1750) de dióxido de carbono (CO²) gerado por
atividades humanas, desta vez à custa do aumento da acidez da água do mar.
Uma
função reguladora
Os
oceanos exercem essa função reguladora em detrimento de si mesmos, pois se
deterioram à medida em que atenuam as mudanças climáticas. Menos espetaculares
que a elevação do nível dos mares, as perturbações físicas e químicas que
resultam disso afetam consideravelmente os ecossistemas marítimos e,
consequentemente, a humanidade inteira. O aquecimento e a acidificação dos
oceanos tornam mais difícil a calcificação essencial de alguns organismos
marinhos (corais, moluscos); muitos recifes de coral ficam esbranquecidos pela
destruição da simbiose que eles têm com zooxantelas; os fitoplânctons diminuem
em regiões mais quentes; a cadeia alimentar dos peixes é perturbada; algumas
espécies têm de migrar para regiões mais frias, mas nem todas podem fazê-lo …
Contudo,
a despeito do papel crucial dos oceanos para a segurança alimentar de centenas
de milhões de indivíduos, as discussões internacionais conduzidas sob a égide
da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas não lhes
concederam senão um papel menor (leia o dossiê do Le Monde Diplomatique francês,
“Como
evitar o caos climático?“). É por isso que os pesquisadores (2) reunidos na
Iniciativa Oceanos 2015 (3) enviaram aos negociadores da conferência de Paris
um resumo das alterações em curso e as projetadas daqui até o final do século,
com suas consequências para os ecossistemas do oceano ou para os bens e
serviços que eles prestam. Dois cenários foram levados em conta: a manutenção
das emissões de gás de efeito estufa segundo a curva ascendente atual –
hipótese pessimista – ou sua redução, de maneira a limitar a alta da
temperatura do planeta a 2°C no decorrer do século XXI – hipótese otimista.
Impactos
irreversíveis
Além
da limitação estrita das emissões de CO², a “comunidade internacional” deve
assegurar a proteção dos ecossistemas marinhos e costeiros, a restauração
daqueles que foram danificados, e permitir que as sociedades que dependem dos
recursos marinhos se adaptem. Algumas dessas medidas já foram objeto de
experimentação em nível local, mas a margem de manobra se estreita à medida em
que o mundo se afasta do objetivo dos “+ 2°C” e os oceanos se aquecem e se
acidificam. Por exemplo, quanto mais os recifes de coral são degradados, menos
eles serão capazes de resistir, e mais difícil será salvá-los. Outras pistas
são contraditórias, como as chamadas técnicas de “gestão da radiação solar”,
que propõem reduzir artificialmente o aquecimento global, aumentando a quantidade
de radiação refletida para o espaço: uma solução que pode frustrar os
incentivos de redução de emissões de CO² e, no entanto, não fornece qualquer
solução para a acidificação dos oceanos.
Do
inventário preparado pela iniciativa Oceanos 2015 surgiram quatro mensagens
principais. Em primeiro lugar, os oceanos exercem uma influência decisiva sobre
o sistema climático e a prestação de serviços humanos essenciais. Em seguida,
os ecossistemas marinhos e costeiros já estão sofrendo de uma degradação em
grande parte visível que não deixará de se agravar, mesmo no pressuposto
otimista de uma redução das emissões globais de CO² – especialmente porque, o
que quer que aconteça, os danos infringidos aos mares serão sentidos em todas
as latitudes, tornando-se um problema global. Em terceiro lugar, uma limitação
imediata e substancial de gases de efeito estufa, incluindo as emissões de CO²,
é um pré-requisito para evitar que excedam os limites de impactos irreversíveis
para os oceanos. Todo tratado que não permita limitar o aquecimento global a
2°C conduzirá a consequências catastróficas para os nossos oceanos. Por último:
quanto mais aumenta o teor de CO² na atmosfera, menos teremos meios para
proteger os oceanos e restaurar ecossistemas degradados.
Projeto
de civilização
Sabendo
o espaço mínimo que foi concedido aos oceanos em cúpulas internacionais
anteriores sobre o clima, os autores desta síntese defendem uma mudança radical
de perspectiva: a COP21 deve finalmente tomar as medidas necessárias e propor
projeto de civilização mais virtuoso para o mundo de amanhã. O futuro dos
oceanos depende da quantidade de carbono que será emitido nas próximas décadas.
O cenário otimista, o mais obrigatório, consiste em dividir por seis a
quantidade de CO² que seria emitida até o final deste século sob a hipótese de
uma ausência de regulamentação (cenário pessimista). Essa limitação deve mesmo
ser reforçada, uma vez que a capacidade dos oceanos para absorver CO² será
reduzida ao longo do tempo. As escolhas feitas durante a COP21 terão, portanto,
graves consequências para os oceanos.
De
acordo com os cenários, a taxa de acidez poderia ter crescido entre 38% a 150%
entre a revolução industrial e o final deste século, enquanto os níveis médios
dos oceanos poderiam ter subido um total de 60 a 86 centímetros entre 1901 e
2100. Por fim, o índice de oxigênio dos oceanos não vai parar de cair, de modo
mais ou menos acentuado, dependendo do cenário a ser seguido, afetando a vida
marinha em todas as suas formas.
Os
corais tropicais já estão severamente afetados pelo aquecimento e a
acidificação, bem como plantas marinhas de latitudes médias, pteropodes
(caracóis marinhos) e krills (plânctons formados de crustáceos de altas
latitudes, os moluscos bivalves de baixas latitudes e peixes em geral. Na hipótese
mais favorável, o estado dos corais tropicais e dos bivalves de latitudes
médias permanecerá muito preocupante. No entanto, no caso de continuidade das
emissões de CO² no ritmo atual, o aquecimento teria um impacto desastroso sobre
todos esses organismos, com migrações em grande escala, mortalidade em massa e
uma redução da biodiversidade marinha na zona intertropical. Estes resultados,
a partir do cruzamento de experiências, observações de campo e projeções do
modelos, estão em consonância com a orientação fornecida pelo estudo de outros
períodos da história do nosso planeta marcados por forte presença de CO² na
atmosfera – em especial relacionada à atividade vulcânica.
Uma
fonte vital de renda
As
consequências dessas mudanças dos ecossistemas marinhos seguiriam também uma
trajetória mais ou menos nefasta, segundo o cenário escolhido. Se o ritmo atual
das emissões de gases de efeito estufa se mantém, a pesca será seriamente
comprometida, particularmente na zona intertropical, onde constitui uma fonte vital
de proteínas e de renda para milhões de pessoas. Os impactos seriam igualmente
tremendos sobre os ecossistemas costeiros, que servem para proteger a terra
(recifes de corais, mangues, plâncton vegetal), a aquicultura e o turismo.
Os
danos gerados pelo aquecimento, a acidificação e o aumento do nível dos mares
sobre os organismos e os ecossistemas marinhos, assim como sobre os recursos
que eles encerram, são desde já detectáveis e podem ser significativos, mesmo
no caso do cenário otimista. Eles se somam a outros danos causados pelo homem,
tais como a sobre-exploração dos recursos vivos, à destruição do habitat e a
poluições diversas. A combinação de todos esses fatores pesará fortemente sobre
o futuro da humanidade. Diante da magnitude das futuras alterações, é hora de
perceber que nenhum país está imune: o problema se coloca numa escala demasiado
grande para que se ofereça o luxo de manter a tradicional divisão Norte-Sul.
Jean-Pierre Gattuso & Alexandre Magnan são respectivamente
diretor de pesquisa na Universidade Pierre e Marie Curie Paris 6, e geógrafo,
pesquisador no Insituto de desenvolvimento sustentável e relações
internacionais.
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