quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Portugal. DEMOCRACIA E AUDÁCIA



Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

Aquilo que a Direita tem discutido, dentro e fora da Assembleia da República, é a questão da legitimidade do Governo: um Governo minoritário do Partido Socialista que conta com o apoio da maioria parlamentar. Trata-se, com flagrante evidência, de um falso problema. Na perspetiva do direito constitucional, da ciência política e do mais elementar bom senso - como aliás é reconhecido pelos espíritos mais lúcidos, até à direita do espetro político-partidário - não subsiste a menor dúvida sobre a correção da solução governativa que por fim foi assumida, embora a contragosto, pelo próprio Presidente da República.

As democracias constitucionais, na diversidade de modelos em que se materializaram, exprimem um esforço de aproximação pragmática a uma ideia utópica: a abolição da diferença entre governantes e governados, traduzida no princípio constitucional da "soberania popular". No lugar da abolição dessa diferença inscreve-se o princípio da representação democrática, como forma de garantir que o Governo corresponda à vontade popular expressa através do voto livre de todos os cidadãos e que, não podendo satisfazer a totalidade das preferências expressas, desfrute, ao menos, do apoio da maioria dos representantes eleitos. É assim que operam as democracias representativas, através de sucessivas reduções, pela conversão dos votos em mandatos e substituindo o consentimento unânime pelo debate livre e a vontade da maioria.

Não se compreende por isso a insistência da coligação de Direita na tese da "ilegitimidade" deste Governo nem a denúncia de uma suposta "fraude" que não se vislumbra que possa significar outra coisa senão a confissão desesperada do seu próprio fracasso. Contudo, por razões de coerência lógica já se compreenderá que se tenham sentido obrigados a apresentar agora uma moção de rejeição do programa do Governo, ainda que não passe de mais um exercício pungente de autoflagelação. Tendo-se obrigado a fazê-lo, porém, poderão finalmente alcançar o pretexto e a oportunidade para se resignarem às regras de funcionamento dos sistemas democráticos e assim abandonar, em definitivo, os argumentos subversivos e irracionais a que têm recorrido, ditados por sentimentos muito pouco recomendáveis.

Foram precisos 40 anos para que o Parlamento assumisse, por fim, a plenitude da sua dimensão democrática. Foi necessária a experiência trágica destes quatro anos da governação mais reacionária de toda a nossa história democrática para que a Esquerda se reconciliasse, se entendesse e unisse em torno de um projeto de governo capaz de responder às aspirações profundas e prementes dos seus eleitores. Embora não lhes sirva de justificação, é verdade que este "prodígio" cegou não só a coligação de Direita e o seu Presidente, como afetou toda uma multidão de "especialistas" e "comentadores" que apenas recentemente começou a descortinar a inevitabilidade da nova realidade política que emergiu no nosso quotidiano político. Como afirmou António Costa perante o Parlamento, este é um "novo começo". Um "novo começo" que vai continuar a requerer a mesma coragem e determinação inabalável que permitiu a construção desta aliança inadiável.

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