RESUMO: Aos
16 anos, o angolano Crispim Calonge entrou sozinho em um avião sem saber o
destino. Ele fugia da guerra civil que assolava seu país praticamente desde que
tinha nascido. Parou na Itália e percorreu quase 20 países até chegar ao
Brasil. Viveu nas ruas de São Paulo por nove meses, inclusive já aluno da USP.
Hoje, empresário na área de idiomas, dá aula aos refugiados.
Até
hoje esse episódio causa um certo desconforto na minha família. Tinha 16 anos e
fui com meu irmão mais novo e minha mãe vender cerveja em Dundo, Angola.
Avistei
um avião de resgate de estrangeiros e decidi entrar. Era 1990, no meio da
guerra civil. Tudo o que a gente queria era fugir. Perdi meu irmão de vista e
avisei a minha mãe que iria embora.
Entrei
na aeronave falando inglês para fingir que era estrangeiro. Pediram meu
passaporte. Mas respondi que estávamos na guerra e que não tinha documentos.
Entrei
sem saber para onde estava indo. O avião parou em Malta, na Itália, onde vivi
como refugiado.
Sou
das tribos Luba [Congo, de onde vieram meus pais] e Tchokwé [Angola, onde
nasci]. Lá, falávamos tchiluba, kimbuldo, umbundo e outras línguas africanas,
além do francês e do português. Hoje falo 12 idiomas.
O
inglês que me tirou de Angola aprendi na igreja. Minha mãe é católica, os
padres me ensinaram inglês. Hoje sou ateu, mas respeito todas as religiões. Na
"Terra Nova" [centro de acolhida para refugiados], dou aula para
budista, católico, muçulmano. Respeito a todos e peço que façam o mesmo. Foi o
desrespeito que fez com que eles deixassem o país deles, não podemos repetir o
erro.
Depois
da Itália, voltei para Angola, mas a guerra continuava e saí de novo com o
pretexto de fazer direito em uma universidade da Rússia.
Como
as aulas eram em russo, tive que me virar. Em uns quatro meses estava
conseguindo falar. Em uns 15 dias tinha uma namorada russa [risos]. Eu era
diferente por ser negro, mas não sofri preconceito. Alguns até me tocavam de
curiosidade.
Cheguei
ao Brasil em 1995, depois de morar em países do Leste Europeu e nos Estados
Unidos, trabalhando como professor e garçom. Vim para a Bahia, depois me mudei
para São Paulo, com R$ 150 no bolso. O dinheiro acabou e aí conheci a pobreza.
Morei
na rua por nove meses, embaixo da ponte Eusébio Matoso [zona oeste da cidade].
Vivi lá mesmo depois de entrar em letras na USP. Tomava banho no CPUSP [Centro
de Práticas Esportivas da USP] e ia para aula. Depois voltava e dormia na rua.
Com
uma namorada brasileira, mãe do meu filho mais velho, Oluwasheun
["obrigada Deus", em tchiluba; ele também tem uma filha bebê chamada
Ayodele, que significa "alegria que chegou em casa"], passei a morar
no Crusp [moradia estudantil].
Quando
entrei na USP, a gente era barrado na porta com um "pois não?" Eu
respondia que estava indo para a aula. Preconceito racial mesmo eu conheci no
Brasil.
É
aqui que entro em um restaurante com a minha mulher e o garçom me pergunta se
eu sei o preço dos pratos. Minha empresa de idiomas oferece aulas para 370
alunos. São executivos e chefes. Nenhum deles é negro.
Minha
família se espalhou pela Europa na guerra, mas quase todos voltaram para Angola
[o conflito acabou em 2002]. Não sinto vontade de voltar. Sou "do
mundo".
Ganho
dinheiro com a empresa, mas duas vezes por semana dou aula de português aos
refugiados. Faço por obrigação moral. Se viver no Brasil é difícil, imagina
para quem larga tudo e chega aqui sem falar português?
Existem
mais lugares em paz do que em guerra. Acredito na bondade das pessoas.
Sabine
Rightti - Folha de S- Paulo - Diego
Padgurschi /Folhapres
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