quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A HARPA E A KORA



 Rui Peralta, Luanda

As grandes capitais e principais cidades do mundo estão a ser culturalmente (e socialmente) redesenhadas para que impere o modelo oligárquico predominante. Nelas a capacidade dos governos nacionais e locais para determinar a sua gestão e as suas políticas estão em queda livre, enquanto a influência das estruturas privadas oligárquicas (os oligopólios globais) e das instituições “globais” capitalistas (FMI, Banco Mundial, etc.) é crescente e predominante. 

Em pleno século XXI surgem restrições legais que impedem o cosmopolitismo e geram uma fobia, um medo á miscigenação, ao estabelecimento de pontes e de pontos de contacto e diálogo entre culturas e formas de estar e viver. Estas medidas agudizam-se com o destroçar das políticas municipais e com a transformação das cidades em grandes espaços de ausência da cidadania, espaços mortos, onde o exercício da cidadania é substituído pela mais completa alienação dos sentidos e do pensar.

Que ainda existem cidades insubmissas, insurrectas a esta ordem oligárquica desta fase senil do capitalismo, é fácil de comprovar, bastando olhar para Madrid e Barcelona, sempre combativas, seja contra os transgénicos, seja contra a carestia, seja pela autonomia, ou para as cidades gregas que recusaram pagar as sobretaxas dos serviços de distribuição pública de electricidade, ou para New York, Torino, Milão, Ramallah e tantas outras onde os espaços da cidadania teimam em manifestar-se e em fazer-se sentir. As formas de vida metropolitana são modos políticos e económicos democráticos articuláveis e que interagem permanentemente, gerando novas formas de sociabilidade e de socialização.

A participação cidadã é condição básica da democracia e da gestão democrática da cidade, o que implica a sua construção, o seu alargamento, a sua expansão, o processo de democratizar a informação que a própria cidade gera, a transformação das suas leis, a sua autonomia como espaço democrático na sociedade democrática e no Estado Democrático. A cidade como espaço urbano onde se desencadeiam processos criativos e transformadores, de movimentos sociais e políticos, de cooperação económica, um espaço onde o mercado tenha a sua esfera de actuação, ao lado das outras esferas da vida urbana democrática (a esfera da gestão dos assuntos públicos e a esfera privada da vida de cada um dos indivíduos) e seja livre, mas não alienante e alienatório.

Que todas as cidades sejam cidades-mundo será um caminho longo mas inevitável em termos das batalhas da cidadania pela democracia e por uma melhor qualidade de vida urbana, integrada nos espaços naturais e nos ecossistemas que as rodeiam ou sobre os quais foram construídas. Este é um modelo que choca frontalmente com a “smart city” do actual modelo capitalista oligárquico, cidade baseada na tecnologia proprietária e na vigilância total das câmaras escondidas ou cinicamente assinaladas por um aviso “sorria, está a ser vigiado”, as cidades sem privacidade, sem indivíduos, constituídas por uma massa disforme de multidões alienadas, as cidades sem cidadania.

Este modelo de cidade não participada, totalitária e antidemocrática, de cidade fechada, sem espaços verdes e sem socialização, é o modelo preferido pelos grandes oligopólios. Este modelo quando transaccionado do centro para as periferias económicas do mundo é efectuado através do baixo custo. Nasce, assim, através das relações imperialistas impostas pelos processos hegemónicos que atravessam as dinâmicas da economia-mundo (dominada pelas relações capitalistas) a cidade-lixo do terceiro e quarto mundo, a cidade construída pela miséria gerada pelo colonialismo e gerida pela submissão neocolonial. Aqui a ideia de cidadania roça o absurdo, o projecto de qualidade de vida torna-se uma cavalgada quixotesca, onde os moinhos de Cervantes – monstros aos olhos iludidos de Quixote - são substituídos pelos edifícios-escritórios da ilusão. Esta concepção de cidade neocolonial é o conceito dominante de espaço urbano nesta África periférica em luta constante pelo seu desenvolvimento.

Em contrapartida nas metrópoles do centro os oligopólios tentam impor os seus ditames soberania popular, asfixiando a gestão democrática e as alternativas cidadãs, ou mesmo interferindo de forma intensa no mercado livre, conforme acontece com a actual questão do desbloqueio dos iPhones da Apple. É o fim da privacidade (uma das maiores conquistas da humanidade), uma guerra travada em segredo pelas oligarquias contra a cidadania. É o medo explorado pelos sectores dominantes do capital, o medo ao terrorismo, o medo á abertura, o medo á liberdade e á democracia, o medo de conhecer o Outro e o Mundo. O medo que as oligarquias provocam, propositadamente, financiado o terrorismo e preparando o caminho para a nova visão totalitária do seu domínio, o medo já ensaiado através de séculos pelas tiranias dos Impérios, pelo colonialismo, pelos fanatismos religiosos, pela ignorância, pelo fascismo….O medo de perder os meios de subsistência, como acontece nas relações de domínio na esfera económica da vida das sociedades…o medo de viajar, devido á bomba escondida, ou á policia que dificulta…o medo ao refugiado, ao emigrante, ao estrangeiro…A fobia do medo e a paranóia da vigilância, eis os fundamentos primários das oligarquias capitalistas.

Ao modelo de cidade que representa este modelo de terror opõe-se a cidade onde a harpa e a kora, dois instrumentos musicais de duas culturas, dois instrumentos que juntam o Pais de Gales á África Ocidental, a harpa dos bardos e a kora do Império Mandingo, que abarcava o que é hoje o Senegal, o Mali, a Guiné-Bissau e a Guiné-Conacri, o Burkina Faso, o Togo e o Benim. A kora foi oferecida pelos deuses aos habitantes do Império Mandingo, segunda a lenda, embora os registos mais antigos do instrumento tenham 3 séculos, A harpa era instrumento antigo, do Olimpo e dos romanos, do Oriente e dos celtas. E quando estes dois instrumentos se cruzam nas cidades do mundo, implicam o encontro de dois músicos, como aconteceu entre a harpista galesa Catrim Frinch e o tocador de kora senegalês Sechou Keita.

E como é bonito, o som e o acto, deste cruzamento…alcança a sua beleza um significado para a Humanidade; a de um mundo em perpétua transformação, em perante transmigração, que avança, passo-a-passo, para se transformar num mundo melhor….

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