Aline
Gatto Boueri, Buenos Aires – Opera Mundi
Para
Leandro Morgenfeld, Obama tentará posicionar Macri como referente de direitos
humanos na região e assim debilitar governos não alinhados aos EUA
Barack
Obama e Mauricio Macri protagonizam nesta quarta-feira (23/03) um encontro
bilateral que não acontece há 20 anos na Argentina. Desde que, em 1997, Bill
Clinton (1993-2001) visitou Carlos Menem (1989-1999), nenhum presidente dos EUA
voltou ao país sul-americano em caráter de visita de chefe de Estado.
A
última vez que um mandatário dos EUA veio à Argentina foi em 2005, quando
George W. Bush (2001-2007) participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del
Plata, de onde partiu sem consolidar a Alca (Área de Livre Comércio das
Américas), que seus antecessores tinham promovido na região durante a década de
1990.
Em
meio ao aniversário de 40 anos do golpe de Estado que inaugurou uma ditadura
militar na Argentina, em 24 de março, a visita de Obama foi criticada por
organismos de direitos humanos. Para alguns, a presença do mandatário
norte-americano em data tão sensível, quando seu país é acusado de patrocinar e
promover a última ditadura militar (1976-1983), é uma provocação.
Para
Leandro Morgenfeld, é também parte de uma nova estratégia, que busca posicionar
Mauricio Macri como referente de direitos humanos na região e, como
consequência, debilitar governos não alinhados aos EUA, como o venezuelano. O
doutor em História e pesquisador do Conicet (equivalente ao CNPq brasileiro) é
autor dos livros “Relações Perigosas - Argentina e Estados Unidos” e “Vizinhos
em Conflito - Argentina e Estados Unidos nas Conferências Panamericanas”.
Em
conversa com Opera Mundi, Morgenfeld explica como a aproximação entre os
dois países pode afetar a economia da região com a transformação do Mercosul e
a ofensiva contra o avanço chinês. Leia abaixo os principais trechos da
entrevista.
Opera
Mundi: A última vez que um presidente dos EUA veio à Argentina foi em 2005,
quando George W. Bush participou da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata.
Naquele momento, os países da América Latina rejeitaram a proposta
norte-americana para a criação de uma área de livre comércio no continente, a
Alca. O que se pode esperar da visita de Obama, 10 anos depois?
Leandro
Morgenfeld: Em outubro de 2015, depois de longa negociação secreta
liderada pelos EUA, surgiu o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP,
nas siglas em inglês), que inclui 12 economias de Ásia, América e Oceania, sem
a China. Juntos, seus integrantes (EUA, Japão, Austrália, Nova Zelândia,
Malásia, Brunei, Cingapura, Vietnã, Canadá, México, Peru e Chile) representam
entre 35% e 40% do comércio internacional, logo, esse é um dos acordos de livre
comércio mais importantes do mundo. Nenhum dos países do Mercosul faz parte
dele.
Hoje,
parte da política de EUA para a região tem a ver com conter o avanço chinês e
impulsionar que os países se integrem ao TPP, então é óbvio que esse tema está
na agenda do encontro bilateral entre Mauricio Macri e Obama.
OM:
Quais poderiam ser as consequências econômicas para a região e para os países
do Mercosul caso se concretize um acordo de livre comércio entre Argentina e
EUA?
LM: As
consequências podem ser uma debilitação do Mercosul ou a mudança no sentido do
Mercosul. O bloco pode deixar de ser o motor de integração regional para
recuperar o que se chamou de “regionalismo aberto” nos anos 1990, ou seja,
pensá-lo como trampolim para algumas transnacionais latinas, que poderiam
exportar mais. Em contrapartida, haveria cessão de controle do mercado interno.
Nesse cenário, muitas pequenas e médias empresas da região teriam que competir
com transnacionais dos EUA em meio a uma menor regulação estatal. Supor que um
acordo de livre comércio é equiparável para economias tão distintas como as de
EUA e Argentina ou qualquer país do Mercosul é não entender que essa assimetria
define quem serão os ganhadores e os perdedores. Não é possível acreditar que
uma empresa argentina possa ter melhor acesso ao mercado interno
norte-americano por causa do TPP, salvo um punhado de 5 ou 6 empresas que já
estão transnacionalizadas. Mas, sim, é possível pensar em empresas
norte-americanas que tenham melhores condições para participar no mercado
interno argentino.
Também
pode abrir possibilidade de novas privatizações, talvez não como nos anos 1990,
mas que a participação do Estado seja limitada. Ou provocar a
desindustrialização nos países sul-americanos, com o avanço de empresas de
capital norte-americano, e também piores condições para trabalhadores desses
países. E não somente na região, há sindicatos dos EUA que se opõem ao TPP
também, justamente por isso.
OM:
É possível estabelecer um paralelo com o que foi debatido nas últimas visitas
bilaterais de presidentes norte-americanos à Argentina?
LM: Nas
últimas três visitas presidenciais dos EUA à Argentina estava na agenda a
discussão de áreas de livre comércio. Quando George Bush (1989-1993) veio, em
1990, discutiu com Menem a iniciativa para as Américas, que tinha sido lançada
pouco antes pelo presidente dos EUA, e depois virou a Alca. Quando Bill Clinton
veio, em 1997, discutiu a Alca e negociou que a Argentina fosse a sede da IV
Cúpula das Américas. Na época, havia um governo muito alinhado com os EUA, não
se sabia o que ia acontecer nos anos seguintes.
A
visita de George W. Bush, em 2005, foi especialmente para discutir a
implementação da Alca e acabou sendo contraproducente. A Cúpula se realizou em
Mar del Plata quando havia outro alinhamento político do governo argentino, já
com Néstor Kirchner (2003-2007), e do Mercosul em geral.
OM:
Como os EUA se adaptam à mudança no contexto político latino-americano dos anos
1990 para cá? É possível dizer que as intenções mudaram ou foi a estratégia de
aproximação que mudou?
LM: Nos
anos 1990 estávamos na imediata pós-guerra fria e, talvez como nunca antes, os
EUA conseguiram subordinar os governos e os países latino-americanos. No
entanto, essa subordinação não esteve isenta de conflitos. Levou à crise
econômica e política do fim do século 20 na região e provocou uma série de
levantamentos sociais e políticos, como o que aconteceu em 2001, na Argentina,
a Guerra da Água, na Bolívia, várias rebeliões que derrubaram sucessivos presidentes
no Equador ou o Caracazo, na Venezuela.
Isso
abriu portas para o chamado “ciclo progressista”, que incluía desde governos de
tipo bolivariano até governos reformistas do Mercosul. Isso também mudou o mapa
político e permitiu que forças sociais construíssem ferramentas para se opor e
derrotar o projeto hegemônico desenhado pelos EUA nos anos 1990, com a
Iniciativa das Américas.
Esse
projeto estratégico foi derrotado em 2005 e os EUA mudaram de estratégia, com
alento a tratados de livre comércio bilaterais, como os que assinou com
Colômbia ou Peru, para citar dois exemplos. Agora há a possibilidade de assinar
mais um acordo para conter o avanço chinês na região. Ou seja, a possível
incorporação argentina ou de outros países do Mercosul ao TPP seria funcional
aos objetivos estratégicos de longo prazo dos EUA para a região. Afastar
potências extra-hemisféricas, nesse caso a China, e dificultar o processo de
cooperação política e de integração regional - mesmo com todas suas limitações
- como os que aconteceram nos últimos 10 ou 15 anos.
OM:
Muitos consideram o "Não à Alca" como um marco na integração
latino-americana. Pode-se dizer que esses processos de cooperação regional se
encontram debilitados hoje?
LM: Certamente.
A crise econômica, a crise do preço das commodities, o arrefecimento do
processo de crescimento econômico, a não diversificação da matriz extrativista,
além de uma série de mudanças políticas contribuem para isso. É claro que há
panoramas diversos e nem tudo é transferível de forma mecânica entre os países,
mas desde os anos 1970 podemos observar na América Latina ciclos econômicos e
políticos. Ditaduras militares e endividamento nos anos 1970, hiperinflação e
crise da dívida em paralelo à restauração democrática na década de 1980, a
aplicação de medidas econômicas em sintonia com o Consenso de Washington nos
anos 1990. Já entre 1998 e 2005, houve uma mudança na América Latina, que viveu
uma década de altíssimo crescimento e de coordenação política e, em alguns
casos, integração como nunca havia sido visto antes sem que os EUA estivessem
no comando estratégico. De 2013 para cá o segundo mandato de Obama coincide com
a morte de Hugo Chávez e começa uma ofensiva dos EUA com outra estratégia, como
a que estamos vendo de Obama em Cuba.
No
entanto, essa política de distensão com Cuba não é aplicada à Venezuela. Há um
ano, Obama assinou um decreto onde considera a Venezuela como uma ameaça aos
EUA e o ratificou novamente há algumas semanas. Os EUA levam a cabo políticas
de desestabilização de governos não alinhados da região, para além das
conjunturas particulares de cada país.
E
essas políticas têm sucesso, entre outras coisas, por conta da virada política
argentina. Pela primeira vez na história, uma expressão de direita ou de centro
direita chega ao governo pelas urnas. Isso provocou uma mudança ou um impulso a
mais para a mudança política que acontece em todo o continente e creio que
Obama vem ratificar essa liderança de Macri. Porque é a primeira vez que um
governo não tão alinhado na região passa às mãos de um governo claramente
alinhado, que define o eixo de sua política externa recuperar as relações com
EUA e Europa Ocidental.
OM:
De fato, o governo de Macri costuma dizer que "a Argentina está voltando
ao mundo", como se o país estivesse isolado nos últimos 12 anos. É
possível afirmar que a política externa do kirchnerismo levou a Argentina ao
isolamento?
LM: De
nenhuma maneira a Argentina estava isolada do mundo. Podemos gostar mais ou
menos da política externa kirchnerista, mas é preciso reconhecer que a
Argentina teve uma ampla participação política internacional. O país foi
incluído no G20, participou de cúpulas dos BRICS, esteve em diferentes
instâncias de coordenação política em nível latino-americano e, inclusive, teve
relações muito fluidas com os EUA, aprovou uma lei antiterrorista na tentativa
de diminuir os níveis de confrontação.
Analistas
críticos da política externa do governo anterior apontavam para esse
isolamento, para a falta de investimentos estrangeiros no país, ao contrário do
Brasil, que os recebeu mesmo durante o governo do PT, que teve uma política
econômica de maior continuidade em relação às políticas neoliberais de abertura
ao capital estrangeiro, de metas de inflação, de política fiscal mais
restritiva.
Para
economistas liberais, a Argentina precisa abrir seu mercado interno, trazer
investimentos, fazer empréstimos. E, para isso, não pode confrontar, deve ser o
mais amigável possível. E foi isso que a chanceler Susana Malcorra e o próprio
Macri declararam: que a política externa será “desideologizada”, “pragmática”,
com vínculos com as principais potências. Nesse marco está o acordo com os
chamados fundos abutre, que vai endividar a Argentina por muitos anos, e que
busca “recuperar a confiança” e fazer com que haja mais investimentos.
No
entanto, creio que é uma desculpa para estabelecer políticas de alinhamento com
uma retórica mais aceitável em um país que tem tradição de uma política externa
mais autônoma. Não se fala em “realinhamento”, sim em “relações amigáveis com
todos”.
OM:
Obama vai estar na Argentina durante o aniversário de 40 anos do golpe de
Estado. Associações de direitos humanos do país criticaram a visita nessa data,
já que os EUA são acusados de dar suporte político e financeiro à última ditadura.
O que o senhor pensa sobre a data escolhida para o encontro bilateral?
LM: Há
uma operação política na apropriação de conceitos-chave historicamente ligados
a políticas progressistas, como “liberdade”, “direitos humanos”, “democracia”
por um discurso que não esteve historicamente ligado a essas ideias. Um exemplo
é apontar Macri como o defensor dos direitos humanos na região, ele que nunca
havia visitado a ex-Esma [centro clandestino de detenção transformado em centro
de memória pelo ex-presidente Néstor Kirchner], que alegou pouco tempo para
receber organismos de direitos humanos quando assumiu o governo.
Vir
à Argentina, que é um país reconhecido pelo julgamento de responsáveis do
terrorismo de Estado da última ditadura militar, e utilizar a questão dos
direitos humanos para atacar países não alinhados com os EUA é confundir, é
utilizar de forma enviesada a democracia para atacar regimes políticos que não
respondem aos interesses dos EUA.
Gostaria
de recordar que nos anos 1970 o governo de [Jimmy] Carter (1977-1981) tentou
estabelecer algumas sanções contra a Argentina, mas não tinha nenhuma política
direcionada à ditadura de Pinochet (1973-1990), aliado estratégico dos EUA.
Hoje, os EUA sustentam financeira e diplomaticamente um governo que foi produto
do golpe de Estado em Honduras, enquanto a Venezuela, onde houve diversas
eleições nos últimos anos, onde o oficialismo perdeu eleições, é
sistematicamente atacado como um governo que não respeita os direitos humanos.
Ou
seja, há um uso míope dos direitos humanos. Nos anos 1970 e agora também.
OM:
Especialmente em um momento onde tentativas de destituição de presidentes
eleitos por voto popular se fortalecem na América Latina, a aproximação entre
EUA e Argentina sob o governo de Macri pode ajudar a fortalecer projetos
políticos de direita na região?
LM: A
situação política sempre pode se modificar, mas sem dúvida o triunfo de Macri
deu impulso à oposição venezuelana nas eleições de dezembro. Era sabido que
seria uma disputa acirrada, mas ninguém imaginava uma derrota tão folgada da
direita. E isso tem relação, sim, com a mudança de época. Ninguém imaginava a
derrota de Evo Morales no referendo sobre sua reeleição, pouco mais de um ano
depois de ter sido eleito presidente com ampla maioria de votos. No Brasil,
para além das novidades judiciais, uma ofensiva contra o governo do PT ganhou
força desde o ano passado.
Nada
disso implica um destino inexorável, porque sempre depende da correlação de
forças políticas que podem ser construídas. Também nos EUA há um processo
eleitoral bastante incerto, completamente diferente do cenário de um ano atrás.
Não
sabemos o que pode acontecer com as relações entre EUA e América Latina se o
defensor de políticas tão xenófobas como Donald Trump, que tem chances de ser o
candidato republicano, for eleito presidente. Ainda que suas excentricidades
fiquem de lado caso assuma como chefe de Estado no país norte-americano, também
é uma novidade o que acontece por lá, que alguém que nunca teve cargos
políticos chegue a ganhar a [eleição] interna de um dos principais partidos do
país.
No
entanto, não tenho dúvidas de que a visita de Obama se dá no marco dessa
ofensiva em meio ao retrocesso dos processos de transformação social na região.
OM:
Uma das promessas de campanha de Mauricio Macri foi intensificar o combate ao
tráfico de drogas, que é uma questão a que os EUA prestam muita atenção desde
os anos 1970. O que se pode esperar da relação entre EUA e Argentina no que diz
respeito a esse assunto?
LM: A
perspectiva de luta militar contra o narcotráfico defendida pelos EUA produziu
uma descompensação em todos os países da América Latina que a aplicaram. É
muito criticada e os EUA continuam a aplicá-la, novamente, com dois pesos e
duas medidas. Serve de desculpa para avançar na penetração - no caso, militar -
e violar a soberania dos países da região enquanto fala-se muito pouco de que a
maior parte da cocaína que a América Latina exporta entra nos EUA com
conivência das forças de segurança e das forças políticas do país
norte-americano.
Além
disso, a definição de que países estão mais permeáveis pelo tráfico de drogas,
em muitos casos, está subordinada ao grau de alinhamento desse país aos EUA.
Por exemplo, quando a Argentina restringiu a participação da DEA [Organismo
para o Combate às Drogas dos EUA] nas tarefas de luta interna contra o
narcotráfico, apareceu, no ano seguinte, no relatório feito pelo Departamento
de Estado dos EUA como país mais permeável ao tráfico de drogas.
O
atual governo prometeu combater o narcotráfico e vai fazer isso estreitando
vínculos com os EUA, cooperando mais com os EUA. É preocupante quando vemos que
Patricia Bullrich [ministra de Segurança argentina] viaja aos EUA para se
encontrar com o chefe da DEA, do FBI. Isso indica o rumo das políticas que
pensa em implementar e é preocupante. É preciso prestar muita atenção às formas
de cooperação que a Argentina vai estabelecer com os EUA em um campo tão
sensível quanto a segurança e as Forças Armadas.
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