Aline
Frazão*
“Tem
dias que a gente se sente
como
quem partiu ou morreu
A
gente estancou de repente
ou
foi o mundo então que cresceu”
Chico
Buarque, Roda Viva
Estava
no Rio de Janeiro e, sentada em frente à televisão, decidi acompanhar em
directo a votação da proposta de impeachment à presidenta Dilma
Roussef. O primeiro voto foi “não” e na janela ouviu-se um eufórico e sonoro
grito: “Gol!” Algum distraído improvável, deambulando pelas ruas do bairro do
Catete, pensaria que se disputavam as grandes penalidades da final da Copa do
Mundo. Só que não. O caso era bem mais sério e pode definir o futuro da
democracia brasileira.
Assisti,
boquiaberta, ao desfile de horrores que é a Câmara dos Deputados do Brasil,
questionando-me sobre como foi possível a eleição daqueles homens brutos,
imorais, populistas e reacciónários. Quem quisesse ler, podia. Estava ali
reflectida, na composição daquela exaltada multidão, a História dos
privilégios, a História da opressão, do classismo, do machismo, do
aproveitamento religioso. Ali não estão, obviamente, representados os
interesses das periferias, da população negra, das mulheres, dos povos
indígenas, dos homossexuais.
Olhando
casos assim, conseguimos compreender os episódios mais horrendos da História da
humanidade. Olhando episódios assim, conseguimos dar o verdadeiro valor às
conquistas democráticas do Estado de Direito. Olhando episódios como o de
domingo, entendemos porquê que se teve que convencionar por escrito uma Carta
Universal dos Direitos Humanos.
Para
quem é de fora do Brasil e assistiu à transmissão das declarações prévias às
votações, é gritante a pobreza de argumentos dos que votaram “sim” ao impeachment.
Alguns nem justificam. Não precisam. Não precisaram. Rapidamente nos
apercebemos de que o impeachment pouco ou nada tem a ver com a luta contra
a corrupção no Brasil. Trata-se de um engenhoso plano político, construído por
cima da lei e conduzido por alguns dos piores nomes da cena política
brasileira: gente mergulhada até ao nariz em acusações de corrupção,
inclusivamente no Lava Jato. Gente como Eduardo Cunha, nada mais do que o
presidente da Câmara dos Deputados, deputado federal pelo partido PMDB, réu no
Supremo Tribunal Federal pelo seu envolvimento no Lava Jato, o mesmo que pode
perder o seu mandato no Conselho de Ética, pelo facto de ter negado ter contas
no exterior, mentindo diante da Comissão Parlamentar de Inquérito da Petrobras.
Ver
Eduardo Cunha presidir friamente a votação do impeachment de Dilma é
só uma entre as muitas razões para se pôr em causa a credibilidade deste
processo, que se diz anti-corrupção. Ouvir a declaração de voto dos deputados
é, efectivamente, o juízo final.
“Pelo
aniversário da minha neta”, “pelos maçons do Brasil”, “em memória do meu pai”,
“pela nação evangélica”, “pelos fundamentos do cristianismo”, “por Daiane,
Mateus e Adriane”, “pela paz de Jerusalém”, “pelos militares de 64″. Estas foram
algumas das razões dos deputados federais que votaram pelo impeachment.
Mas
nada, nada de compara à perversa e criminosa declaração de Jair Bolsonaro, do
PSC:
“Perderam
em 64. Perderam agora em 2016. Pela família e a inocência das crianças, que o
PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São
Paulo e em memória do coronel Ustra, o pavor de Dilma Roussef, pelas nossas
Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto
é sim!”
Quem
foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra? Nada mais do que um dos mais
temidos torturadores da Ditadura Militar, um dos responsáveis pela tortura da
própria presidenta. Não há nada mais odioso do que a exaltação da ditadura, da
tortura, da repressão, em plena Câmara dos Deputados, em directo para todo o
país. Impune, vil, infame e sem vergonha.
É,
de facto, preocupante o que pode acontecer no Brasil nos próximos meses. A
sociedade brasileira encontra-se refém de uma perigosa polarização ideológica que
pode pôr em risco as conquistas das últimas décadas. Independentemente da
responsabilidade ou não de Dilma Rouseff, assistimos aqui a uma grave ameaça à
democracia brasileira.
Desde
o outro lado do Atlântico, esperamos que o povo brasileiro possua a lucidez e o
bom senso para vencer esta crise, para que a História não se repita. Um
retrocesso em solo brasileiro passaria uma factura alta não só no contexto
sul-americano, mas também a todos os países ao sul do mundo, todos os que
depositavam no Brasil a esperança de ser o farol da luta contra a pobreza e a
exclusão social, pela democracia plena, aquela em que os interesses de todos
têm o mesmo peso.
*Rede
Angola
1 comentário:
Dilma mancha imagem do Brasil com choradeira falsa sobre “golpe”
https://lucianoayan.com/2016/04/20/dilma-mancha-imagem-do-brasil-com-choradeira-falsa-sobre-golpe/
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