As
notícias da entrega da concessão da exploração de combustíveis fósseis em
terras do Algarve ao empresário Sousa Cintra têm abundado. Importa perceber que
os problemas da exploração de combustíveis fósseis são generalizados. Mas no
festim das concessões em Portugal, importa conhecer quem veio para jantar.
João
Camargo*
Nos
últimos dias as notícias acerca da entrega da concessão da exploração de
combustíveis fósseis em terras do Algarve ao empresário Sousa Cintra,
especialista em falências (das suas próprias empresas) têm abundado. Importa perceber que os problemas
identificados acerca da exploração de combustíveis fósseis são generalizados e
que tanto é uma loucura entregar concessões a quem não tem conhecimento técnico
sobre esta atividade como a quem tem. Mas no festim das concessões em Portugal,
importa conhecer quem veio para jantar.
Na
semana passada o Sexta às Nove, da RTP, atraiu bastante atenção para a
opacidade do processo da entrega de 3000 km quadrados no Algarve ao empresário
Sousa Cintra, por um período de 40 anos para a exploração de combustíveis
fósseis. Esta concessão atravessa 14 dos 16 concelhos algarvios e é altamente
polémica, com oposição dos municípios, empresários, associações ambientalistas
e movimentos sociais locais.
A
reportagem explora várias inconsistências, desde o facto de os serviços da
Direção Geral de Energia e Geologia terem emitido um parecer negativo e, três
meses depois, o Diretor-Geral Carlos Almeida ter revertido este parecer, o
facto da empresa Portfuel de Sousa Cintra não ter funcionários e conhecimento
técnico para fazer exploração de hidrocarbonetos, o facto de já existir um furo
mandado fazer por outra empresa de Sousa Cintra, a Domus Verde, em Aljezur,
para prospeção de petróleo (embora a autorização fosse para um furo de água e
ser proibido pelo contrato de exploração de petróleo fazer prospeção neste
momento), o facto do anterior Ministro do Ambiente, José Moreira da Silva, ter
entregue a concessão a 10 dias das eleições legislativas e de o mesmo ministro
ter no final nomeado a sua Chefe de Gabinete para o regulador destes contratos,
a Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis.
Estas
são apenas algumas das questões em cima da mesa. São contrabalançadas pelo
Presidente da Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis (ENMC), Paulo
Carmona, que declara que se "Se encontrar petróleo ganharemos todos, se
não encontrar ganha o Estado", revelando a linha de argumentação de que as
concessionárias estariam a fazer o favor de um serviço de análise geológica ao
Estado Português e que até poderiam eventualmente a vir a explorar petróleo ou
gás se se descobrissem reservas, e que encontrar petróleo dá dinheiro a ganhar
a alguém que não aos concessionários. Sousa Cintra segue também esta
orientação, declarando que o que mais interessa é "Saber se já ou se não
há" combustíveis fósseis no Algarve. O empresário destaca que para si individualmente
é um "investimento de risco", mas que o Governo ganha sempre porque
fica com o estudo geológico.
No
final da reportagem ficou claro o desconforto do atual governo com este
imbróglio. O Secretário de Estado da Energia, Jorge Sanches, diz que não admite
ainda a rescisão do contrato pois o mesmo está a ser apreciado juridicamente
pelo regulador. Ora, começamos com um grave problema que ultrapassa amplamente
os contratos: o regulador é a Entidade Nacional para o Mercados dos
Combustíveis. Ora, o contrato assinado entre a Portfuel e o Estado foi assinado
por Sousa Cintra de um lado, e Paulo Carmona, do outro. Este último é o
Presidente da Direção do "regulador" que vai avaliar juridicamente os
contratos que o próprio assinou. Na reportagem ficou ainda expressa a posição
ambígua do regulador, pois Paulo Carmona defendeu (como tem feito em sessões
públicas) a exploração dos combustíveis fósseis. A Entidade Nacional para o
Mercado dos Combustíveis (ENMC) é, por um lado, promotora, e por outro lado,
reguladora desta atividade. Algo não bate certo.
Mas
ficarmos presos nos detalhes contratuais da exploração onshore (em
terra) de combustíveis fósseis no Algarve é insuficiente para avaliar um
processo destes. A concessão no Algarve à Portfuel foi atribuída 10 dias antes
das eleições legislativas mas cinco dias depois, isto é, cinco dias antes das
eleições legislativas, foram atribuídas à Australis Oil & Gas Portugal duas
concessões em terra, com uma área de 3780 km quadrados na zona centro-oeste do
país. O contrato foi assinado entre a ENMC e a Australis Oil & Gas
Unipessoal Lda., empresa com capital social de 5000 euros constituída em Março
de 2015.
Esta
empresa, criada só para assinar o contrato, tem como base a Australis Oil &
Gas Ltd, resultante da compra em 2014 da australiana Aurora Oil & Gas pela
canadiana Baytex Energy. A aquisição teve como principal motivação a expansão
da canadiana para a capacidade de extracção não convencional de combustíveis fósseis,
nomeadamente gás e petróleo de xisto através do método de fracking e fracking horizontal.
É da Aurora Oil & Gas que vêm os técnicos da Australis, especialistas na
extracção de gás e petróleo de xisto que têm como principal operação Eagle
Ford, no Texas. Num encontro em Setembro de 2015 na Fundação Calouste Gulbenkian Ian Lusted, um dos
diretores da Australis, foi perentório: "A Australis reconhece que está
aqui a convite do governo português", e já identificou nas concessões 17
alvos específicos para furos de exploração. O mesmo Ian Lusted, em entrevista à Business News, na Austrália, revelou mais detalhes:
"Falámos com os portugueses e ficámos com as concessões, com a vantagem de
que todos os dados já estão recolhidos sem nunca terem sido testados.(...) É
uma entrada barata, com muito pouco investimento, que pode ser muito rentável
com uma pequena subida no preço do petróleo.". Neste sentido, e
revisitando as declarações à RTP do presidente da ENMC, Paulo Carmona,
desaparece o "risco" que os concessionários privados teriam de
assumir. Fica só a exploração e o rendimento que se obtém da mesma, além dos efeitos secundários óbvios. E se a preocupação com a
viabilidade económica da operação da Portfuel no Algarve existe, é preciso
destacar que a Baytex, empresa-mãe da Australis, tem uma dívida superior a 1,9
mil milhões de euros e perdeu mais de 90% do seu valor só em 2015. Já valeu 5 mil
milhões de euros e agora não passa dos 550 milhões, estando a sua sobrevivência
em questão.
vançando
da terra para o mar, a Kosmos Energy, empresa americana, obteve duas concessões
offshore em Peniche, por "Negociação Directa". Os perigos da
exploração de petróleo no mar são evidentes, mesmo quando se trata de uma
exploração distante. As fugas profundas como ocorreu no Golfo do México com a
BP e as marés negras soam o maior alarme, mas a poluição difusa é permanente. A Kosmos tem ampla experiência nisto. A empresa, sediada em Dallas, tem
explorações offshore no Suriname, no Gana, no Senegal, na Mauritânia, no Sahara
Ocidental e em Marrocos. A empresa colocou-se numa situação polémica em
Dezembro de 2014, ao ignorar uma resolução das Nações Unidas, iniciando
exploração de petróleo na costa do Sahara Ocidental, território ocupado por
Marrocos. Assinou um contrato com o governo marroquino e começou a explorar os
combustíveis fósseis, violando a lei internacional que proibia a extração no
Sahara Ocidental. Mas é do Gana que nos vem a informação mais interessante: a
Kosmos teve direito a ser estrela de cinema no documentário de 2013 "Big Men: Power, Money, Greed and Oil" (Homens
Importantes: Poder, Dinheiro, Cobiça e Petróleo). A história é simples: como a
concessão de petróleo offshore no Gana foi conseguida pela Kosmos Energy
através de um processo marcado pela corrupção de funcionários públicos,
governantes e pela exploração financeira sem olhar a quaisquer limites ou
consequências. Além de processos dúbios, de derrames que ficaram por limpar e de multas por pagar , a Kosmos negociou
um acordo de mais de 10 milhões de dólares para encerrar uma ação por fraude financeira acerca das reservas potenciais das suas
concessões.
Continuando
mar adentro há mais concessões e mais empresas, no Alentejo e no Algarve,
destacando-se a Partex, a GALP, a Repsol e a ENI. Um mês antes das eleições
legislativas foram assinadas as concessões: a 4 de setembro. De ilustres a
ilustres desconhecidas, estas empresas são as maiores e mais experientes às
quais foram entregues as concessões no país. Nem por isso deixam de ser
empresas que se caracterizam pelos seus derrames petrolíferos, pela opacidade
operativa, pela violação de direitos humanos e das vontades das populações
locais onde operam.
A
espanhola Repsol derrama petróleo. Muito. E em muito sítios. Em terra e no mar.
A recente vitória da população das Ilhas Canárias, onde foi bloqueada a tentativa da Repsol e do governo de Madrid
de começar a exploração de combustíveis fósseis no mar do arquipélago, aumentou
o escrutínio e revelou crimes da Repsol:na Argentina antes da Repsol ter sido expulsa pelo
governo, em Tarragona, no Mediterrâneo, onde teve pelo menos 16 derrames, no Alaska, onde a empresa avança à procura da expansão para o
Ártico. Mas a própria Repsol, justiça lhe seja feita, não se esconde:
entre 2007 e 2011, declarou 7111 derrames, isto é 3,9 derrame por dia, em média.
Quem
avança mais determinadamente para a exploração do Ártico, na esperança que a
seguir a Obama venha um presidente mais "oleado", é a ENI, empresa
italiana de capitais públicos e privados, que se posiciona na Noruegapara a exploração de combustíveis
fósseis num pólo em degelo. Com mais de 60 anos de atividade, esteve na
vanguarda de muitos processos de abertura, concessão e exploração de gás e
petróleo pelo mundo, estando presente em 83 países. Talvez o Delta do Níger, na
Nigéria, seja o exemplo acabado de como a experiência é relevante: em 2014 a ENI reportou 349 derrames de petróleo só nesta concessão.
Mas está a melhorar, porque em 2013 tinham sido 500. Estas contas no entanto não batem certo com as contagens que faz no seu site,
mas este revela importante informação em relação às suas operações na Nigéria,
Argélia, Angola, República do Congo, Egito e Líbia: a quantidade de roubos e
vandalismo ocorrentes nas concessões e nos oleodutos é a imagem de marca da
exploração contra a vontade das populações pobres, destruindo os ecossistemas,
a pesca, a agricultura e as condições de habitabilidade. Há apenas um mês atrás
morreram mais três pessoas num oleoduto da ENI na Nigéria. No ano passado em julho morreram outros treze. Mas a história de violência começa
muito atrás, e acompanha acorrupção usada por empresas como a ENI, a Total ou a Shell para adquirir as concessões e manter a extração do petróleo sem
contrapartidas para as populações. A maldição do petróleo na Nigéria
faz-se da atividade de empresas como esta, com a exploração sem regras, com a
violência e a injustiça como orientação, protegidas por milícias e mercenários.
A ENI e as suas subsidiárias são ainda acusadas de usar métodos deste tipo na Argélia e no Cazaquistão. A agressividade da empresa é inclusivamente louvada: a sua persistência em ficar na Líbia durante uma
guerra civil para explorar as gigantes reservas enquanto a mortandade se
espalha entre a população é notável e torna clara a sua história – que a sua
única prioridade é fazer muito dinheiro, doa a quem doer.
A
GALP Energia, no que diz respeito a extração de petróleo, basicamente obtém
contratos que outras operadoras executam. As suas concessões pelo mundo
(principalmente no Brasil, em Angola e Moçambique) são operadas pela Petrobras,
pela ENI, pela Total, pela Chevron. Esta empresa tem como sede fiscal a Holanda, onde as holdings não pagam impostos
sobre os dividendos das empresas subsidiárias. Em 2015 um lucro de 639 milhões
de euros.
Acabamos
na Partex, que é seguramente um dos nomes menos conhecidos em Portugal. Talvez
porque é pouco associado à sua casa mãe, a Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar
de quase só ser conhecida pela sua filantropia e mecenato, a Gulbenkian obteve,
em 2012, só através da venda de gás e petróleo pela Partex, receitas no valor
de 1470 milhões de euros. E apesar de no meio do escândalo dos Panamá Papers o
presidente da Gulbenkian e também presidente da Partex Oil & Gas, Artur
Santos Silva, defender o fim das offshores, a Partex Oil and Gas Corporation tem sede fiscal nas
Ilhas Caimão. E as subsidiárias da Partex que exploram petróleo em Oman, no
Cazaquistão, no Brasil, na Argélia e em Angola têm sedes fiscais no Panamá, nas
Ilhas Caimão, no Liechtenstein e em Portugal. Bem prega o Frei Tomás... O
mecenato da Fundação Gulbenkian obtém-se também pelo facto da Corporação
Partex, holding do grupo, não ser taxada sobre os seus lucros ou outros ganhos.
Offshores para receber dinheiro de concessões offshore, como aquelas que a
Gulbenkian quer começar no Algarve, poderão melhorar a política cultural, mas o
ambiente, seguramente que não.
Mas
dizem-nos que não devemos temer porque há um regulador para garantir que tudo
correrá segundo as regras e as leis. O problema é que este regulador, a
Entidade Nacional para os Mercados de Combustíveis, é o mesmo que foi criado
para garantir que não existe um cartel entre as petrolíferas para concertar os
preços do gasóleo e da gasolina e cujo falhanço é visto todos os dias em todas
as auto-estradas do país, quando vemos antes das bombas de gasolina que os
preços são sempre, por divina providência, iguais. É também o regulador que não
costuma ver problemas quando os preços da gasolina e do gasóleo sobem na
sequência, do preço do petróleo atingir máximos históricos, ou quando os preços
os preços da gasolina e do gasóleo sobem na sequência do preço do petróleo
bater no fundo. É o regulador cujo controlo flexível sobre os monopólios da
GALP, da REPSOL, da AGIP (ENI), da Total, vai agora ser replicado na
"regulação" de um novo monopólio que o Estado inventou.
O
que interessa avaliar neste processo não é a dúbia reputação e capacidades das
empresas que obtiveram os concessões, não é o timing suspeito da atribuição das
concessões nem são os contratos leoninos que atribuirão a estas empresas todos
os lucros e deixarão os riscos entregues aos ecossistemas e às populações em
terra e no mar. Porque as reputações não são dúbias, sabe-se por todo o mundo o
que são as empresas petrolíferas. Porque não é suspeito o timing, é garantido
que era preciso continuar a entregar concessões de bens comuns (como são por
maioria de razão, o ambiente e os ecossistemas) para tentar obter trocos para
abater nos défices públicos. Porque os contratos leoninos são só a continuação
da entrega da riqueza a empresas privadas, como acontece nas mais de 100
parcerias publico-privadas e concessões que Portugal tem e que explicam as suas
auto-estradas e aeroportos vazios, os seus estádios de futebol abandonados, as
suas mais de 300 barragens e as que ainda se querem construir "porque há
um contrato".
Portugal
não deve explorar gás ou petróleo porque fevereiro de 2016 foi o fevereiro mais
quente desde que há registos de temperatura. Não deve explorar combustíveis
fósseis porque 2015 foi o ano mais quente desde que há registos. E porque antes
de 2015, 2014 fora o ano mais quente até então. E porque dos dez anos mais
quentes de que há registo, nove foram desde 2000, e o décimo foi 1998. Porque é
a combustão de combustíveis fósseis que provoca esse aquecimento. Porque para
conseguirmos manter o aumento da temperatura global abaixo dos 2ºC, temos de
manter 80% das reservas conhecidas de combustíveis fósseis debaixo do solo, e
não procurar novas reservas. Porque Portugal tem um potencial solar enorme, de
2200 a 3000 horas de sol anuais, e tem uma produção solar insignificante.
Portugal não deve explorar gás ou petróleo porque, além de isso não significar
qualquer entrada de riqueza no país, já que os contratos são ridículos para o
Estado e, além disso, as empresas são especialistas a fugir aos impostos (legal
e ilegalmente), porque a indústria petrolífera cria muito poucos empregos e
destruirá milhares de postos de trabalho já existentes no turismo, na pesca e
na agricultura. Porque perante um planeta e uma economia global que cada vez
mais desinvestem dos combustíveis fósseis, o país não pode continuar a
facilitar a vida a patos bravos e a empresas com as mãos sujas de sangue e de
petróleo, mesmo que alguém tenha tido um dia a infeliz ideia de assinar dez
contratos estúpidos. É que, apesar dos convidados para jantar serem terríveis,
a própria refeição nunca passou de veneno para nós.
*Artigo
de João Camargo publicado em sabado.pt a 12 de abril de 2016
*Esquerda.net
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