Miguel
Caetano, opinião*
O
debate em torno do financiamento de colégios privados com fins lucrativos pelo
estado português é um dos mais intelectualmente desonestos e superficiais dos
últimos anos.
O
argumento supremo invocado para justificar o financiamento desses colégios em situação
de redundância comparativamente a escolas públicas é, como não poderia deixar
de ser, o da qualidade: basicamente, invoca-se que os contribuintes portugueses
devem apoiar esses colégios porque a educação que eles proporcionam aos seus
alunos é de uma qualidade superior à da escola pública situada a menos de um
quilómetro.
A
questão é que o argumento que está aqui em causa representa quanto a mim um
autêntico quebra-cabeças lógico: porque razão é que se deve financiar com
dinheiros públicos colégios com fins lucrativos? Porque os alunos saem de lá
melhor preparados. E porque é que isso acontece? Porque são colégios privados.
Mas se são privados e visam obter lucro, então porque carga de água necessitam
do dinheiro dos contribuintes para sobreviverem?
Em
suma: analisando a questão em pormenor, não parece existir qualquer razão
ontológica que impeça que as escolas pertencentes à rede pública não ofereçam a
mesma educação de qualidade que os colégios privados. Mais ainda: pode muito
bem ser que esse dinheiro que os contribuintes gastam com colégios privados
possa ser mais bem empregue na ampliação e renovação da rede de ensino público.
Esta
discussão é superficial sobretudo porque confunde um sintoma com uma causa: o
facto dos colégios privados ministrarem um ensino supostamente de maior
qualidade não deve ser atribuído ao seu estatuto de entidades com fins
lucrativos - MUITO PELO CONTRÁRIO! Se mais não fosse, a própria necessidade da
existência de contratos de associação entre o Estado português e as empresas
responsáveis por esses colégios para a sobrevivência de muitos destes últimos
revelaria que a educação de qualidade não é e nem pode ser lucrativa!
É
claro que aquilo que entendemos por "qualidade" é muito relativo,
dependendo na prática da interpretação subjetiva de cada pessoa. Para uns, pode
ser uma excelente média nos exames nacionais; para outros pode ser uma
variedade de matérias extracurriculares; para outros ainda pode ser piscinas e
ginásios olímpicos, spas, transportes pagos de casa para o colégio e do colégio
para casa, etc. Mas enveredar por essa discussão já seria entrar num nível mais
avançado. Para todos os efeitos, entendamos provisoriamente por qualidade como
sendo uma combinação de todas essas definições, com especial ênfase para a primeira
delas.
Nesse
sentido, é fácil constatar pela consulta dos estatutos dos colégios, bem como
da Constituição da República Portuguesa que:
1)
o fim último de maior parte dos colégios privados não é uma noção mistificadora
de "qualidade" mas sim a obtenção de lucros para os seus acionistas;
2)
o fim último das escolas públicas não é a qualidade enquanto ideal místico mas
sim cumprir a obrigação imposta ao Estado pela CRP de proporcionar uma rede de
ensino o mais universal, aberta e gratuita possível.
Como
se pode ver, a qualidade resume-se a um atributo mistificador que, na sua
aceção maioritária - maior desempenho escolar -, resulta não raras vezes de uma
consequência a posteriori fortuita, não podendo ser acorrentada de forma
essencialista a um ou outro sistema de ensino. Isto porque nem colégios
privados nem escola pública têm como missão última proporcionar um ensino de
qualidade.
Obviamente
que para além do ensino privado com fins lucrativos e do ensino público,
poderemos sempre também falar de um ensino cooperativo e/ou sem fins
lucrativos, proporcionado por associações locais ou organizações
não-governamentais. Ainda que esse tipo de ensino seja quanto a mim mais
merecedor do financiamento público do que empresas com fins lucrativos, mesmo
nesse caso teremos que ter o cuidado de evitar que o contribuinte acabe por
financiar propaganda religiosa, política ou qualquer outro tipo de ideologia
que se desvie da missão universalista e aberta do sistema de ensino público.
Esta
discussão em torno dessa mistificação chamada qualidade é aliás igualmente
válida para outros domínios tradicionalmente financiados pelo Estado como os
transportes ou as bibliotecas. A diferença é que alguém que viesse a terreno
defender a suspensão dos planos de ampliação e renovação da rede pública de
transportes coletivos (metropolitano, caminhos de ferro e serviços rodoviários)
de modo a financiar os serviços privados de transporte de uma empresa como a
Uber apenas porque estes são mais confortáveis, rápidos e asseados seria
encarado como um autêntico idiota, quando não mesmo um palhaço.
O
mesmo se diga aliás de alguém que defendesse o fim das verbas destinadas
anualmente pelo orçamento de Estado às bibliotecas municipais e universitárias
para que, em troca, o Estado passasse a oferecer mensalmente a todos os
cidadãos nacionais um cheque-brinde no valor de 100 euros para a aquisição de
livros na Amazon apenas porque as bibliotecas públicas não dispõem de todas as
obras que constam dos programas das cadeiras dos cursos superiores das universidades
públicas... :o)
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