Rui Peralta,
Luanda
Os sistemas africanos de fé são, geralmente e por diversos motivos, associados
á “obscuridade”, á “violência”, aos “sacrifícios humanos e/ou animais” e ao “atraso
cultural e socioeconómico”. Desde o início do período colonial até hoje
difunde-se falsa informação sobre as espiritualidades africanas e estas são
sistematicamente descontextualizadas. África é mal interpretada e ignorada.
O
colonialismo religioso, expressão do colonialismo cultural, é um dos efeitos
menos debatidos do todo colonial, sendo a razão principal dos sistemas
africanos de fé serem vistos como “magia negra”, ou simples superstições. É
necessário entender os processos de colonização cultural para compreender o
domínio do cristianismo e do Islão.
No início do século XX os sistemas espirituais africanos ainda dominavam uma
vasta região do continente. Passaram de “primitivos e incivilizados”, a um “sistema
inferior de religião”. Os extremos dos missionários fizeram-se sentir em muitas
ocasiões. Noutras foram mais discretas e “moderadas”. É bom não esquecer que os
missionários cristãos acreditavam piamente que tinham de libertar o continente
da “opressão do mal” e da “ignorância” (esta crença dos missionários-agentes
coloniais foi absorvida pelos actuais missionários pós-coloniais). Quanto ao
Islão o panorama não foi muito diferente.
Em muitas escolas fundadas por missionários cristãos foi ensinada (e é) a cristandade
mas, também a superioridade da cultura e língua do colonizador ou ex-potência
colonial. Foi dessa forma que se formaram muitos agentes “indígenas” ou “autóctones”
da autoridade colonial (é verdade que também, em muitos e muitos casos, sucedeu
o contrário, um despertar para a luta de libertação nacional. Já com o Islão, a
relação com a libertação do continente era muito mais próxima). O colonialismo
dominou através do medo, da insegurança, da suspeita generalizada e da tortura
do corpo e da alma.
Para a África actual as tradições ancestrais degeneraram, em muitos casos, em
práticas criminais. São frequentes os casos de perseguição e assassinato de
albinos para adquirir partes dos seus corpos (com especial incidência na
Tanzânia) para criar amuletos e fetiches que trazem riqueza, ou rituais ligados
a aberturas de túmulos e profanação de cadáveres (no Benim) ou, ainda,
assassinato de crianças, etc. Por trás de tudo isto está a mercantilização
desses rituais.
Os
processos de aculturação inerentes ao desenvolvimento não se socializaram, em
virtude da característica do próprio desenvolvimento. As políticas actuais de
desenvolvimento aplicadas no continente são políticas descaracterizadas que
cavam enormes fossos de desigualdade social. São políticas de concentração de
capital e não de socialização da produção. São políticas de concentração da
riqueza, não geradoras de processos de democracia económica. Num mundo em que o
objectivo é riqueza e Poder as espiritualidades africanas corrompem-se, afastam-se
dos seus contextos rurais, para mais quando o desenvolvimento urbano é caótico
e assenta num modelo neocolonial, alienígena.
As culturas e costumes africanos pertencem a este mundo. Os que mantêm as
tradições ancestrais reclamam credibilidade, apesar dos múltiplos desafios que
enfrentam. África tem um passado e, nesses mesmo passado, valores culturais,
mas esse passado – independentemente de toda a sua glória – foi, também, o da
sua derrota perante a invasão europeia. A luta de libertação nacional foi uma
ruptura com a própria tradição, embora a tivesse absorvido, representou uma
transformação na qual a tradição se inseria, participava e esse foi um momento
de aculturação real.
O desenvolvimento cultural em África é fundamental para edificar um poderio
material que garanta a soberania e o Poder de decisão no domínio político,
económico, social e cultural. Este poderio material não é apenas crescimento do
PIB, é também crescimento do Índice de Desenvolvimento Humano (que por sua vez
não é apenas educação e licenciaturas a eito, é também qualidade de ensino,
educação como direito e não como negócio, qualidade de vida, de ambiente, saúde
como direito e não como negócio, etc.). E não se chega lá através da
concentração de riqueza, mas pela justa distribuição da mesma, nem através da
especulação mas, sim, através da produção.
África necessita pôr-se corajosamente em causa. Tem de quebrar os ídolos e
adquirir conhecimento científico e tecnológico. Tem de olhar para si e para o
mundo, não para o próprio umbigo. Não bastam algumas fábricas, investimento
privado, respeitar tradição, resgatar valores…Aqui o único valor a resgatar é o
futuro.
África necessita de uma lógica de ruptura com o capitalismo…
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