António
Domingues e a sua equipa podem ser os melhores gestores da banca do mundo, mas
a atitude arrogante que estão a tomar é inaceitável.
António
Pacheco Pereira – Público, opinião
O
conflito entre a maioria dos partidos parlamentares e da opinião pública e António Domingues e os novos
administradores da Caixa Geral de Depósitos e as demissões causadas
nos governos (neste e no anterior) pelos falsos títulos académicos são eventos
com causas próximas. O seu ponto em comum é a contínua degradação da política e
do pessoal político, em complemento e em simbiose com a degradação do Estado
nas suas componentes políticas, profissionais e técnicas. É o resultado de
processos de demagogia, alimentados por uma opinião pública e uma comunicação
social populistas, e por uma deterioração acentuada dos grandes partidos, em
particular do PSD e PS, com mecanismos oligopólicos, e a crescente importância
de carreiras pseudoprofissionalizadas, que se fazem dentro dos partidos por
critérios que pouco têm que ver com a seriedade, o mérito, a capacidade
política, profissional e técnica, tendo mais que ver com fidelidades e intrigas
de grupo e com o acesso ao poder do Estado por via do poder partidário.
Enquanto
uns vão com náusea, com uma mão no nariz mas aceitando ou pedindo privilégios e
salários elevados, servir relutantemente a sua democracia e o seu país sempre
enojados com essa coisa vil da política, visto que eles são técnicos ou
académicos ou seja lá o que for, tudo menos ser o que são quando aceitam certos
lugares; outros sabem que, uma vez “entrados”, se forem obedientes e prestarem
os serviços requeridos sem pestanejarem e fizerem muitas vezes o sale
boulot, “nunca de lá saem”. Vão dos gabinetes governamentais para as autarquias,
para os lugares de nomeação governamental, para deputados, e por aí adiante.
Esta é uma especialidade das “jotas” dos grandes partidos.
A
isto se soma o desinvestimento do Estado nas qualificações profissionais e
técnicas na alta função pública, com salários cada vez menos competitivos,
falsos outsourcings, o recurso sistemático a uma espécie de segunda linha,
que na verdade tem sido a primeira, de serviços qualificados, seja de
tecnocratas, de escritórios de advogados ou de empresas de consultoria
financeira. Os pareceres e os estudos milionários tornaram-se norma no mesmo
Estado, que não é capaz de criar uma administração assente no mérito que
permita ao Estado ter recursos humanos para todos estes requisitos técnicos,
sendo o recurso a serviços externos a excepção.
O
Estado deveria ter na sua administração capacidade técnica e profissional de
primeira água, juristas, mecânicos, jardineiros, gestores, administradores
hospitalares, técnicos fiscais, polícias, carpinteiros, especialistas em
finanças e em mercados, deveria pagar salários compatíveis e promover carreiras
de mérito com critérios de exigência. Esse é o ideal burocrático que substituiu
na Europa as hierarquias de nascimento ou o inventário das “almas mortas” do
livro de Gogol, mas que em Portugal ainda não arrancou de uma cultura de cunhas
e patrocinato. Daí, “em baixo”, os boys e, “em cima”, os tecnocratas
relutantes, muitas vezes desprovidos do mínimo senso político e noção de
serviço público, condição para assumirem funções num Estado democrático.
O caso da nova administração da CGD é
exemplar de todos estes equívocos. Toda a gente já percebeu que o acordo feito
entre o ministro das Finanças e os quadros bancários que entendeu recrutar para
a Caixa passava pela manutenção ou mesmo melhoria dos altos salários que já
recebiam, e pela isenção da categoria de gestores públicos, numa lei feita à
medida, incluindo a desobrigação de apresentação de declarações de património.
Foi tudo mal feito, porque o ministro muito provavelmente prometeu isenções que
não são legais e os candidatos a administradores pediram um estatuto de
privilégio inaceitável em quem vai trabalhar para o Estado e, por muito que não
queiram sujar as suas impolutas mãos com essa coisa menor da política, em
cargos que têm uma forte componente política.
O
seu objectivo não pode ser apenas tornar a CGD “competitiva” com a banca
privada, como hoje se repete por todo o lado para justificar os seus salários.
Não. É suposto que a CGD tenha também funções em relação à economia portuguesa
que não se esgotam nessa “competitividade” e podem até prejudicá-la de algum
modo. A CGD é pública por uma decisão política, como política era a intenção do
PSD de a privatizar, e só tem sentido como banco do Estado se tiver funções
distintas da banca em geral, incluindo alguma regulação indirecta do sector.
Isso não significa, como é óbvio, que seja mal gerida ou que se continuem os
desmandos cometidos por comissários políticos, cujo papel no agravamento dos
problemas da Caixa não pode ser esquecido. Que esta administração rompa com
essa época só pode ser saudado, mas isso não lhe dá carta-branca para se
comportar como está a comportar-se.
Todas
as razões para este acordo são más. António Domingues e a sua equipa podem ser
os melhores gestores da banca do mundo, mas a atitude arrogante que estão a
tomar é inaceitável. Eles vão trabalhar para um banco público, recapitalizado
com dinheiros públicos, receber salários pagos pelos contribuintes, respondem
perante uma tutela que é a do Estado. Caem-lhes os parentes na lama se neste
contexto tiverem obrigações de transparência e tiverem de ver os seus barcos e
casas numa declaração? É incómodo ter estes dados atirados à rua e às “redes
sociais” para gáudio de um público sedento de “espiolhar” os ricos e que só
acha bem que os jogadores de futebol ganhem fortunas?
Tudo
isso é verdade. Pode inclusive colocar em relação a alguns dos novos membros
estrangeiros da administração questões de segurança? É verdade, e devem ser
acautelados por um formulário que contém dados que devem ser conhecidos da
entidade fiscalizadora — o Tribunal Constitucional —, mas que não deviam ser,
nem é necessário que o sejam, públicos, porque claramente se violam regras de
privacidade que o Estado deveria acautelar. Se o tribunal deve conhecer
endereços de casas e matrículas dos carros, não há nenhuma necessidade de isso
ser público. Este é um problema que já se colocava para todas as outras
declarações, mas com o medo da demagogia ninguém o levantou antes.
É
verdade que todo este processo de controlo dos rendimentos e património dos
cargos políticos e públicos está inquinado pela demagogia. É voyeurístico onde
não deve, violador da privacidade desnecessariamente, desigual, deixa de fora
muita gente que não deveria deixar, e é ineficaz onde o deveria ser, mas a
obrigação de controlo patrimonial tem sentido para cargos em que o exercício de
um poder qualquer envolve dinheiros e bens públicos. O problema é que esta
administração, que certamente está de acordo com legislação punitiva para esses
inferiores dos “políticos”, acha que os meios em que se move não devem ter
escrutínio público.
Ora,
eles devem saber melhor do que ninguém, porque estão lá no meio, que os abusos,
e mesmo os crimes feitos no âmbito da elite de confiança que manda neste país,
não são muito distintos dos “negócios” feitos em baixo nas campanhas eleitorais
e nos esquemas dos boys. São é mais caros. Passam-se por detrás das
paredes sumptuosas dos grandes escritórios de advogados, em almoços recatados
nos restaurantes discretos usados pela elite económica e financeira, nos hotéis
de luxo do Algarve e nas residências da Quinta da Marinha ou na Comporta, entre
gente que sabe escolher os vinhos e a ordem dos talheres, que convive com outros
poderosos de todas as listas dos que “mandam” em Portugal, mas tudo o que se
passa “em baixo” passa-se em cima: manipulação da informação feita pelas
grandes empresas nacionalizadas para receberem rendas indevidas, violações das
regras da concorrência, fugas à regulação, “criatividade fiscal” nos offshores,
fraude fiscal, corrupção, tráfico de influências, amiguismo, e desprezo pelo
bem público e muito amor aos bens privados.
Por
tudo isto, coloquem na rua os boys que falsificam as declarações e
não os mudem apenas de emprego para outro lugar de confiança política, e peçam
aos senhores administradores da CGD que cumpram a lei. Se há mudanças a fazer
de modo a que certos dados das declarações possam ser confidenciais, embora
conhecidos do tribunal, procedam em consequência na Assembleia da República,
não para estes homens em particular mas para todos. Se isto acontecesse,
poderia sair-se desta confusão ainda com vantagem e melhoria para o país, mas a
continuar assim, vai acabar tudo mal.
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