sábado, 5 de novembro de 2016

DEGRADAÇÃO DA POLÍTICA E DO ESTADO



António Domingues e a sua equipa podem ser os melhores gestores da banca do mundo, mas a atitude arrogante que estão a tomar é inaceitável.

António Pacheco Pereira – Público, opinião

O conflito entre a maioria dos partidos parlamentares e da opinião pública e António Domingues e os novos administradores da Caixa Geral de Depósitos e as demissões causadas nos governos (neste e no anterior) pelos falsos títulos académicos são eventos com causas próximas. O seu ponto em comum é a contínua degradação da política e do pessoal político, em complemento e em simbiose com a degradação do Estado nas suas componentes políticas, profissionais e técnicas. É o resultado de processos de demagogia, alimentados por uma opinião pública e uma comunicação social populistas, e por uma deterioração acentuada dos grandes partidos, em particular do PSD e PS, com mecanismos oligopólicos, e a crescente importância de carreiras pseudoprofissionalizadas, que se fazem dentro dos partidos por critérios que pouco têm que ver com a seriedade, o mérito, a capacidade política, profissional e técnica, tendo mais que ver com fidelidades e intrigas de grupo e com o acesso ao poder do Estado por via do poder partidário.

Enquanto uns vão com náusea, com uma mão no nariz mas aceitando ou pedindo privilégios e salários elevados, servir relutantemente a sua democracia e o seu país sempre enojados com essa coisa vil da política, visto que eles são técnicos ou académicos ou seja lá o que for, tudo menos ser o que são quando aceitam certos lugares; outros sabem que, uma vez “entrados”, se forem obedientes e prestarem os serviços requeridos sem pestanejarem e fizerem muitas vezes o sale boulot, “nunca de lá saem”. Vão dos gabinetes governamentais para as autarquias, para os lugares de nomeação governamental, para deputados, e por aí adiante. Esta é uma especialidade das “jotas” dos grandes partidos.

A isto se soma o desinvestimento do Estado nas qualificações profissionais e técnicas na alta função pública, com salários cada vez menos competitivos, falsos outsourcings, o recurso sistemático a uma espécie de segunda linha, que na verdade tem sido a primeira, de serviços qualificados, seja de tecnocratas, de escritórios de advogados ou de empresas de consultoria financeira. Os pareceres e os estudos milionários tornaram-se norma no mesmo Estado, que não é capaz de criar uma administração assente no mérito que permita ao Estado ter recursos humanos para todos estes requisitos técnicos, sendo o recurso a serviços externos a excepção.

O Estado deveria ter na sua administração capacidade técnica e profissional de primeira água, juristas, mecânicos, jardineiros, gestores, administradores hospitalares, técnicos fiscais, polícias, carpinteiros, especialistas em finanças e em mercados, deveria pagar salários compatíveis e promover carreiras de mérito com critérios de exigência. Esse é o ideal burocrático que substituiu na Europa as hierarquias de nascimento ou o inventário das “almas mortas” do livro de Gogol, mas que em Portugal ainda não arrancou de uma cultura de cunhas e patrocinato. Daí, “em baixo”, os boys e, “em cima”, os tecnocratas relutantes, muitas vezes desprovidos do mínimo senso político e noção de serviço público, condição para assumirem funções num Estado democrático.

O caso da nova administração da CGD é exemplar de todos estes equívocos. Toda a gente já percebeu que o acordo feito entre o ministro das Finanças e os quadros bancários que entendeu recrutar para a Caixa passava pela manutenção ou mesmo melhoria dos altos salários que já recebiam, e pela isenção da categoria de gestores públicos, numa lei feita à medida, incluindo a desobrigação de apresentação de declarações de património. Foi tudo mal feito, porque o ministro muito provavelmente prometeu isenções que não são legais e os candidatos a administradores pediram um estatuto de privilégio inaceitável em quem vai trabalhar para o Estado e, por muito que não queiram sujar as suas impolutas mãos com essa coisa menor da política, em cargos que têm uma forte componente política.

O seu objectivo não pode ser apenas tornar a CGD “competitiva” com a banca privada, como hoje se repete por todo o lado para justificar os seus salários. Não. É suposto que a CGD tenha também funções em relação à economia portuguesa que não se esgotam nessa “competitividade” e podem até prejudicá-la de algum modo. A CGD é pública por uma decisão política, como política era a intenção do PSD de a privatizar, e só tem sentido como banco do Estado se tiver funções distintas da banca em geral, incluindo alguma regulação indirecta do sector. Isso não significa, como é óbvio, que seja mal gerida ou que se continuem os desmandos cometidos por comissários políticos, cujo papel no agravamento dos problemas da Caixa não pode ser esquecido. Que esta administração rompa com essa época só pode ser saudado, mas isso não lhe dá carta-branca para se comportar como está a comportar-se.

Todas as razões para este acordo são más. António Domingues e a sua equipa podem ser os melhores gestores da banca do mundo, mas a atitude arrogante que estão a tomar é inaceitável. Eles vão trabalhar para um banco público, recapitalizado com dinheiros públicos, receber salários pagos pelos contribuintes, respondem perante uma tutela que é a do Estado. Caem-lhes os parentes na lama se neste contexto tiverem obrigações de transparência e tiverem de ver os seus barcos e casas numa declaração? É incómodo ter estes dados atirados à rua e às “redes sociais” para gáudio de um público sedento de “espiolhar” os ricos e que só acha bem que os jogadores de futebol ganhem fortunas?

Tudo isso é verdade. Pode inclusive colocar em relação a alguns dos novos membros estrangeiros da administração questões de segurança? É verdade, e devem ser acautelados por um formulário que contém dados que devem ser conhecidos da entidade fiscalizadora — o Tribunal Constitucional —, mas que não deviam ser, nem é necessário que o sejam, públicos, porque claramente se violam regras de privacidade que o Estado deveria acautelar. Se o tribunal deve conhecer endereços de casas e matrículas dos carros, não há nenhuma necessidade de isso ser público. Este é um problema que já se colocava para todas as outras declarações, mas com o medo da demagogia ninguém o levantou antes.

É verdade que todo este processo de controlo dos rendimentos e património dos cargos políticos e públicos está inquinado pela demagogia. É voyeurístico onde não deve, violador da privacidade desnecessariamente, desigual, deixa de fora muita gente que não deveria deixar, e é ineficaz onde o deveria ser, mas a obrigação de controlo patrimonial tem sentido para cargos em que o exercício de um poder qualquer envolve dinheiros e bens públicos. O problema é que esta administração, que certamente está de acordo com legislação punitiva para esses inferiores dos “políticos”, acha que os meios em que se move não devem ter escrutínio público.

Ora, eles devem saber melhor do que ninguém, porque estão lá no meio, que os abusos, e mesmo os crimes feitos no âmbito da elite de confiança que manda neste país, não são muito distintos dos “negócios” feitos em baixo nas campanhas eleitorais e nos esquemas dos boys. São é mais caros. Passam-se por detrás das paredes sumptuosas dos grandes escritórios de advogados, em almoços recatados nos restaurantes discretos usados pela elite económica e financeira, nos hotéis de luxo do Algarve e nas residências da Quinta da Marinha ou na Comporta, entre gente que sabe escolher os vinhos e a ordem dos talheres, que convive com outros poderosos de todas as listas dos que “mandam” em Portugal, mas tudo o que se passa “em baixo” passa-se em cima: manipulação da informação feita pelas grandes empresas nacionalizadas para receberem rendas indevidas, violações das regras da concorrência, fugas à regulação, “criatividade fiscal” nos offshores, fraude fiscal, corrupção, tráfico de influências, amiguismo, e desprezo pelo bem público e muito amor aos bens privados.

Por tudo isto, coloquem na rua os boys que falsificam as declarações e não os mudem apenas de emprego para outro lugar de confiança política, e peçam aos senhores administradores da CGD que cumpram a lei. Se há mudanças a fazer de modo a que certos dados das declarações possam ser confidenciais, embora conhecidos do tribunal, procedam em consequência na Assembleia da República, não para estes homens em particular mas para todos. Se isto acontecesse, poderia sair-se desta confusão ainda com vantagem e melhoria para o país, mas a continuar assim, vai acabar tudo mal.

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