Preferi
acompanhar o percurso do ex-primeiro ministro português até ao cargo com
silêncio em vez de futurologia, prudência em vez dos arroubos patrióticos,
quando não patrioteiristas provincianos, de uma elite doméstica comunicante e
politóloga que, de facto, não enxerga para lá de Badajoz mesmo que às vezes voe
até Bruxelas.
José
Goulão – AbrilAbril, opinião
A
eleição de António Guterres para o cargo de secretário-geral das Nações Unidas
mereceu uma atenção mediática invulgar, o que é um prenúncio excelente;
infelizmente não esteve em foco, dentro dos mil e um registos que acompanharam
as peripécias do processo, o desempenho catastrófico e desprestigiante do
titular ainda em funções e que, às ordens dos interesses mais nefastos que
guiam os negócios mundiais, conduziu a ONU para a negação da sua própria Carta,
tornando-se parceira de guerra em vez de intermediária da paz. Digamos que
faltou o essencial na abordagem do tema.
Preferi
acompanhar o percurso do ex-primeiro ministro português até ao cargo com
silêncio em vez de futurologia, prudência em vez dos arroubos patrióticos,
quando não patrioteiristas provincianos, de uma elite doméstica comunicante e
politóloga que, de facto, não enxerga para lá de Badajoz mesmo que às vezes voe
até Bruxelas.
A
sua prosaica indignação, até espantação, com os golpismos anti candidatura de
Guterres (abusivamente entendidos como «anti-Portugal») desenvolvidos pelas
entidades e cérebros da União Europeia do costume é uma pérola própria de quem
pensa pelos conteúdos dos jornais europeus ditos «de referência», pelo que não
vive neste mundo, quanto muito numa realidade paralela.
Silêncio
e prudência também porque, por muito que se explique e argumente – o que nem
sequer é o caso –, não existe qualquer ligação prática entre Guterres
secretário-geral e hipotéticas vantagens para Portugal: a nacionalidade do
responsável executivo da ONU não é um instrumento do cargo, por natureza
supranacional.
No
limite, seria extraordinário para os portugueses, e para os mais de sete mil
milhões de pessoas no planeta, que António Guterres fizesse com que a ONU
saísse do atoleiro para que foi conduzida pelos principais dirigentes mundiais
da actualidade e travasse os preparativos de guerra global cujo desenvolvimento
apenas depende do momento em que for ateado um dos mil e um rastilhos
espalhados pelo Médio Oriente e regiões adjacentes.
Uma
vez António Guterres eleito secretário-geral da ONU, e devido às diferenças
óbvias dos cargos, a sua actuação como primeiro-ministro de Portugal também não
deve servir como ponto de referência dogmático para o que se segue. Guterres
teve, à frente do governo de Lisboa, espaço e condições para proporcionar
melhor vida aos portugueses – o que agora absurdamente se lhe exige –, mas essa
foi a oportunidade por ele perdida ao limitar-se a conduzir Portugal na
tragédia neoliberal, cujas portas foram abertas pelo inefável Dr. Soares ao
chamar o FMI, exponenciada por Cavaco à mais elevada potência, e só agora
timidamente barrada, mas sem coragem para enfrentar a sério os ogres de
Bruxelas e Berlim. Os mesmos que bem tentaram tramar Guterres, o que nada teve
de surpreendente.
O
que ditará o êxito ou fracasso do Eng. António Guterres como secretário-geral
da ONU são assuntos muito mais abrangentes e ainda mais complexos; fazendo-lhe
desde já a justiça de pensar que aprendeu com a sua experiência internacional
desde que deixou a política portuguesa, e que conhece o cadáver putrefacto da
actual diplomacia internacional com o qual vai ter de lidar.
O
Eng. Guterres deve saber – oxalá saiba – que problemas como os da Síria não
resultam apenas de Assad ou da Rússia, do Irão ou do Hezbollah; que a
cumplicidade com o terrorismo internacional (incluindo o terrorismo de Estado)
de países como os Estados Unidos, França, Reino Unido, Israel, Turquia e Arábia
Saudita e entidades como a NATO é uma realidade que não existe apenas nas
chamadas «teorias da conspiração»; que o problema esmagador dos refugiados no
mundo tem a ver com as guerras de rapina e domínio geoestratégico, com a
devassa e destruição dos recursos humanos, naturais e o ambiente do planeta,
com as actividades lucrativas da guerra, com o enraizamento da ditadura
financeira global.
Restaurar
a dignidade, a neutralidade e o balanço democrático possível na ONU; activar e
tornar eficaz o papel da ONU em todos os processos de paz justa e duradoura dos
quais tem estado ausente ou onde é inoperante, como os da Palestina, do Sahara
Ocidental, da reunificação de Chipre, da Síria; envolver positivamente a ONU na
neutralização dos efeitos nefastos da ressurreição do nazismo incentivada no
Leste da Europa pelo fatídico golpe na Ucrânia, integrado numa corrida
armamentista e de cerco realizada pela União Europeia e a NATO; estes são
apenas alguns passos do exigente programa que o novo secretário-geral tem pela
frente.
Os
condicionalismos são muitos, a começar pela manipulação do Conselho de
Segurança como fonte de tudo o que tem feito jorrar sangue no mundo, do
Afeganistão à Líbia, do Mali, Nigéria e República Centro-Africana ao Iémen.
Em
boa verdade, o programa é pesado, mas a metodologia para a mudança é intuitiva:
estudar a actuação de Ban Ki-moon e fazer exactamente o contrário. Este é o
melhor caminho para a ONU deixar de ser um instrumento da indústria de guerra,
dos mais egoístas interesses mundiais e transformar-se numa entidade ao serviço
da paz e dos direitos humanos de todos – e não apenas de alguns.
Tal
missão exigirá de Guterres muita coragem, destemida frontalidade, firme
personalidade, argúcia e sagacidade, elevado sentido de risco e muita
clarividência perante a falsidade, a duplicidade de linguagens e os conceitos
propagandísticos em que assentam os assuntos internacionais, submetendo o
humanitarismo, a democracia e a paz como reféns dos êxitos da guerra
generalizada. Poderia, porém, encarar-se este desafio de outra maneira? Valeria
a pena candidatar-se a secretário-geral para que na ONU – e no mundo – tudo
continue na mesma?
Foto: Agência Lusa
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