Há uma
forma mais eficaz do que qualquer outra quando alguém não quer que os outros
descubram que se é dono de uma sociedade. Essa forma são as ações ao portador.
Não há nomes inscritos em lado nenhum, não existem titulares declarados a
entidades reguladoras. São ações detidas apenas por quem as possui fisicamente
e, em regra, costumam estar guardadas em cofres. As da Portmill estavam. A
Portmill foi uma sociedade usada para adquirir posições relevantes nos maiores
sectores de atividade da economia angolana. No verão de 2009, conseguiu ganhar
a privatização parcial da operadora pública de telecomunicações, a Movicel,
ficando com 40% da empresa. E pouco depois adquiriu 24% do capital social do
BES Angola (BESA), um dos bancos mais robustos do país, por 290 milhões de
euros.
Já
nessa altura, para Rafael Marques, o mais conhecido jornalista angolano fora de
Angola, havia um triunvirato por trás da Portmill: Hélder Vieira Dias, ministro
e chefe da Casa Militar da Presidência da República, o general Kopelipa;
Leopoldino Fragoso do Nascimento, chefe de comunicações da Presidência, general
Dino; e Manuel Vicente, então presidente da Sonangol e, pela inerência de estar
à frente da petrolífera estatal angolana, o verdadeiro tesoureiro do regime.
Cada um dos três teria um terço das ações da Portmill. Nunca isso foi
confirmado oficialmente. Em agosto de 2010, o jornal “Público” escrevia que
tinha confrontado o BESA com a revelação feita por Rafael Marques, mas não
obteve qualquer resposta.
Até
hoje o assunto não tinha sido esclarecido. A acusação de Manuel Vicente por
corrupção ativa agravada na semana passada, numa investigação concluída por
duas procuradoras do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal),
Inês Bonina e Patrícia Barão, confirma agora que o jornalista angolano, tão
criticado pelo regime de Luanda ao longo de anos, estava a dizer a verdade: “A
sociedade Portmill era utilizada pelo arguido Manuel Vicente no desenvolvimento
dos seus negócios privados”, diz o despacho de acusação em que também foi acusado
o advogado português Paulo Blanco, e Orlando Figueira, o procurador do DCIAP
que arquivou em tempo recorde as suspeitas de branqueamento de capitais que
existiam sobre o atual vice-presidente de Angola a troco, segundo o MP, de 763
mil euros.
FAZ
DE CONTA QUE NÃO É
Houve
duas investigações que Orlando Figueira arquivou em tempo recorde envolvendo o
nome de Manuel Vicente. Uma delas, desencadeada a partir do sistema de alertas
bancários e centrada na origem do dinheiro para a compra de um apartamento de
3,8 milhões de euros no edifício de luxo do Estoril-Sol foi encerrada a 16
janeiro de 2012. A outra investigação, arquivada por Figueira um mês depois, a
15 de fevereiro, pouco antes de sair com uma licença sem vencimento, tinha que
ver com a Portmill e outras sociedades do mesmo género, como a Damer Indústrias
S.A. e a Nasaki Oil&Gás, que serviram para adquirir posições estratégicas
em Angola de forma camuflada e que foram denunciadas em Portugal por Rafael
Marques e pelo antigo embaixador angolano Alfredo Parreira. Olhando para trás,
os dois inquéritos tinham mais em comum do que poderia parecer.
Inês
Bonina e Patrícia Barão aperceberam-se de que no inquérito arquivado sobre o
apartamento do Estoril-Sol não era tanto o valor avultado que estava em causa na
compra do apartamento de 3,8 milhões de euros por Manuel Vicente, porque de
facto o atual número dois de José Eduardo dos Santos tinha rendimentos oficiais
suficientes para o adquirir. Era sobretudo outra coisa: de onde exatamente
tinha vindo aquele dinheiro para o apartamento? Quem o pagou?
O
apartamento de Vicente no Estoril-Sol foi sendo pago aos poucos, desde que
ainda estava em planta. E houve tranches cujas transferências bancárias vieram
de diferentes identidades. A Portmill fez duas dessas transferências, ambas no
mesmo dia, a 20 de agosto de 2008, no valor de 383 mil euros. As procuradoras
descobriram que a mesma Portmill pagou também tranches dos apartamentos
comprados no Estoril-Sol por mais dois angolanos: precisamente, o general
Kopelipa e o general Dino. E não foi só isso, também a Damer Industries,
mencionada nas denúncias de Adriano Parreira e Rafael Marques, surgia como
outra das sociedades que pagaram tranches do apartamento de Vicente: 382 mil
euros em julho de 2007. E houve ainda uma terceira sociedade, a Delta Shipping
Overseas UK, que pagou 383 mil euros do imóvel do vice de “Zedu” em janeiro de
2008, sendo que quer a Delta quer a Damer Industries cobriram tranches da mesma
ordem de grandeza para os apartamentos do general Kopelipa e do general Dino.
Apesar
de relevantes, estes factos não foram mencionados no despacho de arquivamento
feito por Orlando Figueira em janeiro de 2012, limitando-se a concluir sobre
Manuel Vicente e sobre a compra do seu apartamento do Estoril-Sol: “É manifesto
que tem capacidade financeira, mais do que suficiente, para adquirir a referida
fração autónoma. Donde, tudo aponta no sentido de que o dinheiro utilizado na
aquisição da referida fração autónoma tem proveniência lícita”.
A
relação de Vicente com a Portmill, comprovada agora pelo MP, tem um alcance
maior do que parece. A compra dos 24% do BESA pela Portmill foi feita à custa
de um empréstimo concedido em dezembro de 2009 pelo Banco Angolano de
Investimentos (BAI), cujo vice-presidente era o próprio Manuel Vicente e cujo
maior acionista era a Sonangol, sendo um exemplo claro de como o número dois do
Governo de Angola lidava com potenciais conflitos de interesses que pudesse ter
e como os seus negócios pessoais se confundiam com os negócios da petrolífera angolana.
No
caso da aquisição de 40% da Movicel ao Estado angolano em agosto de 2009,
Manuel Vicente, como um dos donos ocultos da operadora móvel do Estado, passou
a estar numa dupla posição de vantagem. Porque fazia parte da administração da
Unitel, a líder do mercado das comunicações móveis, de que a Sonangol é
acionista, tinha informações privilegiadas que podia usar em seu proveito como
acionista pessoal da segunda maior operadora angolana.
No
BESA, desde que a Portmill passou a ser o segundo maior acionista do banco,
logo a seguir ao BES, que ficou com 51,9%, a sociedade foi sendo sempre representada
nas assembleias gerais pelos generais Kopelipa e Dino. Mesmo no período crítico
em que o presidente do banco angolano, Álvaro Sobrinho, e o presidente do BES,
Ricardo Salgado, entraram em guerra aberta, Vicente manteve-se sempre na sombra.
Micael
Pereira – Expresso – Foto: Carlos Allegri / Reuters
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