Uma
das coisas irritantes da avaliação do presente é a ideia de que “isto nunca
esteve tão mal”
Ana
Sá Lopes – jornal i, editorial
Enquanto
desabafo de café, emocional, faz sentido: afinal, o tempo em que éramos jovens
era o melhor de todos. A reescrita do passado enquanto lugar de prazeres
etéreos é um mecanismo automático e algum esquecimento é preciso para continuar
a marcha da vida dos povos.
Veja-se
a Europa: foi preciso uma grande dose de esquecimento para trancar os traumas
da II Guerra Mundial num poço, pôr uma pedra em cima e, sobre essa pedra,
construir uma nova igreja – a da Europa como lugar primeiro da solidariedade,
teoria agora em fim de ciclo.
Infelizmente,
as memórias de passados felizes são coisas íntimas e humanamente compreensíveis
que não resistem à lógica, à estatística e à política. Esta semana, no
lançamento da edição definitiva de “O Canto e as Armas”, de Manuel Alegre, que
foi publicado pelo primeira vez faz agora 50 anos, Alegre desabafava que “é
muito difícil transmitir às novas gerações o sufoco daquele tempo”. Nada mais
verdadeiro. É, aliás, quase impossível.
Como
explicar que havia uma ditadura, uma guerra colonial, caixões de Pedros
soldados, uma pobreza assustadora, uma classe média assustada e remediada, uma
função pública que tinha de assinar um papel a declarar a sua aversão ao comunismo?
Onde as mulheres tinham um bocadinho mais de direitos do que os animais têm
hoje? Esse país que hoje parece intangível, incompreensível, quase uma lenda
para as gerações mais jovens, era o que havia há 50 anos.
“O
Canto e as Armas” é o retrato bruto desse país, feito por um poeta muito jovem
e combatente. Mas esse tempo negro foi também o tempo dos homens excecionais.
Manuel Alegre é um desses homens excecionais que o país – e as gerações mais
jovens – devia saber homenagear condignamente. Mas, se calhar, muitos não
percebem. Nem o percebem. Mas os poetas têm a dádiva de também não precisar
disso.
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