José
Soeiro | Expresso | opinião
É
a primeira vez, em mais de dez anos, que se convoca uma greve geral na PT/MEO. Não é caso para menos. Quem queira
um exemplo sobre a capacidade de interesses financeiros abarbatarem e
desmembrarem uma empresa estratégica construída ao longo de décadas com
investimento público, aqui o tem. Quem queira perceber as novas receitas de “emagrecimento”
das empresas (isto é, de despedimentos em massa) encapotadas sob as mais
criativas figuras legais, olhe para a PT/MEO. Está lá tudo, ou quase.
DO
BES À ALTICE: A CANIBALIZAÇÃO DE UMA EMPRESA ESTRATÉGICA
Criada
em 1994 a partir da fusão de várias empresas, a PT era uma potência pública que
poderia, se se quisesse, assegurar o controlo e o desenvolvimento de uma
insfraestrutura estratégica - as redes de telecomunicações – e capaz de
regular, a favor do interesse comum, as práticas em todo o setor. Mas desde há
muito tempo que a PT foi um joguete nas mãos de vários interesses políticos e
económicos. Com a abertura ao capital privado, iniciou-se a sangria do grupo a
favor de investimentos duvidosos no BES, de maus negócios de alienação de
empresas (como a Vivo) e da distribuição espetacular de dividendos. Só em 2010,
a PT entregou aos acionistas o maior dividendo alguma vez pago em Portugal:
1500 milhões de euros, livres de impostos e pagos antecipadamente para evitar o
regime fiscal que entraria em vigor em 2011.
O
culminar da canibalização da empresa por interesses privados ocorre com a sua
privatização total, em 2015 (com o governo PSD/CDS), quando a Altice toma conta
da PT por 7,4 mil milhões de euros. O que se seguiu é o que vivemos hoje: um processo
de desagregação da empresa, a prática de assédio moral em larga escala e o
anúncio de um dos maiores despedimentos coletivos encapotados de que há
memória. Mas vamos aos factos.
O
ESTADO QUE PAGUE OS DESPEDIMENTOS? HISTÓRIA DE UMA TENTATIVA FALHADA
O
grupo PT/MEO, hoje nas mãos da Altice, tem cerca de 9600 trabalhadores, dos
quais 3500 não estão no ativo (entre pré-reformas e suspensão de contratos).
Mas o objetivo da Altice é claro há muitos meses: o seu ex-presidente no nosso
país já tinha declarado que a PT tinha, na sua opinião, “o dobro dos trabalhadores necessários ao desenvolvimento do
negócio”. Para se libertar deles, a Altice começou por pôr em campo uma estratégia de terror. Colocou centenas de
trabalhadores sem funções (o que é ilegal) e criou uma “Unidade de Suporte”
(agora intitulada “Unidade de Trabalho Temporário”), para onde enviou cerca de
300 trabalhadores aos quais não são atribuídas tarefas. A par destes mecanismos
de tortura psicológica (que visam fazer com que os trabalhadores acabem por sair
pelo seu próprio pé, em desespero), multiplicaram-se as formas de assédio moral
pela desregulação de horários e pela pressão para a aceitação de “rescisões
amigáveis” que só por cinismo levam esse nome. Tudo isto foi tão escancarado
que a Autoridade para as Condições de Trabalho já levantou, nos últimos meses,
mais de 70 autos de notícia por violação das leis laborais dentro da empresa.
Mas
tudo isto não foi suficiente. Apesar de a Altice ter tido um “desconto” de 1,3
mil milhões de euros quando comprou a empresa, alegadamente para cobrir os
encargos com os trabalhadores ditos “inativos”, e apesar de ter gerado receitas
consolidadas de 2 312 milhões de euros só no ano passado (o melhor desempenho
de todo o Grupo Altice), este fundo de capital estrangeiro que tomou conta da
PT é insaciável. O que queria mais? Desfazer-se de cerca de 3 mil trabalhadores (um
mecanismo para “valorizar financeiramente a empresa”), pondo o Estado a
assumir, por via da Segurança Social, os custos económicos e sociais desta
operação (em valores calculados entre 400 e mil milhões de euros).
O
Governo, e bem, rejeitou que a empresa tivesse o estatuto de “empresa em
reestruturação” como subterfúgio para esta operação. Impedida de
recorrer a esse expediente, eis que surgiu a ideia criativa de utilizar a
figura legal da “transmissão de estabelecimento” para atingir propósitos
semelhantes. Mas a invocação desta disposição legal é, na verdade, uma fraude.
Uma fraude que, contudo, anuncia um novo modus operandi das
multinacionais abutre para encobrirem despedimentos futuros.
VIRAR
A LEI AO CONTRÁRIO: A FRAUDE DA “TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO”
A
inclusão da “transmissão de empresa ou estabelecimento” na lei portuguesa
resulta da transposição de uma norma comunitária (a Diretiva 77/187/CEE). O seu
objetivo era a proteção dos direitos dos trabalhadores no momento em que o
estabelecimento é adquirido por uma outra empresa ou em que há um novo
concessionário. Neste caso, a lei passou a garantir a manutenção dos postos de
trabalho, mesmo quando a entidade empregadora mudava, bem como os direitos
constantes nos seus contratos, o tempo de serviço, cabendo ainda à nova empresa
a responsabilidade por eventuais dívidas existentes.
Ora,
o objetivo da PT/MEO é exatamente o oposto. Primeiro, ficciona-se uma suposta
“transmissão de estabelecimento” que é, na prática, uma cedência de alguns
trabalhadores de determinados departamentos a empresas prestadoras de serviços
(muitas do próprio grupo PT). Depois, obriga-se os trabalhadores a
transferirem-se para empresas sem património ou para testas-de-ferro que
posteriormente tratarão de concretizar os despedimentos colectivos, desta feita
sem o património necessário para pagar as respectivas compensações. Esta
prática não é inédita, mas começa a ser frequente.
Num
caderno do Centro de Estudos Judiciários, refere-se claramente que “no Direito do Trabalho, podemos encontrar a fraude à lei
relativamente à transmissão da empresa ou estabelecimento com o objectivo de
defraudar os direitos e os deveres dos trabalhadores e, na maioria dos casos,
as actuações fraudulentas têm como objectivo impedir a eficácia do princípio da
estabilidade do emprego” (p.100). A utilização deste mecanismo para
“desembaraçar-se elegantemente e sem custos” dos trabalhadores mostra como tem
sido possível “fazer das normas sobre transmissão de empresa ou de
estabelecimento uma utilização que desvirtua por completo um dos seus escopos,
a saber, a manutenção dos direitos dos trabalhadores na hipótese de
transmissão” (p.227). O mecanismo está identificado. E agora?
UMA
MANOBRA QUE NÃO PODE PASSAR
O
que está em curso na PT/MEO é um mesmo um balão de ensaio: como despedir e
precarizar numa empresa com lucros, tentando manipular a lei?
Se
a PT/MEO conseguir recorrer a este expediente agora, muito mais exemplos haverá
no futuro. O que falta saber é que resposta será dada. Pelos trabalhadores da
empresa, em primeiro lugar, que já têm a greve marcada. Mas também pelo Estado
(ACT, tribunais, Governo), pelos partidos, pela sociedade em geral. A afronta
está lançada. Se a deixarmos passar, não duvidemos que outras virão.
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