Pedro
Ivo Carvalho * | Jornal de Notícias | opinião
Tudo
se torna mais custoso de engolir quando não conseguimos conceber, no vasto
oceano da nossa imaginação, algo que se assemelhe à realidade. Portugal vive
neste estado permanente de esquizofrenia concetual, tamanha a confusão entre o
que parece inventado e o que acaba confirmado. Em Pedrógão, em Tancos, em
tantas outras capitulações coletivas perante o nosso fado (franzir o sobrolho e
encolher os ombros enquanto lê esta passagem), perpassa um adormecimento
desculpabilizante que nos serve de amparo. Até à próxima vez. Porque há sempre
uma próxima vez.
Inspirado
no furto de material de guerra do paiol mais famoso da Europa ocidental, o
jornal espanhol "El País" ridicularizou as nossas Forças Armadas
(aliás, desarmadas). Foi uma comoção geral disfarçada de vergonha. Como se
aquela comédia não nos soasse igualmente negra em bom português: um buraco numa
vedação, um paiol carregado de armas letais atrás de uma porta, a
videovigilância em coma há dois anos e os militares que fazem as rondas sem
munições nas armas em parte incerta. Difícil, difícil era não ser assaltado.
Eles,
quem quer que eles sejam, levaram o que lhes coube nos braços. Foi um
trabalhinho bem feito. Pistas? Uma rede internacional de tráfico de armas. Um
grupo com ligações ao mapa dos terroristas. Lemos e ouvimos para todos os
gostos. Só pode ter sido um "inside job", como nas séries
televisivas. Terão sido os tropas que juraram bandeira a ajudar os malfeitores?
As altas patentes militares contorceram-se, o ministro da Defesa condescendeu.
O grau de sofisticação do furto é atordoante. "Muito profissional".
Mas depois voltamos atrás na fita: cortaram uma rede, não havia ninguém a
vigiar durante horas a fio, a videovigilância estava desligada. Muito
profissional em quê?
Quanto
mais se tenta travar este tanque desgovernado, mais ele se precipita na nossa
direção. A Procuradoria-Geral da República tinha aberto um inquérito após ter
recebido informações de que estava a ser preparado um assalto a uma instalação
militar. E o que fez com ele? Aparentemente, nada. Não comunicou o facto ao
Ministério da Defesa nem à Força Aérea, à Marinha ou ao Exército.
Apurem-se
as responsabilidades, promovam-se as exonerações sacrificiais, mas não se perca
a oportunidade de fazer evoluir a discussão para outro patamar, o que
verdadeiramente importa: para que servem as nossas Forças Armadas? Que papel
lhes está reservado e que papel lhes deveria estar reservado? Não será o cúmulo
da inação a que agora assistimos resultado também de um efetivo demasiado longo
e perdido? De patentes redundantes? De benefícios tidos como inegociáveis? Da
pura e simples falta de sentido estratégico? Se quem é pago para nos defender
não consegue defender-se a si próprio, é suposto esperarmos o quê?
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Subdiretor
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