Nuno
Ramos de Almeida | jornal i | opinião
A
liderança do PSD está desesperada e pretende agitar as águas com um discurso
importado de Trump. A esse falso populismo é preciso contrapor uma política
popular que promova a igualdade social e dar o poder à maioria da população
O
líder do PSD, Pedro Passos Coelho, parece querer colmatar a sua falta de
capacidade de mobilizar os seus militantes e de chegar à população macaqueando
uma espécie de discurso racista da supremacia branca. O problema desse discurso
é que, para além de abrir uma caixa de Pandora, pode ter consequências
dramáticas, baseia-se, como é frequente, em mentiras disfarçadas de meias
verdades. O patrono do candidato racista de Loures afirma que a nova lei da
imigração vai permitir uma invasão de imigrantes façanhudos de faca nos dentes
e impedir a expulsão de sanguinolentos facínoras imigrantes. “O que é que vai
acontecer ao país seguro que temos sido se se mantiver esta possibilidade de
qualquer um viver em Portugal?”, queixa-se Passos Coelho, que argumenta que a
nova lei faz com que o Estado perca a possibilidade de expulsar alguém que
tenha cometido crimes graves.
Argumentar
que há uma nova lei da imigração que causa todas essas maleitas é saber que se
está a mentir. Por todo e por junto, foram dadas novas redações aos artigos
132, 88 e 89 da lei que regulamenta a imigração. Na sua formulação anterior, o
artigo 132, excetuando casos de atentado à segurança nacional ou à ordem
pública e de um conjunto de situações, não permitia que fossem expulsos
estrangeiros que tivessem nascido em território português, tivessem filhos
menores a cargo em território português e se encontrassem em Portugal desde
idade inferior a dez anos. Devido a vários casos de pessoas que foram expulsas
por crimes menos graves, como no caso de roubo, a nova formulação da lei apenas
vem precisar que, com exceção de suspeita fundada da prática de crimes de
terrorismo, sabotagem ou atentado à segurança nacional ou de condenação pela
prática de tais crimes, as pessoas não podem ser expulsas nos casos previstos
anteriormente. Defende-se que quem nasceu ou sempre viveu em Portugal e tem
filhos cá, depois de pagar as suas contas à justiça, deve ficar no país em que
sempre viveu e com a sua família.
A
posição é absolutamente coerente com a legislação europeia e com a posição
defendida por Portugal perante as expulsões de portugueses emigrados nos EUA,
que têm família lá, que não têm laços em Portugal e que cometeram iguais
crimes. Veja-se o caso, absolutamente inumano, dos chamados “desterrados” dos
Açores, expulsos dos EUA depois de pagarem os seus crimes na cadeia e impedidos
de voltar a viver com as suas famílias.
O
mesmo acontece com os artigos 88 e 89. Anteriormente, a lei permitia ao
inspetor do SEF dar documentos de residência a quem tivesse entrado legalmente
no território e provasse ter um vínculo de trabalho e ter feito descontos na
Segurança Social. O novo dispositivo apenas torna a situação igual para todos:
deixa de estar ao critério discricionário e diferente de cada inspetor, e passa
a ser automático para quem, tendo entrado legalmente no país, tenha uma
promessa de contrato de trabalho. Lembre--se que uma promessa de trabalho é um
compromisso que é equivalente a um contrato oral.
Infelizmente,
não há nova lei de imigração nem de nacionalidade que regularize a situação de
milhares de trabalhadores clandestinos e a viver em condições de escravidão que
atualmente garantem grande parte da nossa agricultura e até trabalham nas
nossas pescas.
Portugal
tem um problema de falta de gente, e não de imigrantes a mais. Se não aumentar
o número de pessoas que acolhemos, o que vai acontecer é uma crise demográfica
com implicações na nossa economia e na nossa capacidade de sustentar a
Segurança Social. Precisamos de 42 mil imigrantes por ano para manter os 10,4
milhões de residentes que somos, e precisaríamos de 75 mil imigrantes para
manter o nível de população ativa. Estamos muito longe disso.
O
discurso racista e xenófobo tropeça nos números. Não vai haver Portugal
independente se continuarmos a não ter desenvolvimento económico.
Do
que nós precisamos é de leis que deem dignidade de cidadãos às pessoas que vêm
viver e trabalhar cá, não que as criminalizem com um conjunto de mentiras. É
escandaloso, por exemplo, que as unidades públicas de saúde não cumpram a lei,
para permitir tratar e fazer exames gratuitos, no quadro do Serviço Nacional de
Saúde, às mulheres imigrantes indocumentadas, como a lei prevê. Portugal tem
ainda em muitos sítios práticas racistas que violam a própria lei. Essa
ideologia é sustentada pelos políticos que temos.
O
discurso de Donald Trump sobre os mexicanos, que seriam todos um bando de
violadores, é perigosamente parecido com o discurso do candidato de Loures
apoiado pelo PSD, e com a aquiescência e defesa de Passos Coelho, sobre os
ciganos. Ambos apelam aos sentimentos racistas, desmentidos pelos números e
estatísticas, para mobilizar eleitores pelo ódio. Estes discursos dão em
posições cúmplices dos nazis e do Ku Klux Klan, em Trump; e em elogios do PNR
aos candidatos do PSD, em Portugal.
Tão
perigosa como esta abordagem racista e xenófoba são aquelas que, afirmando
contestar estas, as usam para manter os constrangimentos estruturais e os
quadros de dominação e poder atualmente existentes. Reivindicar uma Europa
dominada pelo capital financeiro e pela Alemanha não é defender a igualdade dos
cidadãos que trabalham na Europa, é empobrecer 99% para que 1% continuem a
dominar.
Este
tipo de arautos da modernidade desculpam-se dizendo que estão a combater o
“populismo” enquanto, na prática, estão a manter os privilégios de quem manda e
explora a maioria das pessoas. É preciso separar o trigo do joio: é preciso uma
rutura que permita uma nova política igualitária. O ser igualitária significa
que combate o racismo e a xenofobia, como combate os centros imperiais do capital
financeiro.
Sobre
o populismo devia conseguir--se perceber o que se quer dizer com ele, separando
o insulto corriqueiro de um modo de constituir o político que pode estar
presente numa rutura democrática.
Numa
célebre conferência sobre a questão realizada na London School of Economics em
1967, a intervenção do historiador norte-americano Richard Hof-stadter
intitulava-se “Toda a gente fala de populismo, mas ninguém sabe defini-lo”.
Durante a discussão que se seguiu, Margaret Canovan enumerava sete formas de
populismo e Peter Wiles citava pelos menos 24 “características definidoras”
para, na segunda metade da sua intervenção, enumerar um número assinalável de
exceções que recenseavam muitos movimentos que, embora não verificassem as tais
24 características do populismo, ainda assim eram considerados populistas.
Essa
listagem imensa e diversa começa, segundo Wiles, citado por Marco D’Eramo na
“New Left”, com os levellers (niveladores) e os diggers (cavadores) na
Inglaterra do séc. xvii. Continua no séc. xix com os cartistas, o Partido
Populista dos Estados Unidos da América, os narodniki (a vontade do povo) na
Rússia; no séc. xx, com Gandhi, na Índia; o Sinn Féin (Só Nós), na Irlanda; a
Guarda de Ferro, na Roménia; o Partido Revolucionário Institucional, no México.
E com outros autores a falar dos peronistas, de Fidel Castro, do PCI, do
Partido da Liberdade na Holanda, do Podemos na Espanha, da Frente Nacional em
França, do Movimento Cinco Estrelas em Itália, do Tea Party nos Estados Unidos
da América, assim como do movimento de sinal contrário Occupy, também na
América do Norte. Como se vê, uma ementa com produtos e pratos bastante
diferenciados. Tal como defendem autores como Laclau, o populismo não é um
conteúdo ideológico, mas uma forma de constituir o político, uma forma de fazer
política a partir da delimitação de campos de inimigo e amigo e da disputa de
uma hegemonia que dê sentido a essa dualidade.
Um
dos aspetos interessantes deste aumento exponencial da presença política
cultural e social do populismo é expresso no artigo “O populismo e a nova
oligarquia”, de Marco d’Eramo, em que este, recorrendo à biblioteca da
Universidade da Califórnia, recenseia 6200 artigos e livros sobre este tema no
período que vai de 1920 a 2013 – mais de metade deles foram publicados de 2000
a 2013, e nos últimos três anos deste período foram escritos 1076!
Segundo
D’Eramo, o uso do termo variou ao longo dos anos: de uma conotação positiva até
aos anos 50 passamos para uma conotação que associava o comunismo e o fascismo;
e a partir dos anos 80 há um aumento da utilização da palavra. O autor defende
que neste exagero de alusões ao populismo existe uma espécie de má consciência:
“Enquanto esvaziam a democracia de todo o conteúdo, acusam de ‘pulsões
autoritárias’ qualquer um que se oponha a este esvaziamento (...) o uso
inflacionado do termo ‘populismo’ por parte dos patrícios [da oligarquia]
revela uma inquietude mais recôndita”, afirma D’Eramo.
Há
uma acusação que circula no combate político: quando alguém quer desqualificar
o adversário, apoda-o de “populista”. Aparentemente, o grande perigo que as
nossas sociedade correm não é estarem em crise; não é a política ser monopólio
dos poderosos; não é a economia estar fora da área de decisão dos cidadãos; não
é a corrupção ser um mecanismo normal de funcionamento do sistema; não é a
destruição do Estado social, que foi conquistado pela luta de gerações; não é
as pessoas serem enviadas para a pobreza sem retorno; não é os jovens serem
obrigados a emigrar e os velhos empurrados para a morte – o que é
verdadeiramente grave para os habituais comentadores é o aumento do “populismo”
na Europa.
Dito
de outra forma, a nossa situação de crise social, política e económica deriva
da existência de um regime que serve unicamente uma pequena elite. A crise é o nome
de uma máquina de guerra, de alguns, que transformou uma sociedade injusta numa
ainda mais desigual, a pretexto dessa mesma crise.
A
razão por que 99% da população está muito mais pobre e 1% mais rica – e, desta,
0,01% riquíssima – é que o poder na sociedade está nas mãos dessa poderosa
minoria.
Como
defende Marco d’Eramo no seu artigo citado, no n.o 82 da “New Left Review”, a
Europa atravessa um momento significativo em que a ofensiva oligárquica avança
com a sua estratégia de empobrecimento, e é preciso reivindicar uma verdadeira
política que dê voz à maioria da sociedade para a construção do bem comum.
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