Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Vamos
caminhando para o fim de um verão carregado de tragédias e ventos estiolantes.
Diversificados descuidos humanos, a persistência em políticas centradas em
objetivos de lucro ou ganhos políticos imediatos, o abandono de valores
democráticos na organização da sociedade e do trabalho em contínuas cedências
ao neoliberalismo, são as causas fundamentais do duro sofrimento que os povos
(incluindo o português) experimentam neste delicado período histórico que
vivemos.
Ao
iniciarmos um novo ano de trabalho, há que buscar lufadas de ar fresco que
reponham esperança e confiança no futuro. A discussão do Orçamento de Estado
(OE) deve ser feita com esse objetivo, o que pressupõe uma identificação
profunda entre o que se inscreve no OE e as políticas propostas para tratar dos
problemas concretos das pessoas, das empresas e organizações, da sociedade no
seu todo.
Há
setores da economia que têm andado bem mas mostram défices que urge tratar. A
ideia de o desenvolvimento do país poder assentar na monocultura do turismo e
do imobiliário vem sendo demasiado tolerada e assenta muito no prosseguimento
de políticas de baixos salários. Nas últimos meses, escutei, em várias zonas do
continente e na Madeira, queixas de empresários sobre o "esgotamento da
mão de obra disponível", designadamente no subsetor da restauração. Isto
só é possível por duas razões: não existência de suficiente valorização do
trabalho aí prestado e atraso na definição de novas estratégias empresariais,
face às possibilidades do setor.
Portugal
precisa de valorizar o setor industrial, importantíssimo para criar e
qualificar emprego, favorecer a inovação, gerar riqueza. O debate sobre o OE
deve cumprir esse objetivo. Mas, comentários enviesados sobre o processo de
negociação laboral na Autoeuropa, tratando os trabalhadores como privilegiados
e atribuindo-lhes, e às suas organizações, a responsabilidade por todos os
problemas possíveis e imaginários que a empresa possa vir a ter, só ajudam a
consolidar uma desastrosa matriz de relações de trabalho e de desenvolvimento.
Quem quiser dar um contributo positivo, examine com rigor e não com
pressupostos as posições dos trabalhadores e a ação da CT e dos sindicatos,
proceda a uma análise objetiva sobre o novo "modelo de trabalho" que
a administração implementará, observe práticas na organização e gestão do
trabalho que possam estar a influenciar comportamentos, identifique e analise o
instrumento de regulação de trabalho em que se ancora o modelo, confira se este
podia ou não ser mais favorável à criação de emprego, exponha e interprete o
contexto nacional e europeu em que é formulado.
A
reposição de rendimentos a trabalhadores e reformados foi nos últimos dois
anos, e terá de ser no próximo, opção sustentada no OE. Os bolsos e as
condições de vida da esmagadora maioria continuam muito secos e a economia
nacional pode beneficiar mais da dinamização da procura interna, desde que se
corrijam conceções sobre o investimento e a poupança.
A
redução dos impostos sobre o trabalho, nomeadamente o IRS, o aumento do SMN
integrado numa política de valorização progressiva dos salários em geral,
reacertos na legislação laboral que reanimem a contratação coletiva, diminuam a
precariedade e reponham proteções essenciais aos trabalhadores, são aspetos
essenciais para termos um país mais próspero e equilibrado.
O
Orçamento deve garantir condições para a educação e a saúde e para outros
serviços de utilidade pública. Não existirá uma economia diversificada e
qualificada desprezando a atividade e a qualidade do serviço público. O
necessário acréscimo de investimento será compensado pela criação de emprego e
pela redução da emigração. Além disso, não é expectável que o investimento
privado em geral se anime sem um forte impulso do investimento público. O país
precisa ainda de infraestruturas estruturantes (e sua manutenção) e de uma nova
ação pública que responda à dramática situação da floresta nacional e desenvolva
respostas sistémicas ao aquecimento global.
O
OE de 2018 não pode ser concebido para uma "navegação de cabotagem".
Será importante que o debate em curso confirme não ser essa a opção do Governo
em nenhuma área.
*Investigador
e professor universitário
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