O
grande desafio histórico é certamente esse: como fazer das massas
anônimas, deserdadas e manipuláveis, um povo brasileiro de cidadãos
conscientes e organizados
Leonardo
Boff, Rio de Janeiro | Correio do Brasil | opinião
Entendemos
por cidadania o processo histórico-social que capacita a massa humana de
forjar condições de consciência, de organização, de elaboração de um projeto e
de práticas no sentido de deixar de ser massa e de passar a ser
povo, como sujeito histórico, plasmador de seu próprio destino. O grande
desafio histórico é certamente esse: como fazer das massas anônimas,
deserdadas e manipuláveis, um povo brasileiro de cidadãos conscientes e
organizados.
A
dimensão econômico-produtiva: a pobreza material e política é; entre nós,
produzida e cultivada pelas oligarquias pois assim podem dominar e
explorar melhor as massas. Isto é profundamente injusto.
O
pobre que não tiver consciência das causas de sua pobreza pela exploração não
tem condições de realizar sua emancipação.
A
dimensão politico-participativa: se as pessoas mesmas não lutarem em prol de
sua autonomia e por sua participação social nunca serão cidadãos plenos. Não
tanto o Estado mas a sociedade deve; em suas várias formas de organização
e de luta, assumir esta tarefa.
A
dimensão popular: o tipo de cidadania vigente é de corte liberal-burguês, por
isso inclui os que têm uma inserção no sistema produtivo e marginaliza os
demais. É uma cidadania reduzida. Não se reconhece ainda o caráter
incondicional dos direitos independentemente de posse, de instrução e de
condição social.
A
construção
A
construção da cidadania deve começar lá em baixo e estar aberta a todos. Ela já
é exercida nos inúmeros movimentos sociais e nas associações comunitárias onde
os excluídos constroem um novo tipo de cidadania e de democracia participativa.
A
dimensão de con-cidadania: a cidadania não define apenas a posição do cidadão
face ao Estado; como sujeito de direitos e não como um pedinte (não se há de
pedir nada ao Estado mas reivindicar; os cidadãos devem organizar-se não para
substituir o Estado mas para fazê-lo funcionar).
A
con-cidadania define o cidadão face a outro cidadão, mediante a solidariedade e
a cooperação; como paradigmaticamente foi mostrado na Campanha contra a
Fome; a Miséria e em favor da Vida, herança imorredoura de Herbert de Souza, o
Betinho.
A
cidadania ecológica: cada cidadão e toda a sociedade têm o direito de gozar de
uma qualidade de vida decente. Isso só é possível se houver uma relação de
cuidado e de respeito para com a natureza. E se mostra pela não poluição
do ar, das águas. dos solos e a não quimicalização dos alimentos. Cada cidadão
deve se conscientizar degarantir um futuro à Casa Comum e herdá-la habitável
para as gerações futuras.
A
cidadania
A
cidadania terrenal: a con-cidadania se abre hoje à dimensão planetária;
incorporando cuidado para com única Casa Comum e com bens e serviços
limitados. Importa viver os vários erres (r) do pensamento ecológico:
reduzir, reusar, reciclar, rearborizar; rejeitar a propaganda enganosa,
respeitar todos os seres etc. Não somos apenas cidadãos nacionais mas também
terrenais, responsáveis pela Terra, como Casa Comum.
Nesse
momento após o golpe jurídico-parlamentar de 2016 a cidadania é desafiada a
confrontar-se com dois projetos antagônicos, disputando a hegemonia; o
projeto dos endinheirados, antigos e novos, articulados com as
corporações transnacionais querem um Brasil menor; de no máximo 120 milhões, pois
assim, acreditam, daria para administrá-lo em seu benefício; sem maiores
preocupações; os restantes milhões que se lasquem pois sempre se habituaram a
viver na necessidade e sobreviver como podem.
O
outro projeto, assumido pela cidadania, quer construir um Brasil para
todos, pujante; autônomo e soberano face às pressões das potências
militaristas, técnica e economicamente poderosas que visam a estabelecer um
império do tamanho do planeta e viver da rapinagem das riquezas dos
outros países.
Golpe
de 2016
Estes
se associam com as elites nacionais, que estão atrás do golpe de 2016. Elas
aceitam ser sócios menores, ao troco de vantagens de seu alinhamento ao
projeto-mundo. Assim fizeram no golpe civil-militar de 1964 e no atual
jurídico-parlamentar de 2016.
A
correlação de forças é muito desigual e corre em favor das oligarquias
endinheiradas. Mas estas não têm nada a oferecer para os milhões de
brasileiros, especialmente para os pobres, senão mais empobrecimento.
Estas
elites não são portadoras de esperança e, por isso, são condenadas a viver sob
permanente medo de que, uma dia, esta situação possa se reverter e perderem sua
situação de opulência e de privilégios. Esse dia chegará.
O
futuro pertence especialmente aos humilhados e ofendidos de nossa história que
herdarão as bondades que a Mãe Terra-Brasil reservou a todos. Valeu a
pena a sua resistência, a indignação e a coragem de mudar em direção de um
Brasil do qual podemos nos orgulhar.
*
Leonardo Boff é teólogo, escritor e professor universitário, expoente
mundial da Teologia da Libertação.
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