quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A RÚSSIA, PADRÃO DUMA LONGA E PENOSA APRENDIZAGEM



Martinho Júnior | Luanda
  
Desde o colapso da URSS que a Rússia, na sequência da aprendizagem da história e dos acontecimentos desse mesmo colapso, teve uma longa e penosa aprendizagem.

Os russos sentiram que, ou reagiam face aos impactos nocivos do esforço de inteligência da hegemonia unipolar, nos seus termos e vestes neoliberais, ou então seriam devassa de caos, de terrorismo e de desagregação, desde logo em função do conhecimento “no terreno” do que se passava no Cáucaso.

As academias herdadas da URSS e a inteligência patriótica reagiram face ao neoliberalismo manipulador que tinha no tandem Gorbatchov – Ieltsin a instrumentalização da ingerência: pôs-se fim ao regime de Ieltsin e retomou-se imediatamente um exercício independente, soberano e vocacionado a recuperar a Federação no seu conjunto, com uma amplitude de medidas que passaram entre outras, desde o combate ao terrorismo sincronizado com as “revoluções coloridas”no Cáucaso, até às que implicavam recuperação económica, energética e financeira, internas.

A emergência russa corresponde em grande parte à história das contramedidas sacudindo os expedientes intestinos mas inerentes à hegemonia unipolar, uma emergência que começou por ser resistência, para depois se alicerçar numa geoestratégia voltada para o futuro, ao ponto de se chegar às respostas contemporâneas, que expõem as intervenções russas ao longo de suas imensas periferias e fronteiras e absorvem no essencial as capacidades do ”belt and road”, a nova Rota da Seda Euroasiática, ao longo do paralelo que une as costas do Pacífico às costas do Atlântico, em função duma estreita sincronização de interesses com os membros do grupo BRICS, em especial a China e a Índia, assim como das repúblicas da Ásia Central, componentes da Organização de Cooperação de Xangai.

Os episódios relativos à Geórgia no Cáucaso, no período das minhas intervenções no ACTUAL (2003) correspondem ao período em que as contramedidas russas estavam praticamente em embrião e em regime de defesa interna, pois a defesa e a segurança próxima só mais tarde passaram a merecer medidas voltadas para as periferias e fronteiras, em função das novas capacidades de inteligência e militares que foram adoptadas desde o fim de Ieltsin, particularmente as estimuladas pela nova Rota da Seda, desde a sua arquitectura inicial.

A presença russa na Síria e o conjunto de dispositivos que assumiu face a face ao poder que catapultava o caos, o terrorismo e a desagregação por todo o Médio Oriente (que a hegemonia pretendia estender também à Ásia Central), resulta dessa longa e penosa aprendizagem, mas revela ao mesmo tempo quanto a Rússia se soube integrar nos processos de emergência multipolar, envolvendo a projecção dos seus próprios circuitos energéticos, estabelecendo nexos com os estados, as nações e os povos ao longo de suas fronteiras, com uma única dissonância: a Ucrânia, temporariamente perdida por via da “revolução laranja” e da Praça Maidan, a favor dos estigmas agenciados pela hegemonia unipolar, ao ponto de assumir roupagens neonazis, algo que ditará a sua sorte pois esse será um exercício insustentável a prazos dilatados!

Quando produzi “O módulo georgiano da revolução das rosas”, estava a lançar um primeiro alerta sobre esse tipo de processos contra revolucionários e próprios duma hegemonia unipolar nociva, com os olhos postos em Angola que acabava de sofrer o choque e entrava no período em que passava a ser alvo dos impactos oportunistas da terapia neoliberal, escancaradas que haviam sido assuas portas.

O exercício do poder em Angola tem atravessado esse fluxo tacitamente imposto a partir do exterior, explorando as imensas vulnerabilidades do país e de sua sociedade posta à prova, mas não conseguindo apagar a capacidade de adaptação e sobrevivência dos angolanos, que aliás passaram a contar com a emergência no âmbito dos seus relacionamentos internos e externos, contrabalançando os impactos porventura mais nocivos.

Socorre ainda Angola a sua longa experiência enquanto país Não Alinhado activo, que não pode perder de vista as lições da desagregação da Jugoslávia, um dos primeiros alvos, a par da URSS, dos impactos neoliberais que incluíam as “revoluções coloridas” como “arma” do choque a que foi submetida, que está na base de sua desagregação.

Isso tem sido feito sem deitar completamente por terra as legítimas aspirações de paz e de desenvolvimento, por que os patriotas angolanos continuam a bater-se pela unidade e coesão, face às imensas tarefas da reconstrução, da reconciliação e da reinserção social, quaisquer que sejam os obstáculos e os desafios, mesmo os mais artificiosos que chegaram, a partir das ingerências próprias da Open Society, ao ponto de tentar a “ementa” de declarar falsidade nos processos eleitorais, perdido o “alvo” que tinham previamente preparado como “bandeira”, em função da justificável longevidade no poder do Presidente José Eduardo dos Santos.

A vocação e os “slogans” de rua dos “revús” estavam ao dispor duma oposição que, agarrando-se de certo modo a isso, foi incapaz de dar resposta quando o tapete dos seus argumentos foi puxado em tempo oportuno, por um MPLA experiente da armadilha com que se estava a lidar!

A “geometria variável” do exercício do poder do MPLA em Angola (com pragmatismo e flexibilidade), conduziu até ao ponto duma “coligação mágica” na oposição, se ver forçada politicamente a abrir as suas portas representativas na Assembleia Nacional, a tendências mais conhecidas forjadas pela Open Society em Angola, que desse modo acabaram por ser “roubadas”ao seu “destino histórico”: à rua!...

É evidente que a inteligência sobre todo esse processo global, regional e nacional, não pode deixar contudo de estar desperta, ainda que seja uma discreta formulação implícita tacitamente no exercício dum poder com carácter tridimensional (com separação de poderes) e, nesse sentido, é também dever dos patriotas abordarem “em aberto” este tipo de assuntos, por que para os angolanos continua e continuará a ser necessário saber optar ao longo dos próximos anos e legislaturas!

Qualquer semelhança em Angola com o processo na Geórgia, que eu claramente dei a conhecer em Dezembro de 2003 no ACTUAL, inclusive no léxico das fórmulas de desenvolvimento das campanhas da oposição (as da rua por parte de “revús”, as de seus apêndices e as de partidos como a UNITA, ou a CASA CE), NÃO É MERA COINCIDÊNCIA!

Martinho Júnior | Luanda, 29 de Setembro de 2017

Fotos:
1- Putin e Saakashvili (beneficiário na Geórgia da 2revolução rosa”);
2- Saakashvili e John McCain (assessores da “revolução laranja” e da Praça Maidan);
3- Texto publicado no nº 377 do semanário ACTUAL, referente ao título “O módulo georgiano da revolução das rosas”.
4- Ilustração da campanha da “revolução rosa” em Tbilissi (foto utilizada na publicação do PÁGINA UM).

O “MÓDULO” GEORGIANO DA “REVOLUÇÃO DAS ROSAS”

Logo após a sua renúncia, Eduard Chevardnadze confirmou em Moscovo os papéis de determinada linha de conduta americana e de George Soros nas mudanças em curso na Geórgia.

Corroborando as suas declarações, um analista como Mark MacKinnon confirmava-a a 26 de Novembro de 2003, em “breaking news”, no “Globe and Mail”, sob o título “A revolta da Geórgia carrega a marca de Soros”:

“Foi em Fevereiro que o bilionário financeiro George Soros começou o trabalho para o afastamento do Presidente georgiano Eduard Chevardnadze.

Nesse mês, fundos do seu Instituto Open Society, enviaram uma activista de Tbilissi, de 31 anos, chamada Giga Bokeria, para a Sérvia, a fim de se encontrar com membros do movimento Otpor (Resistência) e aprender como eles usaram as demonstrações de rua a fim de derrubar o ditador Slobodan Milosevic. No verão, a fundação de Soros pagou as viagens para a Geórgia de activistas do Otpor, a fim de realizarem cursos de três dias, ensinando a mais de 1000 estudantes sobre como se podia fazer uma revolução pacífica.

Na última semana, o Instituto Liberty que Bokeria havia ajudado a fundar, foi instrumental em organizar os protestos de rua que eventualmente conduziram Chevardnadze a assinar os seus papéis de renúncia. Bokeria disse que tinha sido em Belgrado que tinha aprendido o valor de manter elevada a moral, assim como fazer uso de pressão sobre a opinião pública, tácticas que se comprovaram muito persuasivas nas ruas de Tbilissi no mês a seguir às eleições parlamentares.

Em Tbilissi, a ligação ao Otpor foi observada como uma das várias acções em que Soros se empenhou em apoio ao movimento anti Chevardnadze: ele também fundou uma estação de televisão da oposição popular, que foi crucial na mobilização em apoio da revolução de veludo e deu apoio financeiro a um grupo juvenil que liderou os protestos de rua.

Ele também encetou um sólido relacionamento com o chefe da oposição a Chevardnadze, Milhail Saakashvili, um advogado de educação nova yorkina que espera vencer as eleições próximas, a 4 de Janeiro. Há um ano Soros presenteou Saakashvili com a condecoração da sua fundação, a Open Society Award.

É também um dado assente da opinião pública aqui, que Soros foi a pessoa que planificou a queda de Chevardnadze, disse Zaza Gachechiladze, editor-em-chefe do Mensageiro da Geórgia, um jornal de língua inglesa da capital” .

“Em meados de 2002, Chevardnadze fez uma de suas várias intervenções acerca das interferências políticas de Soros no país e, no seguimento delas, alguns jovens invadiram os escritórios do Instituto Liberty, de Bokeria, vandalizando os computadores e batendo em vários membros do staff. Soros terá sugerido durante uma conferência de imprensa em Moscovo, que o governo de Chevardnadze não estava em condições de garantir eleições parlamentares em 2003.

É necessário mobilizar a sociedade civil, de forma a que as eleições sejam livres e justas, por que muitas forças estão determinadas a falsificar, ou a manipular, não deixando que elas sejam livres e justas, disse Soros. Isso aconteceu na Eslováquia no tempo de Vladimir Meciar, na Croácia no tempo de Franjo Tudjman e na Jugoslávia no tempo de Milosevic.

O dinheiro e as aparentemente boas intenções de Soros, foram inicialmente bem recebidas nos antigos estados soviéticos, quando a Open Society se instalou na sequência do derrube da cortina de ferro, mas algumas dessas relações foram cortadas. A Ucrânia e a Bielorrússia expulsaram a Open Society, acusando a organização de interferência política e os seus escritórios em Moscovo foram recentemente invadidos por homens mascarados e armados por causa duma aparente disputa de propriedade”.

Se o decano diplomata James Baker assumia o papel de um dos estrategas mais influentes do“dossier” Cáucaso – Mar Cáspio (com incidência na Geórgia), George Soros, segundo os observadores mais atentos ao desenvolvimento do processo político na Geórgia, instrumentalizava em tempo oportuno o “volte face” em benefício dos interesses em relação ao petróleo do Mar Cáspio, por parte dos americanos e seus aliados ocidentais.

A 4 de Dezembro de 2003, a “BBC” publicava um artigo de Natália Antelava com o título “como fazer uma revolução” e subtítulo “Slobodan Djinovic observou a revolução das rosas de sua casa na Sérvia”:

“É quase como o desafio de derrubar Milosevic outra vez. Estou realmente muito feliz, lembrou ele.

Em 2001, Djinovic foi um dos líderes do movimento estudantil da Sérvia, Otpor, que contribuiu para derrubar Slobodan Milosevic.

Alguns meses antes da oposição ter voltado do avesso o parlamento em Tbilissi, pedindo a resignação do Presidente Eduard Chevardnadze, Djinovic esteve na cidade explicando a sua experiência de revolução não sangrenta aos estudantes georgianos.

Estamos a trabalhar com movimentos civis em vários países e não quero nomeá-los, mas a Geórgia é o primeiro sucesso, disse Djinovic.

Os georgianos primeiro formaram laços com a Otpor no verão de 2003, quando vários activistas da sociedade civil visitaram Belgrado, numa viagem patrocinada pela fundação de Soros (criada pelo bilionário financeiro George Soros).

Alguns dias depois do seu regresso, Tbilissi criou a sua própria versão do Otpor.

Muitos grafites por escrito sob o rótulo de Kmara ! (basta é basta!) foram aparecendo por toda a capital.

Precisamos de encontrar uma mensagem que qualquer um possa entender e basta é basta! é precisamente o que precisávamos, disse Tea Tutberidze que esteve no grupo inicial de cerca de 20 estudantes activistas e é agora um dos líderes dum forte movimento com 3000 aderentes.

O Otpor é uma fonte de inspiração. O nosso objectivo é tornar as coisas atractivas, pouco usuais e dizer ao povo que é ele que está a fazer a mudança no país, disse Tutberidze.

Então eles limparam as ruas, organizaram concertos, colectaram dinheiro para caridade, protestaram contra a violência da polícia e socorreram-se da TV para condenar o governo.

Durante a acção, a mensagem era sempre a mesma: o governo falhou no cumprimento de suas promessas e era tempo para as pessoas acertarem as contas”. 

RETROSPECTIVA: “O módulo georgiano da revolução das rosas”, foi antes também publicado no PÁGINA UM, a 15 de Fevereiro de 2011, mas como é lógico, sem o texto introdutório que lhe adiciono hoje, sob o título “A RÚSSIA, PADRÃO DUMA LONGA E PENOSA APRENDIZAGEM”.

No PÁGINA UM, ainda disponível (http://pagina--um.blogspot.com/2011/02/o-modulo-georgiano-da-revolucao-rosa.html), publiquei com a seguinte NOTA ADICIONAL:

“Nota:

Esta narrativa que foi dada à estampa em Dezembro de 2003 ilustrava as implicações das sucessivas “revoluções coloridas” nos Balcãs e na Geórgia, assim como os relacionamentos que foram cultivados então.

A substituição simples duma elite por outra sem pôr em causa a lógica capitalista, foi uma fórmula de fortalecimento do império na Europa do Leste e no Cáucaso, a fim de continuar “expandindo” noutras direcções.

O “alastramento” dessas “revoluções coloridas” contribuiu para o deslocamento da “Organização do Tratado do Atlântico Norte” para leste, até às paragens e cenários de hoje: Iraque, AfPaq e Índico Norte, semeando estratégias de tensão.

O que está a acontecer no norte de África, revoltas populares “espontâneas” de carácter emocional, sem programas pré definidos e amadurecidos, alimentados por processos financeiros resultantes da desenfreada especulação espalhada por George Soros por todo o mundo, sem a implicação de organizações sociais com tarimba de luta em benefício das camadas populares mais exploradas, só pode desembocar na “reconstrução” da envenenada “democracia representativa” para, conforme esclarecia o grande poeta Pablo Neruda, se mudarem apenas as moscas.

No Egipto, o papel das suas forças armadas geradas pelos interesses anglo saxónicos ao longo de várias décadas, está a ser outro factor, talvez o factor decisivo, que está a contribuir sincronizadamente para levar a revolução à morte antes mesmo do seu possível parto.

Uma revolta quanto baste a fim de que a revolução seja apenas um aborto.

Cinquenta anos depois do início da luta armada em Angola, é dever daqueles que são fiéis por inteiro, com convicções firmes e princípios de sabedoria, ao movimento de libertação em África, baterem-se pelos ideais de libertação de seus povos, dando continuidade ao esforço que vem do passado, impedindo que se perca a energia e a experiência histórica que vem do passado, a energia e a história com sentido de vida, temperada com amor, dignidade e respeito por todos os oprimidos da Terra.

É necessário cultivar-se hoje a paz que promove a justiça social, o equilíbrio humano, cultivar-se profundamente a paz social, sem o fosso de desigualdades que os homens do “mercado” estão a provocar deliberadamente em nossas nações frágeis e perante nossos sacrificados povos.

É necessário e urgente saúde para todos, combatendo a “saúde mercenária” que tanta gente está a matar em todo o país!

É necessária a educação, acabando-se antes de mais nada com o analfabetismo num esforço nacional amplo, integrador e abrangente!

É necessária a prática desportiva para educação e formação da nossa juventude a partir da escola e em programas sincronizados entre a Educação e a Juventude e Desportos!

É necessário urbanismo, habitação, sanidade pública, água potável para todos num país que em África é uma das poderosas mães de água!

É necessário não entregar nossas potencialidades e nossas riquezas aos abutres, não só aqueles que vêm de fora, mas aqueles que estão a abdicar de responsabilidade patriótica e se rendem aos grandes falcões enquanto “expandem” a irresponsabilidade consumista que eles impulsionam (veja-se o caso da refinaria do Lobito)!

Há 8 anos não se atendeu um primeiro alerta, talvez um pequeno grito num deserto, mas hoje com quase uma década de ausência de tiros é possível corrigir muita coisa que afinal foi tão mal feita e está tão mal parada.

Se o homem e o respeito pela natureza forem colocados de forma sensível, responsável, com organização, cidadania e participação, no devido lugar, dar-se-á continuidade à gesta que advém do passado e não haverá espaço para as manipulações contraditórias de que os seguidores de George Soros, pseudo-revolucionários gerados do pântano do capitalismo financeiro mais abjecto, têm sido pródigos.

Angola e as elites que cultivam dignidade histórica, estão a tempo de se reencontrar e reencontrar a sua vanguarda cuja chama se iluminou sempre em benefício de todo o povo e não dum grupo elitista sem outra estratégia senão o lucro que em África desemboca no neo colonialismo típico das eras post independência.

A sobrevivência da identidade angolana tem tudo a ver com tudo isto e sua afirmação é perante um dos maiores riscos contemporâneos, uma globalização que é crise permanente e um beco sem saída!”

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