Miguel Guedes* | Jornal de Notícias
| opinião
Olhar para o ano em retrospectiva
é coisa para não mais do que uma mão-cheia de dias. Não mais. Entre 26 e 30,
escondidos entre o dia de Natal e o da passagem de ano, contam--se 5-dias-5, à
moda de balanço das duplas de palhaços de circo, acerto de contas sem
"yin" nem "yang", sem rei nem roque, sem auditoria que
afiance. O gato não vai às filhós pela pressa do exame mas a apreciação do ano
colide com humores e não respeita a história: não há julgamento que resista a
um par de meses, não há esquecimento que não assome a partir do dia 1. Na corda
bamba, em balanço. Há menos vida nova no ano novo do que a nossa curta memória
faria supor.
Não fosse a quadra natalícia
propensa ao perdão e à bonomia, e o aproveitamento político nos balanços de fim
de ano seria assunto de faca e alguidar. Ainda assim, há quem tente bem e com
afinco. Descontextualizar as palavras de António Costa sobre este ano ter sido
"particularmente saboroso para Portugal", frase proferida no contexto
europeu acerca do quadro económico-financeiro, é um exercício penoso de
demagogia em tudo semelhante àquele que anunciava suicídios após a catástrofe
com doses massivas de hesitação e irresponsabilidade. O balanço açucarado pela
quadra festiva dá para tudo um pouco, oscilando entre quem opte por queimar o
açúcar no creme de leite ou em corrida-bpm de passadeira. Lá está. Imaginem
agora uma analogia com incêndios. Excessivo. Ao sabor do vento que queima, navega
a Oposição pela direita ainda à procura de um leme para timoneiro a eleger. As
vítimas dos incêndios, as que foram e as que estão, bem dispensariam o
aproveitamento político que tantas vezes se faz da sua desgraça.
Da canção interpretada por
Salvador Sobral e das catástrofes de 17 de Junho/15 de Outubro, se fará o filme
de 2017 no juízo da história portuguesa. Não só mas também. Alguém lembrará
Centeno e Ronaldo (os dois até se confundem, diz Herr Schäuble), o Infarmed ou
a química doentia de vasos comunicantes hospitalares nos surtos de
sarampo-legionela-hepatite A. Alguém recordará Tancos e Almaraz, a nossa Inês
Henriques marcha de ouro ou os km de estrada em marcha lenta a contar árvores
queimadas. Alguém, com memória assombrosa, lembrará os derrotados das
autárquicas. Alguém evocará a visita do Papa ao nosso pedaço de terra santa
pelo centenário ou a tardia acusação a um ex-detido-ex-primeiro-ministro.
Alguém relembrará que alguns tentaram aportar vulgaridade aos afectos de um
presidente ou que houve juízes adulterados pelo juízo de género. Mas, ainda que
maldita, faz-se arte do que os nossos olhos vêem e os nossos ouvidos ouvem.
Ficarão para sempre. Entre o poder da imagem de Dante e o poder do som dos
anjos, a canção-tirocínio da passagem 17/18 pode bem amar pelos dois. Mas vai
esquecer quase tudo o que sobra no brinde final.
*Músico e jurista
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