A lista transnacional nunca vai
ser aprovada porque revelaria demais sobre os políticos que dominam a Europa.
Francisco Louçã*
| opinião
Paulo Rangel, que exibe
intervenções televisivas assaz ansiosas, mobiliza na escrita um alter-ego com
um pensamento estratégico argumentado, reivindicando-se de uma direita clássica
e nisso mesmo revelador de tensões e alternativas. Aprecio o esforço denodado,
sobretudo por não estar de acordo com a prosa. Mas foi ele quem me alertou, e
porventura a outros leitores, para essa parte de um comunicado da cimeira de
governantes mediterrânicos que anuncia uma lista transnacional europeia nas
próximas eleições.
A ideia nada tem de novo, Rangel
diz-nos mesmo que foi um seu entusiasta até ter arrefecido sobre o assunto. É
uma das armas do arsenal de Macron e, por deferência ou convicção, os
governantes do Sul carimbaram o comunicado. Faz parte também daquela classe de
ideias europeístas que ninguém leva demasiado a sério, mas que ficam bem num
discurso enlevado sobre o destino mítico dessa Europa encantadora, raptada por
um tal Zeus, disfarçado de potente touro para multiplicar a prole. E que toda a
gente sabe que não vai ser concretizada, por razões imperativas: seria
necessário que todos os países membros aceitassem mudar a sua lei eleitoral,
sem qualquer excepção, já para não mencionar que teríamos assim o PSD e o CDS,
ou Merkel e Rajoy, a fazerem uma lista continental com Orban, Berlusconi e
outras companhias menos recomendáveis. A lista da direita seria um jardim
zoológico. E a dos partidos socialistas europeus seria um problema: será que
Macron imporia um seu ministro à frente dessa lista, depois de ter destruído o
PS francês? De facto, a lista transnacional nunca vai ser aprovada porque
revelaria demais sobre os políticos que dominam a Europa.
Rangel acrescenta outras razões
ainda mais substanciais para contrariar a ideia. Três: se se quer europeísmo
institucionalista, então a lista europeia é um ataque ao federalismo (nada
disso existe em federações e confederações, como no Brasil, Estados Unidos ou
Suíça, porque precisamente contraria a ideia federadora); uma lista europeia
alarga o fosso entre eleitos e eleitores e cria uma classe de eurodeputados de
primeira; e promove o populismo contra um gato de rabo de fora da dissolução
das representações nacionais. Ou ainda, que para Portugal seria péssima
solução, sendo evidente que as listas seriam encabeçadas por figurões dos
países com mais eleitores.
Que o primeiro-ministro tenha
assinado o texto, até se compreende. Ele sabe que a proposta é frívola e
inconsequente, mas não está para uma maçada dentro de portas. O PS, para
concluir os acordos com o Bloco e o PCP, retirou do programa de governo as suas
propostas de alteração da lei eleitoral (os círculos uninominais, destinados a
fazer o PS e o PSD ganharem na secretaria) e se, à sorrelfa, sem consulta e
decerto sem acordo, propusesse agora tal lista europeia num pacto, aliás
improvável, com a direita, a ideia só poderia ser considerada como um ataque
aos seus parceiros. Costa, homem avisado, não o fará, ponto final.
Fica o problema principal. Por
que é que algumas lideranças europeias jogam este jogo, para fingir soluções
que logo vão abandonar por inexequíveis? Querem ser levados a sério por
proporem o que eles próprios não levam a sério? Quando sobra a estratégia de
fumo, fica tudo claro. Mas revela-se uma cultura: os eurocratas acham mesmo que
na Europa somos, ou devemos fingir ser, uma única nação a caminho de um único
Estado, e vangloriam-se de cada passo, simulado que seja, para substituir as democracias
nacionais por uma transcendência, esse terreno em que se movem tão bem os
conciliábulos e interesses. Gostariam assim de rejeitar a Europa que pode ser,
em nome da que lhes convém. Mas tenha calma, a lista transnacional é só jogo
político e brincadeira de carnaval.
*Artigo publicado no jornal
“Público” em 20 de janeiro de 2018
Em Esquerda.net | Francisco Louçã
é professor universitário e ativista do Bloco de Esquerda.
Foto: Paulo Rangel, em RTP
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