Arnaldo Gonçalves* | Ponto Final
| opinião
É habitual designar-se o segundo
período de transição do sistema político-administrativo de Macau como aquele
que se iniciou em 20 de Dezembro de 1999 e que se estenderá até 20 de Dezembro
de 2049. É um período cujas políticas essenciais estão asseguradas por um
tratado internacional – a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de
Macau – e um estatuto para-constitucional, a Lei Básica da Região
Administrativa de Macau da República Popular da China. Trata-se de um período
alargado em que a responsabilidade política pela gestão da Região
Administrativa incumbe à República Popular da China, através dos órgãos
políticos locais no quadro da Lei Básica e dos princípios acordados pelos dois
Estados.
Parte fundamental do estatuto da
Região é preenchida pelo seu sistema jurídico o qual se alicerça em cinco
normativos essenciais: o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código
Penal, o Código de Processo Penal e o Código Comercial. Na verdade, existe um
sexto normativo – a Lei de Bases da Organização Judiciária – que completa os
cinco primeiros já que define os poderes e competências dos tribunais, a sua
estrutura funcional bem como a competência e intervenção de duas magistraturas:
a do Ministério Público e a Magistratura Judicial.
Concluem-se em breve vinte anos
sobre a entrada em vigor dos principais códigos do sistema jurídico de Macau. É
importante congratularmo-nos com o facto e aqui deixar em linhas muito breves o
que eles trouxeram em termos da actualização do sistema jurídico de Macau, de
matriz portuguesa. Dou pública nota desse facto, até para que não falhe às
novas gerações de operadores do direito, a convicção que o sistema jurídico em
vigor em Macau radica num processo continuado de evolução em que as soluções
jurídicas maturaram e se aprimoraram de acordo com as premências do tempo e em
diálogo com os operadores.
É bom recordá-lo pois surgem, de
tempos a tempos, declarações sobre o anquilosamento do direito de raiz
portuguesa e da necessidade urgente da sua revisão com vista a aproximá-lo do direito
do Continente. Tais declarações não tomam em consideração que a China não tem
um Código Civil, mas apenas legislação avulsa e dispõe de uma Lei Penal e outra
Processual Penal que datam de 1979. O sistema na China Continental não conta
com um Código Comercial ou das Sociedades Comerciais, mas apenas com legislação
avulsa que regula parcelarmente a actividade económica e comercial. Apenas na
década de 1990 [Abril de 1991] foi aprovada uma Lei do Processo Civil.
Como explicá-lo? Nos primeiros
trinta anos da sua existência a República Popular da China funcionou sob um
modelo de inspiração soviética em que as directrizes do Partido Comunista para
as diferentes áreas de funcionamento do Estado e da sociedade foram a única
lei. Apenas com a abertura ao exterior impulsionada por Deng Xiao Ping e com a
separação do Estado do aparelho partidário foi possível à República Popular da
China iniciar a redacção da sua legislação interna nos domínios dos direitos
civil, penal e comercial.
Foi pois natural que em obediência
à Declaração Conjunta incumbisse ao Governo português de Macau a elaboração
acompanhada de tradução para chinês dos principais códigos do nosso sistema
jurídico. Os primeiros códigos a serem aprovados foram o Código Penal e o
Código Processual Penal, respectivamente em Janeiro e Setembro de 1996.
Verdadeira matriz do sistema, o Código Penal foi marcado por uma visão
humanista que rejeita o sacrifício da vida humana e as penas corporais e que se
conjuga com a tradição jurídica penal de Macau para a prevenção e repressão da
criminalidade. Foi um código elaborado de acordo com as características da
comunidade multi-étnica de Macau, visando a protecção dos bens jurídicos, mas
sempre com o escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa humana e dos valores
do Estado de Direito. O Código Penal teve seis alterações ao longo da sua vida,
de que se destaca a introdução de dispositivos relativos à prevenção e
repressão do crime do terrorismo, ao combate ao tráfico de pessoas, ao combate
à criminalidade informática, à proibição da produção, tráfico e consumo ilícito
de estupefacientes e à prevenção e combate à violência doméstica.
O Código Penal foi secundado pelo
Código do Processo Penal cujo anteprojecto foi entregue ao Professor Figueiredo
Dias, da Universidade de Coimbra, o qual viria a ser aprovado em Setembro de
1996. Tratou-se de um normativo fundamental respondendo, por um lado, às
prescrições do direito internacional em matéria penal, designadamente o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e, por outro, às prescrições
da Lei Básica da RAEM. A aplicação a Macau deste Pacto foi considerada uma
questão de regime e importantíssima para a sobrevivência da autonomia.
Importava inserir Macau na comunidade internacional e compatibilizar o direito
vigente com as normas e instrumentos que protegem os direitos humanos. O Código
Processual Penal foi objecto de diversas alterações decorrentes da Lei de Bases
de Organização Judiciária, da Lei de Repressão do Terrorismo, da Lei de
Cooperação em Matéria Penal, da Lei de Combate ao Tráfico de Estupefacientes e
da Lei da Segurança do Estado.
Já em 1996 foi aprovado o Código
de Processo Civil, o qual havia sido elaborado por uma Comissão de Redacção
presidida pelo Juíz Desembargador Borges Soeiro e que integrou assessores do
Gabinete do Secretário para a Justiça e juristas dos Gabinetes dos Assuntos
Legislativos e de Tradução Jurídica. O Código visou garantir, por um
lado, o acesso pleno à justiça por parte dos cidadãos de Macau e uma protecção
jurídica eficaz e atempada. Visou por outro lado, garantir o direito à defesa e
o princípio do contraditório para que nenhum pedido seja apreciado pelo
magistrado sem que seja dada à outra parte o direito de o contraditar. Garantiu
o princípio da igualdade das partes ao logo de toda a instância, sem prejuízo
dos poderes de direcção do tribunal. O Código sofreu um conjunto de alterações
em Outubro de 2013.
O Código Civil de Macau foi
aprovado em Agosto de 1999 e teve como objectivo modernizar e adaptar à
realidade sócio-económica e ao modo de viver de Macau o Código Civil Português
de 1996. O anteprojecto foi elaborado pelo Dr. Miguel Urbano, professor
da Faculdade de Direito da Universidade de Macau e foi objecto de inúmeras
alterações feitas por uma Comissão de Acompanhamento constituída pela
Assembleia Legislativa a qual integrou os deputados Jorge Neto Valente, Leonel
Alves, Henrique de Senna Fernandes e José Manuel Rodrigues. O Código foi
complementado por legislação avulsa relativa ao direito do consumidor, ao
direito de autor e direitos conexos e ao regime das cláusulas contratuais
gerais.
O Código Comercial foi aprovado
em Agosto de 1999, tendo o respectivo anteprojecto sido preparado pelo Dr.
Augusto Teixeira Garcia, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau.
O projecto contou com contributos da Comissão de Acompanhamento constituída
pela Assembleia Legislativa e que integrava os deputados Lau Cheok Va, Jorge
Neto Valente, Leonel Alves e Raimundo do Rosário. O Código foi centrado na
figura da empresa comercial em detrimento da tradição do acto de comércio que
presidia ao Código de 1888. O Código Comercial foi objecto de alterações
pontuais em Julho de 2009.
Resulta do que se escreveu que o
direito dos grandes códigos não ficou estático ao longo destes vinte anos.
Sempre que o julgou útil, o governo de Macau procedeu à sua actualização sem
perder de vista que os códigos integram um sistema jurídico que tem uma
filosofia, um sentido de uniformidade, uma coerência próprias.
Há sempre um argumento circular
de mudar por mudar o que não se percebe ou não se compreende, sobretudo em
domínios específicos que exigem uma preparação técnica apurada. Sempre que isso
acontece o sistema leva uma machadada porque se o direito não pode ficar
impávido às mudanças sociais e económicas, não pode funcionar também como
um cata-vento flectindo à guinada para aonde sopra o vento mais forte. O
direito de Macau é de raiz portuguesa e não germânico ou anglófono o que tem a
ver com a maneira de viver própria de Macau que se quer preservar. Aliás como,
de resto, o afirma a Lei Básica.
*Arnaldo Gonçalves é jurista e
professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço
quinzenalmente.
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