sábado, 20 de janeiro de 2018

Sistema Jurídico de Macau: desafios da transição


Arnaldo Gonçalves* | Ponto Final | opinião

É habitual designar-se o segundo período de transição do sistema político-administrativo de Macau como aquele que se iniciou em 20 de Dezembro de 1999 e que se estenderá até 20 de Dezembro de 2049. É um período cujas políticas essenciais estão asseguradas por um tratado internacional – a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau –  e um estatuto para-constitucional, a Lei Básica da Região Administrativa de Macau da República Popular da China. Trata-se de um período alargado em que a responsabilidade política pela gestão da Região Administrativa incumbe à República Popular da China, através dos órgãos políticos locais no quadro da Lei Básica e dos princípios acordados pelos dois Estados.

Parte fundamental do estatuto da Região é preenchida pelo seu sistema jurídico o qual se alicerça em cinco normativos essenciais: o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código Penal, o Código de Processo Penal e o Código Comercial. Na verdade, existe um sexto normativo – a Lei de Bases da Organização Judiciária – que completa os cinco primeiros já que define os poderes e competências dos tribunais, a sua estrutura funcional bem como a competência e intervenção de duas magistraturas: a do Ministério Público e a Magistratura Judicial.

Concluem-se em breve vinte anos sobre a entrada em vigor dos principais códigos do sistema jurídico de Macau. É importante congratularmo-nos com o facto e aqui deixar em linhas muito breves o que eles trouxeram em termos da actualização do sistema jurídico de Macau, de matriz portuguesa. Dou pública nota desse facto, até para que não falhe às novas gerações de operadores do direito, a convicção que o sistema jurídico em vigor em Macau radica num processo continuado de evolução em que as soluções jurídicas maturaram e se aprimoraram de acordo com as premências do tempo e em diálogo com os operadores.

É bom recordá-lo pois surgem, de tempos a tempos, declarações sobre o anquilosamento do direito de raiz portuguesa e da necessidade urgente da sua revisão com vista a aproximá-lo do direito do Continente. Tais declarações não tomam em consideração que a China não tem um Código Civil, mas apenas legislação avulsa e dispõe de uma Lei Penal e outra Processual Penal que datam de 1979. O sistema na China Continental não conta com um Código Comercial ou das Sociedades Comerciais, mas apenas com legislação avulsa que regula parcelarmente a actividade económica e comercial. Apenas na década de 1990 [Abril de 1991] foi aprovada uma Lei do Processo Civil.

Como explicá-lo? Nos primeiros trinta anos da sua existência a República Popular da China funcionou sob um modelo de inspiração soviética em que as directrizes do Partido Comunista para as diferentes áreas de funcionamento do Estado e da sociedade foram a única lei. Apenas com a abertura ao exterior impulsionada por Deng Xiao Ping e com a separação do Estado do aparelho partidário foi possível à República Popular da China iniciar a redacção da sua legislação interna nos domínios dos direitos civil, penal e comercial.

Foi pois natural que em obediência à Declaração Conjunta incumbisse ao Governo português de Macau a elaboração acompanhada de tradução para chinês dos principais códigos do nosso sistema jurídico. Os primeiros códigos a serem aprovados foram o Código Penal e o Código Processual Penal, respectivamente em Janeiro e Setembro de 1996. Verdadeira matriz do sistema, o Código Penal foi marcado por uma visão humanista que rejeita o sacrifício da vida humana e as penas corporais e que se conjuga com a tradição jurídica penal de Macau para a prevenção e repressão da criminalidade. Foi um código elaborado de acordo com as características da comunidade multi-étnica de Macau, visando a protecção dos bens jurídicos, mas sempre com o escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa humana e dos valores do Estado de Direito. O Código Penal teve seis alterações ao longo da sua vida, de que se destaca a introdução de dispositivos relativos à prevenção e repressão do crime do terrorismo, ao combate ao tráfico de pessoas, ao combate à criminalidade informática, à proibição da produção, tráfico e consumo ilícito de estupefacientes e à prevenção e combate à violência doméstica.

O Código Penal foi secundado pelo Código do Processo Penal cujo anteprojecto foi entregue ao Professor Figueiredo Dias, da Universidade de Coimbra, o qual viria a ser aprovado em Setembro de 1996. Tratou-se de um normativo fundamental respondendo, por um lado, às prescrições do direito internacional em matéria penal, designadamente o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e, por outro, às prescrições da Lei Básica da RAEM. A aplicação a Macau deste Pacto foi considerada uma questão de regime e importantíssima para a sobrevivência da autonomia. Importava inserir Macau na comunidade internacional e compatibilizar o direito vigente com as normas e instrumentos que protegem os direitos humanos. O Código Processual Penal foi objecto de diversas alterações decorrentes da Lei de Bases de Organização Judiciária, da Lei de Repressão do Terrorismo, da Lei de Cooperação em Matéria Penal, da Lei de Combate ao Tráfico de Estupefacientes e da Lei da Segurança do Estado.

Já em 1996 foi aprovado o Código de Processo Civil, o qual havia sido elaborado por uma Comissão de Redacção presidida pelo Juíz Desembargador Borges Soeiro e que integrou assessores do Gabinete do Secretário para a Justiça e juristas dos Gabinetes dos Assuntos Legislativos e de Tradução Jurídica.  O Código visou garantir, por um lado, o acesso pleno à justiça por parte dos cidadãos de Macau e uma protecção jurídica eficaz e atempada. Visou por outro lado, garantir o direito à defesa e o princípio do contraditório para que nenhum pedido seja apreciado pelo magistrado sem que seja dada à outra parte o direito de o contraditar. Garantiu o princípio da igualdade das partes ao logo de toda a instância, sem prejuízo dos poderes de direcção do tribunal. O Código sofreu um conjunto de alterações em Outubro de 2013.

O Código Civil de Macau foi aprovado em Agosto de 1999 e teve como objectivo modernizar e adaptar à realidade sócio-económica e ao modo de viver de Macau o Código Civil Português de 1996.  O anteprojecto foi elaborado pelo Dr. Miguel Urbano, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau e foi objecto de inúmeras alterações feitas por uma Comissão de Acompanhamento constituída pela Assembleia Legislativa a qual integrou os deputados Jorge Neto Valente, Leonel Alves, Henrique de Senna Fernandes e José Manuel Rodrigues. O Código foi complementado por legislação avulsa relativa ao direito do consumidor, ao direito de autor e direitos conexos e ao regime das cláusulas contratuais gerais.

O Código Comercial foi aprovado em Agosto de 1999, tendo o respectivo anteprojecto sido preparado pelo Dr. Augusto Teixeira Garcia, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau. O projecto contou com contributos da Comissão de Acompanhamento constituída pela Assembleia Legislativa e que integrava os deputados Lau Cheok Va, Jorge Neto Valente, Leonel Alves e Raimundo do Rosário. O Código foi centrado na figura da empresa comercial em detrimento da tradição do acto de comércio que presidia ao Código de 1888. O Código Comercial foi objecto de alterações pontuais em Julho de 2009.

Resulta do que se escreveu que o direito dos grandes códigos não ficou estático ao longo destes vinte anos. Sempre que o julgou útil, o governo de Macau procedeu à sua actualização sem perder de vista que os códigos integram um sistema jurídico que tem uma filosofia, um sentido de uniformidade, uma coerência próprias.

Há sempre um argumento circular de mudar por mudar o que não se percebe ou não se compreende, sobretudo em domínios específicos que exigem uma preparação técnica apurada. Sempre que isso acontece o sistema leva uma machadada porque se o direito não pode ficar impávido às mudanças sociais e económicas, não pode funcionar  também como um cata-vento flectindo à guinada para aonde sopra o vento mais forte. O direito de Macau é de raiz portuguesa e não germânico ou anglófono o que tem a ver com a maneira de viver própria de Macau que se quer preservar. Aliás como, de resto, o afirma a Lei Básica.

*Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente.

Sem comentários:

Mais lidas da semana