Manuel Carvalho da Silva* |
Jornal de Notícias | opinião
A conciliação entre capitalismo e
democracia é uma velha promessa partilhada por forças políticas de Direita e
largos setores da social-democracia e, após a queda do Muro de Berlim, o Mundo
que nos anunciaram foi o de uma vivência mais pacífica e desenvolvimentista,
exatamente porque o capitalismo e a democracia, a partir daí, andariam de mãos
dadas e expandir-se-iam em todas as geografias. Quase 30 anos depois onde
estamos e o que podemos confirmar ou infirmar?
A Leste e a Oeste capitalismo e
democracia, longe de se conjugarem, parecem tender a separar-se. A Leste o
capitalismo renasceu das cinzas, mas de democracia temos, com raras exceções,
um conjunto de versões encenadas. A Ocidente, a democracia liberal estruturada
no capitalismo do pós-Segunda Guerra Mundial - baseada, pelo menos em
princípio, em direitos políticos e sociais garantidos pelo Estado social de
direito democrático e no primado da paz e da cooperação internacional - dá
sinais claros de perigosa degenerescência.
Uma manifestação desse estado de
degradação é o crescente autoritarismo em quadrantes bem diversos, a esmagadora
maioria deles "ocidentais" quanto à pertença a blocos como como é o
caso da Turquia, da Hungria, da Polónia, das Filipinas, ou até o Brasil. Em
todos esses países, estão em risco direitos políticos essenciais - a separação
de poderes entre o judicial e o executivo, a liberdade de informação e de
expressão - para não falar em direitos sociais fundamentais, como a liberdade
de associação sindical ou o direito à greve.
Uma segunda manifestação de
degenerescência é o crescente belicismo das grandes potências supostamente
capitalistas e democráticas. De uma invasão do Iraque justificada por armas de
destruição massiva que "provadamente" existiriam nesse país, chegamos
recentemente a bombardeamentos à Síria justificados pela "provável"
utilização de armas químicas. Enquanto em 2003 teve de ser construída uma
certeza - depois confirmada como falsa - agora bastou invocar uma mera
probabilidade. Isto significa desrespeito pelo direito internacional e uma
escalada no belicismo. A agressão é justificada sem necessidade de investigar,
confirmar ou infirmar suspeitas. Primeiro prime-se o gatilho, castiga-se
preventivamente, depois logo se verá como gerir as consequências de destruição
e de agravamento de ódios.
Uma terceira manifestação da
degradação é a regressão social a que se assiste no "Ocidente", desde
logo na União Europeia. Apesar da constatação de crescentes desigualdades, vai
sendo desconstruído o Estado social, a pretexto da competitividade da economia
e da sustentabilidade das contas públicas. Economias que cresceram muito depois
dos anos 70 do século passado tornaram-se incapazes de garantir os direitos
sociais que então vigoraram? Algo está a evoluir numa direção muito errada.
A degenerescência do
"capitalismo democrático" que estamos a experimentar serve para nos
lembrar que o casamento entre capitalismo e democracia que conhecemos no
pós-guerra é afinal um episódio transitório e excecional. Na realidade,
instituições democráticas básicas como o sufrágio universal só emergiram de
forma generalizada depois da Segunda Guerra, isto é, há cerca de 70 anos. Se
queremos interpretar com rigor o que está a acontecer e encontrar respostas
para a grave situação que se está a viver, precisamos de assumir
conscientemente que o capitalismo esteve, na maior parte do tempo do seu
desenvolvimento, associado a formas autoritárias de exercício do poder
político, como aconteceu em Portugal até 1974, ou a democracias muito
mitigadas.
Não se pode dizer que o
capitalismo esteja bem, menos ainda que se recomende. De qualquer modo, o que
está em maior risco é a democracia, não o capitalismo. Em vésperas do 25 de
Abril é bom relembrar esta realidade e assumir que a riqueza gerada pelo
trabalho e atividades de toda a sociedade tem de ser gerida tendo como
prioridade a efetividade da democracia. Hoje são muito evidentes os efeitos
cumulativos desastrosos das políticas austeritárias sobre o trabalho, a
educação e a saúde. Aproveitemos para exigir correção de políticas nestas
áreas.
*Investigador e professor
universitário
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