Entrevista conduzida por Paulo
Tavares e Arsénio Reis, da TSF, passada a formato de letra no Diário de Notícias.
Na TSF tem a possibilidade de recuperar o áudio da entrevista em registo. Na
forma de letra o PG recorreu ao DN. Aqui tem:
É alentejana, nasceu no Alvito, é
economista, deputada do Bloco de Esquerda desde 2013 e um dos rostos mais
mediáticos da esquerda; ganhou perfil público quando o país começou a ver, na
televisão, a frieza e tranquilidade com que encarava cada pergunta na comissão
de inquérito à queda do BES e do Grupo Espírito Santo; na cidade desloca-se de
mota - mota mesmo, de alta cilindrada -, é motard, gosta de jogar à bola, é
feminista, ativista LGBT, prefere uma tasca a uma estrela Michelin e a música
clássica ao rock; já fez o caminho de Santiago. Mariana Mortágua é a convidada
desta semana da entrevista DN/TSF.
Toda a tensão entre o Bloco e o
Governo à roda do Programa de Estabilidade, tensão essa que já teve altos e
baixos, é para levar a sério, o Bloco tem mesmo desenhada algures uma linha
vermelha a partir da qual deixará cair o apoio ao Executivo?
Esta posição do Bloco no Programa
de Estabilidade diz respeito a uma alteração, a um debate novo que se criou na
sociedade portuguesa: o ministro das Finanças propõe um défice de 0,7%, ao
contrário dos 1,1% que estavam no Orçamento para 2018. Se nós contarmos já,
nestes 0,7%, com os 792 milhões de euros que já sabemos que vão diretos ao Novo
Banco - ao acionista dono do Novo Banco para o recapitalizar -, isto quer dizer
que o ministro das Finanças está a propor para 2018 um défice de 0,3% e como
bem sabemos que as contas normalmente estão folgadas, estamos a falar de um
défice muito próximo dos 0% em 2018, o que fica bastante mais de mil milhões
abaixo daquilo que tinham sido os limites das negociações orçamentais entre o
Bloco de Esquerda e o Governo. Por isso, aquilo que o Bloco de Esquerda tem
vindo a dizer é que perante esta alteração de estratégia por parte do Governo,
porque é uma alteração de estratégia, o Parlamento e o país devem-se pronunciar.
Na opinião do Bloco, essa
alteração de estratégia é um erro?
É um erro. Nós temos uma prioridade
diferente: nós entendemos que se o crescimento económico, porque há uma
estratégia que está a resultar, produz folga orçamental - e está a produzir
folga orçamental porque as receitas estão a crescer mais, ou porque há menos
despesa com juros, ou porque os juros estão negativos; enfim, há um conjunto de
fatores que faz com que haja folga orçamental, também em 2017 porque houve
despesa que não foi executada -, essa folga tem de ser usada para fazer agora
investimentos que não podem ser adiados. Portanto, é um erro não o fazer e
querer adiar investimentos de que o país precisa hoje.
A forma como Mário Centeno olha
para este problema é curiosa, porque diz que não sobra dinheiro, faltou foi
menos dinheiro.
Isso é só uma forma diferente de
fugir ao problema. Quando negociámos o Orçamento de Estado para 2018 foi com
base num défice de 1,1% que tinha subjacente um cenário de consolidação
orçamental, esse cenário de consolidação orçamental foi aceite por Bruxelas,
foi aceite pelo Governo, e era um cenário que garantia a sustentabilidade das
contas públicas. Se era bom há quatro meses, porque é que não é bom hoje? Essa
é a pergunta que devemos fazer. Depois, também devemos perguntar quais são as
consequências de não usar esta folga. Nós entendemos que há dois erros neta
visão do Governo e do ministro das Finanças: o primeiro é que um governo não
pode ser gerido a partir do Ministério das Finanças. Se num governo todos forem
"Centeno", então a gestão financeira desse governo é errada.
Mas todos são "Centeno"
menos o Bloco de Esquerda, é isso que está a dizer?
Se num governo todos forem
"Centeno" e se o Governo for gerido a partir do Ministério das
Finanças, então será sempre mal gerido, porque o ministro das Finanças não tem
capacidade para tomar decisões que são importantes em cada setor.
E este Governo está a ser gerido
pelo Ministério das Finanças ou está a ser gerido a partir do Ministério das
Finanças, usando a sua expressão?
Esta forma de gestão que
privilegia o défice e que altera as prioridades do país submetendo-as a uma
lógica de ir para além de Bruxelas, e em que se centraliza as decisões que são
importantes para o país no Ministério das Finanças, em que é este que retira
autonomia aos ministérios setoriais, tomando decisões que devem ser esses
ministérios a tomar de forma autónoma, conhecendo o detalhe das prioridades do
seu setor, da saúde, da educação, do ambiente, é uma forma não apenas errada do
ponto de vista político, como causa ineficiências na própria gestão dos
serviços públicos. Se nós adiarmos investimentos que hoje são inadiáveis, isso
quer dizer que estamos a causar ineficiências futuras no Serviço Nacional de
Saúde, por exemplo, e, portanto, é um erro achar que é possível gerir um
governo unicamente a partir do Ministério das Finanças e unicamente subjugado a
ultrapassar metas do défice acordadas com Bruxelas.
Está a dizer que foi substituído
o "para além da troika" de Vítor Gaspar pelo "para além de
Bruxelas" de Mário Centeno?
Eu não faço qualquer tipo de
classificações, eu analiso o cenário que tenho à minha frente e as decisões que
estão à nossa frente; e analiso ações e posições políticas. Nós entendemos que
o Governo, ao enviar para Bruxelas um cenário que altera uma meta que balizou
as negociações do Orçamento para 2018, e ao fazê-lo quatro meses depois de
termos negociado esse Orçamento, e ao fazê-lo decidindo não usar a folga que
neste momento está criada e que já vem de 2017 para poder fazer investimentos
que são inadiáveis, está a cometer um erro. É um erro político e é um erro que
vai gerar ineficiências no futuro.
Adiar investimentos não é gerir
bem. Adiar investimentos que têm de ser feitos hoje é causar ineficiências nos
serviços públicos e, portanto, é preciso ter uma lógica de análise destes
investimentos que não seja meramente subordinada à questão de permanente
ultrapassagem da meta do défice.
Esta semana a TSF teve a
entrevista com o ministro das Finanças e eu gostava de ter a sua opinião sobre
algumas das coisas que ele nos disse. O ministro avisou, por exemplo, que todos
os que aprovam o Orçamento de Estado são responsáveis por ele. Sentiu isso como
um recado para o Bloco?
O Bloco aprovou o Orçamento de
Estado para 2018 e negociou-o da forma mais intensa e empenhada, como
negociamos todos os Orçamentos de Estado, mas o Bloco não negociou um Orçamento
com folga orçamental. Quando o Bloco negociou o Orçamento, e como faz todos os
anos, quando negociou uma medida para descer o IRS que os trabalhadores pagam e
quando negociou o aumento dos escalões do IRS, fê-lo com base num limite do
défice que era 1,1%, que foi o limite acordado com Bruxelas, e sempre foi dito
e assumido que não há folga para mais, "nós gostávamos de fazer mais, mas
não há folga para mais".
Penso que não estou a dar nenhuma
novidade ao país ao dizer que este é o discurso do Governo: "Nós
gostávamos de investir na saúde, nós gostávamos de contratar os médicos, o
equipamento, gostávamos de abrir a ala pediátrica de oncologia do hospital do
Porto, mas não há folga para mais". Acontece que há folga para mais e se
há folga para mais porque é que não se contratam os médicos, porque é que não
se fazem os investimentos, porque é que não se compra o equipamento?
O Orçamento é negociado em
outubro, de outubro até dezembro há a execução...
É negociado na especialidade,
também.
Sim, o processo acabará lá para
novembro, daí para a frente há a execução, chegou-se ao fim do ano com folga,
há um efeito carry over, a questão é que a folga está a ser usada para dívida
e, ao que diz o ministro, também para criar uma espécie de pé-de-meia na
Segurança Social para choques futuros. Parece-lhe errada essa estratégia de
cautela e de precaução?
Nós temos tido uma gestão
orçamental e acho que temos feito as negociações para o Orçamento seguindo
princípios de cautela e de sustentabilidade, sobretudo na Segurança Social, e
isso provou-se quando duas das medidas de diversificação do financiamento da
Segurança Social - o adicional ao IMI e o aumento da derrama de IRC -, que
estão consignadas à Segurança Social e, portanto, diversificam as suas fontes
aumentando a sua sustentabilidade futura, foram propostas em que o Bloco de
Esquerda esteve muito envolvido e em que batalhou muito para as aprovar.
Da mesma forma, o próprio Governo
diz que a melhor maneira de conseguirmos garantir a sustentabilidade da
Segurança Social é com o emprego, os salários, a qualidade do emprego, e nada
disto está relacionado com adiar investimentos importantes, não vamos misturar
aquilo que não é misturável. Não podemos confundir boa gestão com menos gastos.
Há coisas que nós sabemos sobre o futuro: uma delas é que a Segurança Social
tem de mudar, tem de ter fontes de financiamento mais diversificadas, tem de
garantir a sua sustentabilidade e isso passa pelas fontes de financiamento e
passa pela qualidade do emprego e pelo nível salarial.
Apesar desse alargamento das
fontes da Segurança Social estar no programa do Governo, ainda não foi feito.
Não, não. Já foi feito. Já estão
a ser feitas transferências para a Segurança Social.
Sim, mas ainda não está completo
o quadro de mudança que estava previsto quando o Governo entrou em funções.
Há mais propostas e há mais
mudanças que se podem fazer. Há muito que se fala, por exemplo, porque é que a
Segurança Social não é financiada não apenas pelas contribuições dos
trabalhadores, mas também por uma medida de valor acrescentado das empresas, ou
seja, uma empresa que tenha mais tecnologia e menos trabalhadores poder também
contribuir para a Segurança Social como um bem de todos e um bem solidário. Eu
acho que essas propostas têm de ser debatidas.
Nós temos de ser realistas quando
olhamos para o país. A saúde é um caso: o país vai gastar necessariamente mais
em saúde; a esperança média de vida está a aumentar; há medicamentos e
tratamentos que temos hoje e não tínhamos no passado, que são muito mais
intensivos em tecnologia, que são muito mais complexos, e mais vale assumirmos
isso, hoje.
Mas a despesa em saúde tem, de
facto, vindo sempre a aumentar.
Mas é das mais baixas da Europa
em percentagem do PIB e não ainda dos cortes de muitos anos de desinvestimento
da troika e dos anos de austeridade. Portanto, nós assumirmos que vamos ter um
Sistema Nacional de Saúde que pode ser mais caro, não quer dizer que seja mais
ineficiente, quer sim dizer que é mais competente e mais capaz de lidar com os
desafios futuros. Acho que a sociedade tem de assumir que, com as alterações
geracionais há diferenças na composição a despesa pública e há despesa pública
que pode aumentar, mas pode aumentar para dar qualidade à democracia e para dar
confiança às pessoas.
Acho que qualquer governo tem de
assumir estas transformações aceitando-as e não entendendo que o único critério
de uma boa gestão é a gestão que gasta menos. Pode haver um bom critério de boa
gestão, por exemplo, que seja renovar hoje os equipamentos desgastados do SNS
para amanhã não perdermos mais com equipamentos que não funcionam e que estão a
causar ineficiências ao Serviço Nacional de Saúde. Estas coisas têm de ser
sempre ponderadas.
A Mariana é economista e os
números estruturados dão sempre respostas que queremos. Queria conferir consigo
uma passagem da entrevista do ministro em que ele diz que os valores do saldo
primário das contas do Estado previstos no cenário macroeconómico que serviu de
base aos acordos de 2015 com o Bloco, PCP e Verdes, são exatamente os mesmos
que estão previstos no Programa de Estabilidade para os anos em que há
coincidência, ou seja para 2018 e 2019. É essa a forma como Mário Centeno
explica porque não entende a polémica à volta do documento que foi apresentado
pelo Executivo. O ministro tem razão neste ponto?
Nós podemos perder muitas horas
aqui a discutir previsões e comparações de previsões. Posso dar quatro exemplos
de previsões entre programas de estabilidade, orçamentos de Estado e execução
que são exatamente o contrário do que o ministro das Finanças diz ou que até
comprovam, mas isso não tira o argumento político. O ministro afirma - e até é
verdade - que para 2018 o saldo primário acabará por ser menos positivo e,
portanto, por haver mais injeção de dinheiro da economia. É inegável. Parte
disso é o efeito automático da redução dos juros e, portanto, não implica mais
nada nem nenhuma nova decisão a não ser efeito automático da redução de juros.
Mas também é verdade que para
isto acontecer em 2018, o ajustamento que se fez no saldo primário em 2017
ficou centenas de milhões para além daquilo que estava planeado e, portanto, só
existe esta folga em 2018, só é possível fazer isto em 2018, em parte pelos efeitos
automáticos dos juros, mas também porque o ajustamento em 2017 foi muito
grande: foi 1300 milhões de euros, com um saldo primário que foi muito para
além do que tinha sido acordado e que estava na base do Orçamento de Estado
para 2017.
Mas com a economia também a
responder de uma forma diferente da que estava prevista.
Claro que sim. Nós podemos ter
duas opções: vamo-nos prender à décima do défice, à previsão que se alterou e,
aí, temos várias discussões para fazer e, com certeza, argumentos para ambos os
lados ou vamo-nos focar no ponto político. O ponto político é este: quando nos
dizem que não é possível fazer despesas porque não há folga e depois há folga,
porque é que as despesas não são feitas? Este é o único ponto político que
interessa. Se temos previsões e vontade de fazer investimento, se o Governo
assume que esses investimentos são prioritários e se diz que são prioritários,
mas não é possível porque não há folga, mas depois há folga. Então porque é que
não se fazem os investimentos e se opta por internalizar a folga indo para além
de metas que serviam há quatro meses, mas hoje já não servem. Esta é uma
alteração de estratégia, da forma como nós olhamos para o instrumento que é o
Orçamento e, até, para o ritmo de consolidação orçamental, que deve ser
discutida e que não pode ser simplesmente assumida como sendo a melhor; pode
não ser a melhor estratégia.
Daí o argumento de Mário Centeno
de que faltou menos dinheiro, não sobrou dinheiro; ele disse: "Como
governar é fazer opções...". Outra das coisas que o ministro admitia era a
possibilidade de aumentos da função pública já no próximo ano, mas disse que
isso também dependeria dos equilíbrios que se encontrassem. O Bloco estaria
disponível para definir essa prioridade, ou seja, para eventualmente ter de
abdicar de outras coisas em benefício de um aumento dos funcionários públicos?
Não penso que as negociações
orçamentais se façam assim, não é uma lista de compras. Há duas formas de
negociar orçamentos: uma é apresentar um caderno reivindicativo na reta final e
negociar como faz e bem um sindicato; os sindicatos devem fazê-lo, não acho que
seja esse o trabalho de um partido político. Um partido político - e o Bloco
tem tentado fazê-lo - tem de preparar propostas, tem de negociar propostas, tem
de fazer cenários, tem de conhecer os detalhes das propostas e tem de
prepará-los junto dos ministérios e tem de ter equipas preparadas para o fazer.
É isso que temos tentado fazer tendo equipas que, nas mais diversas áreas, têm
tentado discutir temas com o Governo e têm propostas preparadas que vão do
trabalho, à função pública, dos impostos à banca; temos tido essa preparação e
essa vontade de pensar fora dos ministérios e conseguir colocar desafios e
questões que não estavam a ser colocados antes. Foi assim na energia, foi assim
nas rendas da energia e é assim que queremos preparar o Orçamento de Estado
para 2019.
Penso que o ministro das Finanças
fez mal inicialmente em testar propostas pela negativa, como é o caso dos
aumentos da função pública através de notícias precoces em jornais. É claro que
se deve aumentar a função pública depois de dez anos de congelamento. É
legítimo que se aumente os funcionários públicos depois de 12% que perderam nos
seus salários e que se volte à normalidade de ter atualizações com a inflação.
Isto não é equivalente a descongelar carreiras, são coisas completamente
diferentes, uma coisa é o direito à progressão na carreira, que nem sequer é
igual para todos, e outra coisa é o direito à atualização salarial depois de
12% de corte ao longo de dez anos.
Mas nós não podemos, e não vamos,
deixar-nos aprisionar num debate sobre negociação orçamental que se quer
afunilar em correções salariais, porque é lógico que essas são legítimas, que
são elegíveis e que devem ser feitas. O Ministério das Finanças tem posto de
lado a ideia de um aumento dos salários da função pública porque diz que é uma
despesa estrutural, portanto não se pode aumentar uma despesa estrutural. Mas,
por exemplo, os investimentos em equipamento na saúde que são necessários fazer
não são despesas estruturais, são despesas pontuais; mas também não são feitos.
Portanto, a questão aqui não é de opções entre despesas estruturais ou despesas
pontuais.
É despesa, ponto.
A questão aqui é despesa, ponto,
e se temos ou não vontade de ter uma política de valorização dos serviços
públicos que passa por mais financiamento dos serviços públicos, mas passa
também por valorização dos seus funcionários; uma política de combate à
precariedade que nem sempre passa por questões orçamentais, sobretudo no
privado onde ainda não chegou; uma política de devolução de rendimentos e de
valorização de apoios sociais. Já gora, também, políticas de reorganização da
forma como os serviços públicos funcionam, dou o exemplo do caso da Lei de
Bases da Saúde em que não se toca em questões orçamentais, simplesmente se quer
discutir se queremos continuar a ter um Serviço Nacional de Saúde que todos os
anos é drenado e canaliza recursos para o privado, sem nenhuma razão a não ser
o financiamento de empresas privadas de saúde.
Nesse caso, e tendo em conta o
cenário que acaba de nos descrever e que, parte dele passará por aquela que é a
vontade do Bloco, faz sentido eleger como objetivo ter excedentes nas contas
públicas?
Eu penso que faz sentido eleger
como objetivo ter contas públicas saudáveis e, portanto, consolidadas, capazes
de se adaptarem ao ciclo da economia em que estamos, mas que sejam sobretudo o
resultado de uma economia que está de boa saúde. As contas públicas não
prevalecem à economia, não é possível ter contas públicas se o emprego não
estiver bem, se a economia não estiver a crescer, se não houver salários
decentes. O passado recente demonstrou perfeitamente isso: Vítor Gaspar fez o
maior aumento de impostos em taxas, mas a receita fiscal diminuiu, porque a
política recessiva foi de tal forma, o desemprego foi de tal forma, que a economia
não respondeu. Portanto, privilegiar e pôr as contas públicas à frente da
economia é um erro; as contas públicas são resultado de melhor emprego, melhor
salário, melhor crescimento económico e, por isso, devem ser sempre objetivos
que nós vemos em comparação com o momento da economia.
É bom que fique claro que isto
não é uma luta entre quem quer serviços públicos e quem quer contas públicas
consolidadas, quem quer emprego com direitos e quem quer contas públicas
consolidadas. Nós não devemos achar que é preciso sacrificar uma coisa para ter
a outra, é possível ter ambas. Vamos ser realistas: Portugal já tem o saldo
primário positivo. Não fosse pelos juros da dívida, o Estado já dava lucro.
Temos um défice que, neste momento, está em 0,9% do PIB e, portanto, temos as
contas públicas consolidadas. O que estamos a discutir é se devemos acelerar
esse processo de caminho para o défice zero, que é um objetivo que não faz
sentido a não ser que seja o resultado da economia e que não tem deve ser um
objetivo por si só o acelerar desse caminho prejudicando outros objetivos que
são igualmente ou mais importantes, como a qualidade dos nossos serviços
públicos. Penso que, neste momento, a prioridade são as pessoas que estão há
três anos à espera para ter uma consulta ou uma operação.
Mas o Bloco não é sensível à
necessidade de aliviar o peso da dívida e, sobretudo, o peso que o serviço da
dívida tem no exercício orçamental?
Acho que nenhum outro partido se
preocupou tanto e levou tão a sério o assunto da dívida pública desde o início
da crise como o Bloco de Esquerda. Exatamente por saber que a dívida pública é
um peso que esmaga as economias, sempre dissemos que a reestruturação da dívida
era possível e era necessária. A única razão pela qual não é feita é por um dogmatismo
ideológico e já o discutimos várias vezes; por exemplo, se uma empresa tem
problemas de dívida, ninguém sugere que a empresa feche as portas para pagar a
dívida, primeiro tem de se reestruturar essa dívida dessa empresa, e o mesmo se
aplica a uma pessoa. Só os estados é que têm de impor e transferir os
sacrifícios para os cidadãos para nunca poder reestruturar a dívida, para não
ousar afetar os credores, que são os grandes interesses internacionais.
Numa empresa tenta-se
reestruturar a dívida, mas também muitas vezes a própria empresa é alvo de
reestruturação, não é?
Claro, mas nem sempre é assim e
acho que isso pode e deve ser sempre discutido. Agora, ser alvo de
reestruturação sem reestruturar a dívida é que não faz nenhum sentido, e foi
aquilo que aconteceu a Portugal. O país sofreu um processo de reestruturação
brutal, mas a sua dívida não foi reestruturada e, portanto, ficou com o pior
dos dois mundos.
É óbvio que o peso da dívida é um
problema, mas o maior problema de todos é tentar submeter e sacrificar o
crescimento económico, a qualidade da democracia e a qualidade dos serviços
públicos ao peso do pagamento de uma dívida. Ela não se vai tornar mais
sustentável se nós estivermos sistematicamente a asfixiar a qualidade da
democracia, a asfixiar a economia e a asfixiar a qualidade dos serviços
públicos. Ter um défice entre 1,1% e 0,7% ou entre 1,1% e 0,7% ou entre 0,7% e
0,6%, em termos de sustentabilidade futura da dívida pública faz pouca
diferença ser num ano ou ser no ano a seguir. Até porque os juros, neste
momento, estão baixos. Estamos a falar de ajustamentos de décimas do PIB entre
um ano e o outro ano. Portanto, do que se trata aqui, não é da sustentabilidade
da dívida pública, é de um objetivo que começa a aparecer como existente de um
défice zero em 2018, e isso não passa de um outdoor político que não pode ser
conseguido sem uma pressão sobre os serviços públicos que não é aceitável neste
momento.
É um outdoor apenas para ser
visto aqui por Portugal ou também para ser visível em Bruxelas? Acha que Mário
Centeno está a querer mostrar que é uma espécie de aluno de quadro de honra nas
instituições europeias para chegar a comissário europeu?
Essa crítica já foi feita muitas
vezes e eu acho que ela é inevitável. A preocupação em parecer bem para
Bruxelas tem tido consequências em Portugal, nomeadamente nesta vertigem para
ir sistematicamente além das metas que estavam acordadas com Bruxelas.
Mas é o país parecer bem ou Mário
Centeno parecer bem?
Acho que ambos.
Julgo que terá dito alguma coisa
à volta disto: "Mário Centeno é uma força de bloqueio no que toca
concretamente à negociação de algumas despesas públicas"; se não estou em
erro, na altura falava especificamente na ferrovia, mas também na questão da
legislação laboral. É muito difícil negociar com Mário Centeno?
Não, penso que as discussões que
temos com o Ministério das Finanças e com o ministro das Finanças são sempre
importantes e acho que as devemos valorizar e fazemo-lo com certeza. É difícil
negociar com o Governo como um todo e é óbvio que estando muitas das decisões e
havendo uma grande centralização da gestão financeira no Ministério das
Finanças, a parte mais dura das negociações diz respeito às verbas que são
alocadas a diferentes investimentos, a diferentes medidas, e essas discussões
são tidas com o Ministério das Finanças. Temos aí discussões mais duras porque,
em muitos casos, temos objetivos diferentes ou temos noções diferentes das
prioridades.
Não tanto pelo interlocutor?
Não, não se trata do
interlocutor. Acho que aqui a questão é política, tem a ver com opções
políticas, nada disto é obviamente pessoal, estamos a falar sempre de opções
políticas. Até quando criticamos a centralização das decisões no Ministério das
Finanças, o que estamos a criticar é uma opção política, uma forma de gerir um
governo e o que estamos a dizer é que esta forma de gerir um governo é errada.
É a estratégia do próprio
Governo.
Mas a estratégia do Governo, que
se traduz numa centralização no Ministério das Finanças, independentemente das
suas causas, é errada e gera ineficiências.
Em última instância, essa é uma
crítica até mais direta ao próprio primeiro-ministro.
Eu acho que é uma crítica à forma
como o Governo se organiza e, como vem sendo visível, vários ministérios
setoriais estão a perder autonomia centralizando decisões no Ministério das
Finanças. Nós entendemos que, num governo, os ministérios precisam de
autonomia, de responsabilidade, de capacidade para tomar decisões, precisam de
controlar ao detalhe as decisões que tomam sem estarem, obviamente, submetidos
ao controlo do aparelho do Ministério das Finanças.
Sabemos, até por experiências
passadas, que o que fica inscrito no Programa de Estabilidade não é
propriamente algo que esteja escrito em pedra, é sempre possível fazer
alterações. O Bloco de Esquerda ainda tem esperança de convencer Mário Centeno
da validade das cossas ideias e de que é possível um outro rumo, sobretudo
porque isto marca o início da discussão para o Orçamento do próximo ano?
Nós tomámos uma posição política
sobre esta questão do Programa de Estabilidade porque entendemos que ela
configura uma alteração de estratégia e porque diz respeito a matéria que já
foi aprovada e, portanto, que já foi negociada. No passado, nunca entendemos
que o Programa de Estabilidade que fosse enviado a Bruxelas fosse um mecanismo
de negociação com o Governo, entendemos sempre que as negociações são feitas
nos Orçamentos porque são estes que são discutidos e votados na Assembleia da
República; é a esse documento que nós damos valor e é a esse processo que nós
damos valor. Centrámo-nos este ano no PE porque entendemos que é errado o
Governo assumir perante Bruxelas metas que são inferiores àquelas que foram
negociadas e votadas há quatro meses. Abriu-se nesse momento um debate
político, o Bloco pronunciou-se e assumiu uma posição muito clara nesse debate,
que terá uma tradução através do projeto de resolução que apresentámos na
Assembleia da República para que a meta de 2018 se mantenha em 1,1% e a folga
seja usada no investimento nos serviços públicos. Penso que esse debate que se
abriu teve bons resultados e tem dado origem a um debate maior na sociedade, em
que diferentes pessoas com diferentes posições políticas têm vindo a questionar
esta estratégia do Ministério das Finanças. Eu acho que ela deve ser
questionada porque há outras alternativas de gestão orçamental sem pôr em causa
a consolidação orçamental e os objetivos do Governo. Portanto, enquanto esse
debate estiver em cima da mesa, enquanto ele existir, não só no Parlamento, na
maioria parlamentar, mas na sociedade, penso que há sempre tempo de
conseguirmos ganhar espaço, ganhar capacidade de influenciar as decisões.
Um projeto de resolução aprovado
no Parlamento vale o que vale. Tem alguma esperança de conseguir reunir apoios
para uma maioria negativa de apoio a este diploma?
Eu penso que um projeto de
resolução vale muito e acho que o Parlamento tem de se pronunciar sobre esta
alteração de estratégia da parte do Governo. O BE convocou todos os partidos a
analisarem o projeto de resolução e a votarem-no, incluindo o Partido Socialista.
O que se procura aqui é convocar e perguntar aos partidos se estão ou não de
acordo com a alteração da estratégia orçamental. O projeto está elaborado - e
nós dissemos quando o apresentámos - para não inibir votos de nenhum partido
político, mas reafirmamos: todos os partidos, incluindo o Partido Socialista,
serão chamados a pronunciar-se sobre esta alteração de estratégia orçamental.
Sobre a relação entre o Governo e
o Bloco de Esquerda: há algo que ainda esteja a falhar no acordo entre o
Governo e o BE?
Bom, o acordo entre o Governo e o
BE tinha um conjunto de medidas concretas que têm vindo a ser trabalhadas e têm
vindo, no geral, a ser implementadas, embora com diferentes prazos.
Não deteta portanto nenhum
falhanço grave nesse caminho?
As medidas constantes no acordo
estão a ser cumpridas e o Bloco tem-no reconhecido e tem trabalhado muito para
que sejam cumpridas e para que possamos chegar ao final da legislatura com o
acordo cumprido, da melhor forma.
Recentemente disse que as
prioridades do Bloco até ao final da legislatura - falta pouco mais de um ano -
são, entre outras, o aumento do investimento público e a legislação laboral.
Deteta abertura do lado do Governo nestes dois temas, especificamente na
questão da legislação laboral?
Muito menor do que aquela que se
esperaria ou que seria exigível a um Governo que elegeu o combate à
precariedade como uma prioridade e que diz abertamente querer ter emprego
qualificado, com direitos, estável, enfim...
Na sua opinião, isso não passou
até agora de um discurso retórico?
Tem havido pequenas alterações a
esse nível, alterações pontuais às leis laborais, mas penso que no grosso, nas
grandes alterações que era necessário fazer revertendo as medidas da direita do
código laboral, no combate ao trabalho precário, no combate ao trabalho
temporário, às empresas de trabalho temporário, há muito caminho para fazer e
até agora o PS não o fez.
E acredita que esse caminho vai
ser feito?
Nós temos lutado para que se faça
e, nalguns campos, temos conseguido algumas vitórias, mas não deixaremos de
apostar nisso como uma das nossas prioridades. Esse é o trabalho que o Bloco de
esquerda tem de fazer e continuará a fazê-lo.
Como é que o Bloco vê os acordos
que forma assinados esta semana entre António Costa e Rui Rio?
Eu acho que o primeiro-ministro
tem que agradecer a Rui Rio a sua vontade de confirmar a divisão interna do
PSD. Este acordo não é inédito, já no passado o PSD e o PS se juntaram para
decidir fundos estruturais, entre outras coisas. Acho que a análise que, não só
o BE, mas uma boa parte do país faz das prioridades que foram encontradas é
bastante negativa, entre parcerias público-privadas, privilégios a setores
rentistas houve desperdício de recursos e houve prioridades mal definidas.
Agora, é preciso também entender o contexto europeu em que este acordo - e as
prioridades - para os próximos fundos comunitários está a acontecer. Temos um
contexto de instabilidade na zona euro em que sabemos que é sempre muito frágil
qualquer negociação e qualquer posição que assuma que está tudo bem na zona
euro e que tudo ficará bem nos próximos dez anos. Portanto, vale o que vale.
O Bloco de Esquerda tem dito - e
sempre esteve disponível para este debate e sempre quis participar nele, e vai
participar nele com certeza - que o país precisa de um plano de investimento a
dez anos. Precisa de um plano de investimento que eleja as suas prioridades
independentemente do quadro comunitário, o país tem de ter um rumo e tem de ter
um rumo de investimentos; isso quer dizer descarbonizar a indústria, ter um
plano forte de transportes de passageiros alternativo, menos poluente, mais
barato, o que significa investir na rede ferroviária, na floresta, mas menos
nas celuloses que causam poluição. Nós precisamos e devemos ter esse plano de
investimento e o Bloco está disponível para o discutir na sociedade e no
Parlamento, temos contribuído e continuaremos a contribuir para esse debate.
Concorda que estes entendimentos
entre o PS e o PSD mudam o xadrez político em Portugal - é uma frase de Santana
Lopes - ou entende esta frase apenas como fazendo parte dessa divisão interna
do PSD de que falava há pouco?
Eu não gostaria de comentar
comentadores, acho que depois são muitos graus de distância da realidade. Já
disse qual a forma como encaro este acordo entre o PS e o PSD sobre fundos
comunitários, quer dizer, não é inédito, já aconteceu no passado, não trouxe
bons resultados, também vale o que vale no atual contexto europeu e neste momento
de negociação de fundos comunitários. Da parte do Bloco de Esquerda, sempre
estivemos disponíveis para essas discussões e não deixaremos de estar.
A Mariana disse, a propósito
destes entendimentos, que o PS teria um dia de fazer as suas escolhas. A escolha
é entre o PSD e o Bloco de Esquerda?
O PS tem de fazer as suas
escolhas políticas. Acho que muitas vezes ficamos perdidos no xadrez partidário
e esquecemos as coisas políticas de fundo. As escolhas são sobre a forma como
encaramos o défice, sobre o investimento nos serviços públicos - a escolha da
Lei de Bases do SNS é um excelente exemplo -, um partido tem de definir o que
quer do SNS, quer um serviço nacional público que privilegie o público, que
invista e que, de alguma forma, prepare o SNS para não estar mais dependente do
privado e que pare a sangria de recursos para o privado? Ou um partido prefere
ter um SNS que perde recursos e que se torna mais uma peça num sistema de saúde
onde vive o privado?
Este tipo de escolhas: o que
queremos do SNS, da legislação laboral, da forma como estruturamos os apoios
sociais, da política de investimentos, do setor público e até onde é que ele
deve ir, o que queremos do controlo de setores estratégicos. Estas escolhas são
essenciais para o futuro do país, são escolhas que definem qualquer partido
politicamente.
Pelas escolhas feitas até agora,
diria que o PS está hoje mais próximo do PSD ou mais próximo da sua coligação
que sustenta este Governo?
Eu recuso-me a colocar o debate
em termos de xadrez partidário ou geografia partidária, acho que essa é uma
forma errada de colocar o debate. Acho que temos de olhar para o país e
perceber o que é que o país precisa e quais são as prioridades. Em 2015, o país
estava numa emergência social, tinha sido terraplanado por uma política de
direita radical, com m plano ideológico muito bem definido e nunca posto a
votação, com a ajuda da troika. Em 2015 havia uma prioridade, era preciso parar
o empobrecimento, era preciso reverter estas políticas, era preciso salvar o
país deste programa de destruição. Essa era a prioridade e era uma prioridade
que reunia consenso num certo número de partidos. Feito o trabalho de saída da
situação de emergência do país - ainda há muito para fazer nesse campo - é
preciso pensar o país para a frente, o que é queremos em relação a setores
estratégicos, a saúde, a educação, o investimento, os transportes, o trabalho,
e são estas escolhas estratégicas de futuro que irão definir como é que cada
partido se alinha, o que é que cada partido pensa do país e definir as maiorias
e os consensos do futuro.
Olhando para o pós-eleições de
2019, o Bloco de Esquerda está disponível para continuar numa espécie de
casamento em que há, por um lado, um António Costa a responder a algumas dessas
prioridades, que não a todas, que são definidas pelos partidos à esquerda,
enquanto, ao mesmo tempo, vai procurando entendimentos com o centro-direita em
temas em que a esquerda não alinha? Acha que é saudável para o país que se
mantenha essa solução híbrida?
No geral penso que já disse o que
é que entendo sobre o que determina maiorias políticas. O que determina
maiorias políticas são ideias políticas, ideias para o país, mas acho que o
Partido Socialista, na última semana, quando mudou de posição sobre as reformas
antecipadas e o programa das reformas antecipadas - ainda vamos a tempo neste
último Orçamento de as negociar -, quando anunciou que não haveria aumentos na
função pública ou pelo menos tentou testar negativamente essa proposta, ou
quando alterou as metas do défice, mostrou-nos um PS na vertigem da minoria
absoluta. Essa vertigem da minoria absoluta que o PS mostrou nesta última
semana, mostra bem a necessidade e de alterar a relação de forças entre a esquerda
e o centro no futuro próximo.
Vê-se a integrar um governo de
coligação com o PS se as opções e as escolhas forem de outra forma, numa pasta
que não seja as Finanças como sugeriu em tempos Catarina Martins?
O Bloco de Esquerda não luta por
pastas nem por poderes dentro de ministérios nem por ministros, luta por ideias
políticas e isso será sempre aquilo que iremos privilegiar e será sempre aquilo
que irá determinar qualquer opção política futura do Bloco de Esquerda.
Portanto, não exclui a
possibilidade desde que as ideias políticas possam ser compatíveis?
Não assumo nem excluo nenhuma
possibilidade, portanto nada disso poderá ser citado como sendo dito por mim.
Aquilo que digo é que quem vota no Bloco de Esquerda saberá que o que determina
as nossas decisões é sempre e será sempre o nosso programa político. Eu acho
que essa é a única forma de estar na política, é dar confiança às pessoas.
Diário de Notícias | Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens
Diário de Notícias | Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens
Sem comentários:
Enviar um comentário