Terminam os governos da “geração
histórica”; há incertezas e desejo difuso de mudanças. Diáz-Canel, o novo
presidente, poderá liderá-las? Em que rumo?
Vanessa Oliveira | Outras Palavras
Entro em um táxi coletivo em
frente à famosa sorveteria Copélia. São 9h da manhã e os pontos estão
transbordando de gente. Por uma coincidência surreal, o taxista que para na
minha frente é o mesmo do dia anterior. Às vezes, Havana parece minúscula. Táxis
coletivos na capital cubana são bem peculiares. Com trajetos fixos que custam
10 pesos cubanos (CUP), eles vão parando a quem der sinal, até lotar. De
dentro, o som alto do bom e velho reggaeton te impede de escutar quem pergunta
o destino da calçada. O aceite da corrida é a parada do carro; a recusa, uma
arrancada sem mais explicações.
Quando dá, vou conversando. Foi
assim desta vez. Afinal, agora o taxista e eu já éramos “conhecidos”. Pergunto
sobre as eleições para a Assembleia do Poder Popular, que aconteceriam naquele
fim de semana, domingo 11 de março. Ele não votava, fim de papo. Pulamos para a
escolha do substituto de Raúl Castro (no poder desde 2006, quando seu irmão
Fidel ficou doente). O pleito havia sido adiado de fevereiro para abril de 2018
por causa do furacão Irma, que causou uma série de danos à Ilha e ao calendário
eleitoral.
– Quem vai ser o próximo
presidente, afinal?, repito.
Um senhor bem arrumado no banco
de trás especula o nome que se confirmaria em 19 de abril: Miguel Díaz-Canel,
vice de Raúl, ex-ministro da Educação, engenheiro, 57 anos. Um moço com fones
de ouvido arrisca Bruno Rodríguez, ministro das Relações Exteriores desde 2009,
60 anos. E o taxista arremata: “Vai ser a Mariela Castro!”, ao que todos
respondem com um cubaníssimo estalar de língua, sinal de discordância ou
descrédito. Mariela é filha de Raúl Castro, deputada da Assembleia do Poder
Popular e responsável pela institucionalização da pauta LGBT na Ilha, tem 55
anos.
A anedota ilustra as nuances
desse momento histórico: pela primeira vez desde a Revolução, o prognóstico das
ruas sobre as presidenciais era incerto. Os nomes na boca no povo eram de civis
mais jovens e não de tarimbadas lideranças militares, remanescentes da chamada
“geração histórica” da Revolução. É um sintoma de que, no inconsciente
coletivo, a necessidade do protagonismo octogenário esvanece.
Ainda que a escolha por
Díaz-Canel já se desenhasse desde a reeleição de Raúl Castro, em 2013, o momento político atual
é marcado por uma generalizada sensação de mudança à vista – e pelas
incontornáveis dúvidas e inseguranças que acompanham os grandes câmbios
históricos.
Uma breve contextualização sobre
a questão da presidência dentro do sistema político cubano se faz necessária.
Díaz-Canel será o quinto presidente da Ilha sob a Revolução. Diferentemente do
que infere o senso comum, Fidel não foi presidente do país desde o início do
processo revolucionário. Antes de ele assumir o comando do Estado em 1976,
acumulando o principal cargo político do país (primeiro-secretário do Partido
Comunista Cubano), presidiram a Ilha Miguel Urrutia Lleó, interino nos
primeiros meses de 1959; e Osvaldo Dorticós Torrado que, já como membro do
Partido Unido da Revolução Socialista Cubana, ocuparia a cadeira até o início
do mandato castrista.
A saúde de Fidel obrigou Raúl a
entrar em cena em 2006. Dois anos depois, ele seria eleito presidente pela
Assembleia do Poder Popular e estabeleceria, pela primeira vez desde o início
da Revolução, um limite de cinco anos para o mandato de chefe do Executivo, com
direito a uma reeleição. A medida fez parte da chamada “atualização do
socialismo cubano”, processo ainda em curso, que visa garantir o
rejuvenescimento da classe política e promover reformas econômicas.
Mas quem é Miguel Díaz-Canel?
Miguel Mario Díaz-Canel Bermudez
é filho da prolífica Villa Clara. Além de ostentar uma das mais radiantes cenas
da nova trova cubana, esta província no noroeste da Ilha foi berço do artista
plástico Wifredo Lam (1902-1982), da cantora La Mora (1930-1984) e do pianista
Rubén González (1919-2003). Villa Clara também tem uma longa linhagem de
personalidades políticas, que vem desde a grande financiadora da luta pela
independência de Cuba, Marta Abreu (1845-1909) até dirigentes contemporâneos
como Adela Hernández, a primeira pessoa trans a ser eleita para um cargo
público na Ilha; e o segundo secretário do PCC, José Ramón González Ventura.
Díaz-Canel, que foi primeiro
secretário do Partido em sua província natal e em Holguín antes de se tornar
ministro da Educação (2009-2012), é conhecido como um homem aberto e culto,
apesar de pouco carismático. Ele permitiu que continuassem acontecendo shows de
travestis no famoso centro cultural El Mejunje, em Santa Clara, um bastião
de resistência da comunidade LGBT local, além de ter comprado uma briga interna
no Partido pela manutenção do programa de rádio Alta Tensão, que se dedica a
discutir problemas cotidianos dos cubanos.
Civil, o engenheiro eletrônico
nunca vestiu o uniforme verde-oliva característico dos revolucionários da
Sierra Maestra, mas reverencia constantemente a soberania do Partido Comunista
Cubano, que integra desde 1997. É um quadro de carreira, consciente de sua
trajetória dentro da burocracia partidária. Como discursou Raúl Castro no dia
da posse, a ascensão de Díaz-Canel à Presidência não é um improviso: “sua
promoção gradual a cargos superiores foi intencional e prevista. Não cometemos
o erro de acelerar este processo, como em outros casos”, em uma possível
referência ao caso Robaina. Ministro das Relações Exteriores de Cuba aos 37
anos, Roberto Robaina teve uma carreira política meteórica até que foi expulso
pelo PCC sob acusações de deslealdade e corrupção. Mais tarde, soube-se pela
divulgação do diálogo de sua exclusão, que ele se autoproclamava candidato da
era pós-Castro e mantinha relações de privilégio com representantes de outros
governos.
Ao seu feitio, Díaz-Canel leu o
discurso de posse meio tenso, de forma sisuda, e aproveitou para alertar os
céticos que a passagem geracional do bastão não compromete a continuidade do
processo revolucionário. Fez questão de frisar que Raúl está à frente das
tomadas de decisão “de maior transcendência para o presente e o futuro da
nação”. E definiu o Partido como a “força dirigente superior da sociedade e do
Estado”.
Outra novidade do processo foi a
entrada de Cuba na era da web-política. No início da semana, o Estado cubano convocou
uma campanha para que os cubanos com acesso à internet realizassem um tuitaço
usando a hashtag #SomosContinuidad. Ao que parece, a campanha funcionou e
catapultou a Assembleia do Poder Popular para o ranking mundial de trending
topics do Twitter, colocando o novo líder da revolução na pauta
internacional.
Se #SomosContinuidad,
o que muda na prática?
A mudança maior é na simbologia
da Revolução: o poder passa de mãos militares a civis. A geração que construiu,
a ponta de fuzil, uma sociedade de Educação e Saúde universais; e que a manteve
sob ofensiva constante do maior império que a humanidade já viu, solta as
rédeas do processo histórico. E neste caso o simbólico é essencial, dado o
impacto da Revolução Cubana na construção do imaginário tanto da esquerda
quanto da direita, não só na América Latina, como no mundo.
Não há como negar o ar de
melancolia que o discurso protocolar de Díaz-Canel enseja. Ao cabo de mais de
meio século inspirando a criatividade política nas esquerdas, o castrismo
parece despedir-se burocraticamente. Sobra uma sensação de que os velhos
revolucionários aceitaram passar adiante a gestão do governo, mas não a
construção político-ideológica da Revolução. É como se a ideia de continuidad fosse
um escudo contra a dialética da Revolução, uma tentativa de congelá-la no
tempo. A preocupação de Díaz-Canel em reverenciar os líderes históricos
não é apenas uma postura de respeito, de quem chega no sapatinho para fazer sua
parte, mas de alguém que ainda deve explicações e está esperando ordens de
outro lugar.
Professoras/es e pesquisadoras/es
com quem conversei descreveram este processo como uma espécie de
reprodução ad eternum da burocracia que se impôs nas últimas décadas,
principalmente durante o chamado Período Especial, entre o colapso da União
Soviética e a ascensão de Hugo Chávez à presidência da Venezuela, quando Cuba
ficou completamente desamparada na esfera internacional. Foi na década de 1990,
quando cessou a entrada de recursos russos, que o embargo estrangulou ainda
mais a economia da Ilha, revertendo os até então prodigiosos índices de
desenvolvimento humano da Revolução. A sobrevivência do povo virou a única
prioridade.
Talvez seja sintomático que um
homem que conduziu Villa Clara por essa época assuma o país num momento em que
o processo de abertura econômica, o fim do ciclo progressista na América Latina
a reaproximação com os Estados Unidos colocam dúvidas sobre a capacidade de
sobrevivência da própria Revolução.
É importante lembrar que Raúl
Castro permanecerá até 2021 como Primeiro Secretário do PCC, o que significa um
sutil rearranjo institucional, já que a função foi acumulada à de chefe de
Estado tanto por Fidel quanto por Raúl em outros momentos. Não é, no entanto,
uma configuração inédita: Fidel foi primeiro secretário durante a presidência
de Osvaldo Dorticós Torrado e também quando Raúl assumiu. Como fez seu irmão no
passado, Raúl deve seguir responsável pelas grandes decisões políticas,
enquanto Díaz-Canel exerce as funções cotidianas da administração.
Ou seja, troca-se o timoneiro,
mas o barco segue a rota da chamada atualização do modelo socialista cubano:
mudanças econômicas necessárias e esperadas pela população convivem com limites
claros em relação às possibilidades de transformação política. Com uma
diferença: Díaz-Canel não é Castro, o que pode trazer problemas de
credibilidade. Afinal, a população olha para o novo presidente e vê um
burocrata pouco carismático, que não remete ao passado glorioso da Revolução
nem propõe um futuro promissor, que alivie o cotidiano dos cubanos.
Enquanto isso, grupos à direita e
à esquerda do governo se articulam, principalmente na arena internacional, para
exigir abertura política e até um referendo constitucional, como é o caso do
grupo Cuba Decide, dirigido pela filha do dissidente Osvaldo Payá, Rosa Maria
Payá. Novos jornalistas, alguns formados no exterior, montaram jornais
independentes, registrados em outros países, mas atuantes na Ilha e que
oferecem hoje uma série de material de reflexão capaz de influenciar a opinião
pública, ainda que sua circulação seja restrita por várias razões, como o alto
preço da conexão à internet e a dificuldade de navegar e baixar textos em dispositivos
móveis.
Mas essas restrições têm os dias
contados. O acesso à web cresce conforme multiplicam-se os acordos
com empresas estrangeiras de tecnologia da informação. Plataformas de grandes
empresas estadunidenses como o Google acabam entrando de supetão na Ilha, em
detrimento do tão planejado acesso democrático à informação. Um provável tiro
no pé.
No plano histórico, 2018 é um ano
especial para Cuba, porque precede o aniversário de 60 anos do triunfo da
Revolução. E símbolos são importantes para a Revolução, principalmente num
momento de transição. É deles que depende a continuidad. Não à toa,
Díaz-Canel, que tem 57 anos, assumiu a presidência justamente no aniversário de
57 anos da tentativa de invasão da Bahia dos Porcos por um grupo paramilitar
formado e financiado pela CIA, um episódio lembrado com orgulho pelos cubanos
que enxotaram os chamados gusanos** do território e defenderam a
Revolução.
Essa tentativa de atrelar
Díaz-Canel ao processo histórico da Revolução Cubana é uma maneira de pintar
sua gestão com um verniz revolucionário – talvez meio démodé em
Havana, mas fundamental para outras províncias, principalmente no Oriente da
ilha. Este jogo dialético entre mudança formal e continuidade estrutural é o
que tem ditado a política da Ilha. Só que agora, acontece uma clara
liberalização da economia, enquanto a passagem de poder da velha Revolução para
a nova burocracia é emoldurada em hashtags sobre continuidade. É como
se, entre a proto-crise interna e a mais que consolidada crise permanente
externa, Cuba tivesse optado por mudar tudo para que nada corra o risco de
mudar de fato.
Talvez melhor do que SomosContinuidad fosse SomosRevolución, a
ideia de que a reinvenção de uma sociedade solidária tem mais a oferecer à
História do que a tentativa de congelamento de um processo no tempo.
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** gusano ou “verme” é
como eram chamados os cubanos que deixaram o país depois do triunfo da
Revolução e se mobilizavam para boicotá-la.
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