Quem me lê que eleja um conceito
de democracia. No que me toca, não satisfaz o que ouvi do Senhor
Presidente da República e o que li nos meus dicionários, porque a democracia
não se esgota no uso do voto, nem se restringe à intervenção dos representantes
eleitos.
Vítor Ranito | AbrilAbril | opinião
Considerações «vindas do
coração» já as ouvi em diálogo com amigos. Nessas circunstâncias, a falta
de rigor dos termos usados, as adjectivações desajustadas, serão compreendidas
como deficiência habitual na oratória caseira.
Mas um alto dignitário, perante
jornalistas, microfones e objectivas da televisão, para mais sendo professor
catedrático, deve necessariamente pensar com o cérebro e controlar o que lhe
dita o «coração». Mesmo que, nele, bata do lado direito.
Em concreto, entendo que o
Presidente da República desenvolve as suas responsabilidades em nome de uma
entidade complexa, a totalidade dos portugueses, tenham-lhe dado o voto ou não,
um povo que integra diferentes gerações, diversas camadas e classes sociais,
desiguais graus de informação, formação e cultura, e uma pluralidade de opções
político-ideológicas.
Por isso, nas suas intervenções
dirigidas a essa massa multifacetada de povo, é de esperar do Presidente que
opte por uma atitude de equilíbrio, distanciando-se de privilegiar os gostos e
interesses dos seus amigos e apoiantes partidários – equilíbrio que não usou
quando considerou Carlucci um importante construtor da democracia em
Portugal.
Procurarei aqui não repetir,
acerca do tema, as considerações indignadas de muitos outros conhecedores da
acção dessa escola de formação e intervenção democrática, a CIA, que Carlucci
serviu e dirigiu. A verdade é que Carlucci veio mandado para o nosso país
para organizar e orientar o processo destinado a (tal como o socialista Gonelha
em relação à Intersindical) «quebrar a espinha à Revolução de Abril».
A verdade é que esse processo foi
integrado por uma componente propagandística baseada em boatos que estimulam
preconceitos, incendeiam ódios e quebram a coesão do povo; na propagação de
falsidades que fomentam a agressividade; na recuperação dos antigos alvos que o
fascismo salazarista tinha perseguido e tentado abater – esse processo provocou
mais de 300 atentados bombistas e quase 200 assaltos e incêndios, num total de
566 actos terroristas, que atingiram por 160 vezes o PCP, por 53 vezes o MDP,
por 32 vezes outros partidos de esquerda, por 16 vezes o PS, e também 40 órgãos
de comunicação social e instituições culturais, 31 sindicatos e 19 estruturas
militares.
Será democrata, será vulto da
nossa democracia – a democracia plasmada na Constituição da República
Portuguesa – quem orientou materialmente e em parte financiou organizações e
actos terroristas, bem como grupos de caceteiros contratados e pagos por alguns
patrões do Norte para perseguirem e agredirem activistas sindicais nas
empresas?
A verdade é que tais métodos são
claras expressões da prática cianesca, posta ao serviço de uma determinada
ideia de democracia, a verdadeira democracia, única legítima, a democracia
exemplar para todo o Universo, na concepção das diferentes Administrações e,
agora, de Donald Trump – a democracia que permite ao patronato forçá-la a
ficar do lado de fora do portão das empresas – eis a democracia que agrada ao
capital.
Tudo faz lembrar, em tempos e
situações políticas diferentes, as perseguições e as costumeiras vítimas dos
torcionários da PIDE, os mesmos interesses de classe protegidos pelo fascismo,
enfim a velha ordem tipo salazarista.
Dirão alguns que estou a utilizar
a tal «cassete»... Chamem-lhe o que quiserem, mas eu, que nunca tive sorte ao
jogo, aceito apostar singelo contra dobrado em como, perguntados sobre o antigo
director da CIA e ex-embaixador dos EUA em Lisboa, os dirigentes
patronais responderão:
– Um democrata, claro!
E, contudo, Carlucci era homem da
máxima confiança política do seu chefe, o Secretário de Estado Henry Kissinger,
cujos críticos acusam de ser responsável por crimes de guerra, politico
americano que disponibilizou meios humanos, materiais e financeiros para
incentivar o massacre das oposições democráticas e o derrube de governos
legítimos, do Zaire ao Camboja e à América do Sul, onde foi cúmplice dos
fascistas de Pinochet contra o regime de Salvador Allende, democraticamente
eleito.
E foi
este «democrata» norte-americano nobelizado [!] Henry Kissinger, quem
deu luz verde à invasão de Timor Leste pela Indonésia, donde resultaram cerca
de duas dezenas de anos de violência e mais de 100.000 mortes, civis e
militares, como saberá Marcelo Rebelo de Sousa.
Mário Soares, conhecendo bem com
quem emparelhava, tinha Frank Carlucci como seu especial amigo. Aliás, Soares,
com a arrogância frequente nos ganhadores, não escondeu ter recebido
aconselhamentos e orientações desse especial amigo; nem negou o financiamento
da Administração Americana para criar condições de regresso e retoma do poder
por gente como Ricardo Espírito Santo e outros que tais, para a luta contra a
influência dos militares revolucionários de Abril e dos suspeitos de apoiarem os
comunistas em particular.
Em minha opinião, daqui só
podemos concluir pela conveniência de, em tempo oportuno, se avaliar com
objectividade o mito erguido em torno de Mário Soares e de se aprofundar a
compreensão do carinho com que a direita evoca o seu protagonismo político no
pós-25 de Abril. Útil será, ainda, corrigir as significações lexicais do
vocábulo democracia.
Entretanto, aquela que é a
opinião legítima do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa não deve ser usada pelo
Presidente da República em oposição a quem, justa e fundamentadamente critica a
imposição dos chamados interesses dos EUA a outros Estados
soberanos.
O Presidente deveria ponderar a
existência no país, até entre os seus eleitores, de muita gente que recusa a
altivez com que os norte-americanos propagandeiam a ideia «do estilo de vida
americano». Deveria ter tido em conta que ainda mais gente conhece e repudia as
actividades e os métodos da CIA.
E não se acuse a esquerda
nacional de propagandear as agressões estadunidenses no estrangeiro, porque a
mais sistemática divulgação de tais agressões, a mais insistente caracterização
da CIA enquanto ninho de torturadores e assassinos, tem origem no cinema
holiodesco de série B, que hegemoniza a distribuição fílmica no país.
Descontados nesses filmes
eventuais exageros da ficção, só em delírio se acreditará que a CIA forme
democratas e aplique os seus ilimitados meios para ajudar Governos «do povo,
pelo povo, para o povo», conforme a conhecida definição de Abraham Lincoln.
Constata-se que a aplicação do
termo democracia evoluiu com as circunstâncias políticas e sociais das
diferentes épocas. Terá surgido na Grécia Antiga, em meados do século V de
antes da nossa era, para designar a forma de governo ali praticada.
Na ideia de Aristóteles, podiam
ser três as formas de governo: o «governo de um» (monarquia), o «governo de
alguns» (aristocracia) e o «governo de muitos» (politeia), cujas
expressões degradadas seriam, respectivamente, a «tirania», a «oligarquia», a
«democracia».
Contudo, de «um» a «muitos» ficava
excluída a participação da grande maioria composta dos residentes, constituída
por mulheres, estrangeiros e escravos, aos quais estavam vedados direitos de
cidadania: estes eram reservados apenas aos proprietários de terras, maiores de
18 anos, filhos de pais atenienses.
Em busca de uma definição
contemporânea, li no Dicionário Ilustrado Lello Universal: «Democracia: Governo
em que o povo exerce a soberania popular (que exagero! digo eu); classes
populares».
Significação semelhante encontrei
na 8.ª edição do Dicionário Complementar da Língua Portuguesa, de Augusto
Moreno. Já o Dicionário de Português, 3.ª edição, da Porto Editora, e o Moderno
Dicionário da Língua Portuguesa, editado pelo Círculo de Leitores, acrescentam
à definição anterior a consideração da representação da vontade dos cidadãos
através do sufrágio universal.
Pelo seu lado, as formações
político-partidárias elaboram o conceito reflectindo a existência de diferentes
interesses de classe (que, no entanto, algumas se recusam a reconhecer) e a
perspectiva de sistema social e político que defendem.
Para a democracia-cristã, a
democracia deve mostrar-se ligada aos ensinamentos e princípios cristãos,
visando uma sociedade onde a generalidade dos cidadãos consiga alcançar a
propriedade privada – obviamente com repúdio do comunismo.
Na evolução da formulação
social-democrata foi sendo esquecida a herança histórica do reformismo de tipo
lassaliano, foi-se distanciando do marxismo, abandonou a ideia de ruptura com o
sistema social e político capitalista, e enveredou pelo uso enfático da
identificação com o designado «socialismo democrático» – ou seja, os
ideólogos da social-democracia vêm resvalando sobre a direita e consolidando o
gosto pelas alianças prioritárias com as formações representativas dos
interesses do capital.
Por sua vez, os comunistas, que
se mantêm firmes na defesa dos interesses de classe dos trabalhadores, na
perspectiva da edificação de uma sociedade sem explorados nem exploradores,
defendem que a democracia deve integrar quatro vertentes inseparáveis – a
política, a económica, a social e a cultural.
Quem me lê que eleja um conceito
de democracia. No que me toca, não satisfaz o que ouvi do Senhor
Presidente da República e o que li nos meus dicionários, porque a democracia
não se esgota no uso do voto, nem se restringe à intervenção dos representantes
eleitos.
O conteúdo constitucional
parece-me uma boa referência para a construção de uma mais correcta definição
de democracia. Mau grado a incomodidade do poder dominante, outros tipos de
intervenção dos cidadãos integram a substância do carácter democrático de um
Estado.
Sendo isso uma realidade,
filólogos deveriam empenhar-se na eliminação do primarismo e da plasticidade da
actual definição comum do vocábulo em causa, pelo menos admitindo as diferenças
de acepções que espelham os interesses de classes conflituantes na sociedade.
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