sexta-feira, 29 de junho de 2018

“Olhe que não, olhe que não!”, Sr. Presidente


Quem me lê que eleja um conceito de democracia. No que me toca, não satisfaz o que ouvi do Senhor Presidente da República e o que li nos meus dicionários, porque a democracia não se esgota no uso do voto, nem se restringe à intervenção dos representantes eleitos.

Vítor Ranito | AbrilAbril | opinião

Considerações «vindas do coração» já as ouvi em diálogo com amigos. Nessas circunstâncias, a falta de rigor dos termos usados, as adjectivações desajustadas, serão compreendidas como deficiência habitual na oratória caseira. 

Mas um alto dignitário, perante jornalistas, microfones e objectivas da televisão, para mais sendo professor catedrático, deve necessariamente pensar com o cérebro e controlar o que lhe dita o «coração». Mesmo que, nele, bata do lado direito.

Em concreto, entendo que o Presidente da República desenvolve as suas responsabilidades em nome de uma entidade complexa, a totalidade dos portugueses, tenham-lhe dado o voto ou não, um povo que integra diferentes gerações, diversas camadas e classes sociais, desiguais graus de informação, formação e cultura, e uma pluralidade de opções político-ideológicas. 

Por isso, nas suas intervenções dirigidas a essa massa multifacetada de povo, é de esperar do Presidente que opte por uma atitude de equilíbrio, distanciando-se de privilegiar os gostos e interesses dos seus amigos e apoiantes partidários – equilíbrio que não usou quando considerou Carlucci um importante construtor da democracia em Portugal. 

Procurarei aqui não repetir, acerca do tema, as considerações indignadas de muitos outros conhecedores da acção dessa escola de formação e intervenção democrática, a CIA, que Carlucci serviu e dirigiu. A verdade é que Carlucci veio mandado para o nosso país para organizar e orientar o processo destinado a (tal como o socialista Gonelha em relação à Intersindical) «quebrar a espinha à Revolução de Abril». 

A verdade é que esse processo foi integrado por uma componente propagandística baseada em boatos que estimulam preconceitos, incendeiam ódios e quebram a coesão do povo; na propagação de falsidades que fomentam a agressividade; na recuperação dos antigos alvos que o fascismo salazarista tinha perseguido e tentado abater – esse processo provocou mais de 300 atentados bombistas e quase 200 assaltos e incêndios, num total de 566 actos terroristas, que atingiram por 160 vezes o PCP, por 53 vezes o MDP, por 32 vezes outros partidos de esquerda, por 16 vezes o PS, e também 40 órgãos de comunicação social e instituições culturais, 31 sindicatos e 19 estruturas militares. 

Será democrata, será vulto da nossa democracia – a democracia plasmada na Constituição da República Portuguesa – quem orientou materialmente e em parte financiou organizações e actos terroristas, bem como grupos de caceteiros contratados e pagos por alguns patrões do Norte para perseguirem e agredirem activistas sindicais nas empresas? 

A verdade é que tais métodos são claras expressões da prática cianesca, posta ao serviço de uma determinada ideia de democracia, a verdadeira democracia, única legítima, a democracia exemplar para todo o Universo, na concepção das diferentes Administrações e, agora, de Donald Trump – a democracia que permite ao patronato forçá-la a ficar do lado de fora do portão das empresas – eis a democracia que agrada ao capital. 

Tudo faz lembrar, em tempos e situações políticas diferentes, as perseguições e as costumeiras vítimas dos torcionários da PIDE, os mesmos interesses de classe protegidos pelo fascismo, enfim a velha ordem tipo salazarista.

Dirão alguns que estou a utilizar a tal «cassete»... Chamem-lhe o que quiserem, mas eu, que nunca tive sorte ao jogo, aceito apostar singelo contra dobrado em como, perguntados sobre o antigo director da CIA e ex-embaixador dos EUA em Lisboa, os dirigentes patronais responderão:  

 – Um democrata, claro! 

E, contudo, Carlucci era homem da máxima confiança política do seu chefe, o Secretário de Estado Henry Kissinger, cujos críticos acusam de ser responsável por crimes de guerra, politico americano que disponibilizou meios humanos, materiais e financeiros para incentivar o massacre das oposições democráticas e o derrube de governos legítimos, do Zaire ao Camboja e à América do Sul, onde foi cúmplice dos fascistas de Pinochet contra o regime de Salvador Allende, democraticamente eleito. 

E foi este «democrata» norte-americano nobelizado [!] Henry Kissinger, quem deu luz verde à invasão de Timor Leste pela Indonésia, donde resultaram cerca de duas dezenas de anos de violência e mais de 100.000 mortes, civis e militares, como saberá Marcelo Rebelo de Sousa. 

Mário Soares, conhecendo bem com quem emparelhava, tinha Frank Carlucci como seu especial amigo. Aliás, Soares, com a arrogância frequente nos ganhadores, não escondeu ter recebido aconselhamentos e orientações desse especial amigo; nem negou o financiamento da Administração Americana para criar condições de regresso e retoma do poder por gente como Ricardo Espírito Santo e outros que tais, para a luta contra a influência dos militares revolucionários de Abril e dos suspeitos de apoiarem os comunistas em particular.  

Em minha opinião, daqui só podemos concluir pela conveniência de, em tempo oportuno, se avaliar com objectividade o mito erguido em torno de Mário Soares e de se aprofundar a compreensão do carinho com que a direita evoca o seu protagonismo político no pós-25 de Abril. Útil será, ainda, corrigir as significações lexicais do vocábulo democracia. 

Entretanto, aquela que é a opinião legítima do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa não deve ser usada pelo Presidente da República em oposição a quem, justa e fundamentadamente critica a imposição dos chamados interesses dos EUA a outros Estados soberanos.   

O Presidente deveria ponderar a existência no país, até entre os seus eleitores, de muita gente que recusa a altivez com que os norte-americanos propagandeiam a ideia «do estilo de vida americano». Deveria ter tido em conta que ainda mais gente conhece e repudia as actividades e os métodos da CIA.   

E não se acuse a esquerda nacional de propagandear as agressões estadunidenses no estrangeiro, porque a mais sistemática divulgação de tais agressões, a mais insistente caracterização da CIA enquanto ninho de torturadores e assassinos, tem origem no cinema holiodesco de série B, que hegemoniza a distribuição fílmica no país. 

Descontados nesses filmes eventuais exageros da ficção, só em delírio se acreditará que a CIA forme democratas e aplique os seus ilimitados meios para ajudar Governos «do povo, pelo povo, para o povo», conforme a conhecida definição de Abraham Lincoln.

Constata-se que a aplicação do termo democracia evoluiu com as circunstâncias políticas e sociais das diferentes épocas. Terá surgido na Grécia Antiga, em meados do século V de antes da nossa era, para designar a forma de governo ali praticada.

Na ideia de Aristóteles, podiam ser três as formas de governo: o «governo de um» (monarquia), o «governo de alguns» (aristocracia) e o «governo de muitos» (politeia), cujas expressões degradadas seriam, respectivamente, a «tirania», a «oligarquia», a «democracia».

Contudo, de «um» a «muitos» ficava excluída a participação da grande maioria composta dos residentes, constituída por mulheres, estrangeiros e escravos, aos quais estavam vedados direitos de cidadania: estes eram reservados apenas aos proprietários de terras, maiores de 18 anos, filhos de pais atenienses. 

Em busca de uma definição contemporânea, li no Dicionário Ilustrado Lello Universal: «Democracia: Governo em que o povo exerce a soberania popular (que exagero! digo eu); classes populares».

Significação semelhante encontrei na 8.ª edição do Dicionário Complementar da Língua Portuguesa, de Augusto Moreno. Já o Dicionário de Português, 3.ª edição, da Porto Editora, e o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, editado pelo Círculo de Leitores, acrescentam à definição anterior a consideração da representação da vontade dos cidadãos através do sufrágio universal.

Pelo seu lado, as formações político-partidárias elaboram o conceito reflectindo a existência de diferentes interesses de classe (que, no entanto, algumas se recusam a reconhecer) e a perspectiva de sistema social e político que defendem. 

Para a democracia-cristã, a democracia deve mostrar-se ligada aos ensinamentos e princípios cristãos, visando uma sociedade onde a generalidade dos cidadãos consiga alcançar a propriedade privada – obviamente com repúdio do comunismo.

Na evolução da formulação social-democrata foi sendo esquecida a herança histórica do reformismo de tipo lassaliano, foi-se distanciando do marxismo, abandonou a ideia de ruptura com o sistema social e político capitalista, e enveredou pelo uso enfático da identificação com o designado «socialismo democrático» – ou seja, os ideólogos da social-democracia vêm resvalando sobre a direita e consolidando o gosto pelas alianças prioritárias com as formações representativas dos interesses do capital. 

Por sua vez, os comunistas, que se mantêm firmes na defesa dos interesses de classe dos trabalhadores, na perspectiva da edificação de uma sociedade sem explorados nem exploradores, defendem que a democracia deve integrar quatro vertentes inseparáveis – a política, a económica, a social e a cultural.

Quem me lê que eleja um conceito de democracia. No que me toca, não satisfaz o que ouvi do Senhor Presidente da República e o que li nos meus dicionários, porque a democracia não se esgota no uso do voto, nem se restringe à intervenção dos representantes eleitos.

O conteúdo constitucional parece-me uma boa referência para a construção de uma mais correcta definição de democracia. Mau grado a incomodidade do poder dominante, outros tipos de intervenção dos cidadãos integram a substância do carácter democrático de um Estado.

Sendo isso uma realidade, filólogos deveriam empenhar-se na eliminação do primarismo e da plasticidade da actual definição comum do vocábulo em causa, pelo menos admitindo as diferenças de acepções que espelham os interesses de classes conflituantes na sociedade. 

Foto: DN.pt

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