O jornalismo português só existe
de vez em quando pelos realmente profissionais responsáveis, de resto
assistimos a produtos a apontar para as vendas, para a aquisição do vil metal,
como outro produto qualquer, que até pode ser pomada para os calos vendidos por
um vigarista qualquer.
É repugnante ter de enfrentar
esta realidade quando sabemos que existiam e existem no país bons jornalistas, que até
foram postos na “prateleira” por troca com escribas e publicistas do piorio que
adquiriam carteiras profissionais por dá cá aquela palha. O mal está feito. Para
corrigi-lo vai demorar tempo. Se é que alguma coisa vai ser feita. É o “sistema”,
pois é. Venderam-se ao sistema, pois foi. Resta ao menos lhes apelar cara a cara ou
letra a letra que “tenham vergonha!”
A seguir, Fernanda Câncio aborda
o assunto. Claramente mas também diplomaticamente. Tenta explicar. Mas há situações inexplicáveis. Não chama aos colegas que
merecem (colegas?) sabujos nem vendidos, mas é o que muitos portugueses fazem
arrasando uma classe profissional que era credível, estimada e respeitada, que
fazia da sua profissão um poder que representava os interesses dos portugueses e
do país em quase todas as vertentes, incluindo as humanas, sociais e políticas.
Em vez disso agora vendem-se. Jornalistas? (PG)
A preta de merda e o jornalismo
de Segóvia
Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
O jornalismo é chegar tarde logo
que possível. À irónica definição do jornalista e escritor sueco Stig Dagerman
faz falta, nos dias que correm, ironia maior: jornalismo é jornalismo. Se
chegar demasiado cedo, desconfiem.
Como é que os media portugueses
não dizem nada sobre o caso da jovem colombiana agredida e apelidada de
"preta de merda" no Porto? A pergunta foi feita no dia 26, pelas 23
horas, num longo, escandalizado e muito partilhado post. Por que é que os media
colombianos tinham denunciado a situação antes do país onde ela sucedeu,
perguntava. E respondia: racismo, xenofobia, silenciamento das minorias, o
"sistema". Conspiração, em suma.
Só dei pelo post dias depois. À
hora da publicação escrevia um artigo sobre o caso. Acabei-o pelas duas da
manhã; ficou on line no dia 27 à uma da tarde. Mas por que é que,
perguntar-se-á, só o estava a escrever no dia 26, àquelas horas, se a situação
ocorreu entre as cinco e as seis de 24, domingo, se uma rádio colombiana conseguiu denunciá-la antes das 14
de terça e se havia desde 24 de manhã publicações no Twitter e
Facebook a descrever parcialmente o ocorrido à entrada do autocarro 800,
inclusive com um vídeo da agressão? Porque sou preguiçosa? Porque levo tempo de
mais a escrever? Porque não dei importância ao assunto até que, como já li
tantas vezes, "explodiu nas redes sociais"?
Vejamos. Os primeiros relatos
terão sido publicados no domingo pelas
nove da manhã, no Twitter, por uma amiga da jovem. Havia até um curto
vídeo, muito confuso, em que se via uma rapariga de cara no chão, com o que
parecia ser sangue, um homem sobre ela, e pessoas à volta a insultá-lo. Vi
esses tuites no domingo bastante tarde e na segunda de manhã comecei a tentar
chegar à fala com a autora e quem dizia ter testemunhado. Só ao início da
noite, através do Facebook, consegui falar com alguém que intermediou o
contacto com a agredida. Entrevistei-a, por telefone, pelas 10 da noite. Antes,
às duas da tarde, contactara a empresa 2045, à qual pertence o segurança que
aparece no vídeo a "dominar" a jovem. Recusaram sequer dizer se
tinham conhecimento de algo e exigiram perguntas por escrito. Só teria resposta na terça 27, já após publicar o texto. Tentei
também, durante a tarde de 25, obter informação junto da PSP mas só no dia
seguinte conseguiria inquirir uma oficial das Relações Públicas.
Mas, sim, segunda ao fim da noite
tinha já o relato pormenorizado de Nicol Quinayas, a protagonista. Por que não
o publiquei logo? Teria "batido" até a rádio colombiana que no dia
seguinte à hora do almoço difundiu o relato da mãe da agredida. O DN teria sido
o primeiro a "dar a história". Teríamos "um furo", milhares
de "partilhas" e "visualizações". Sucede que só com o
relato da Nicol considerava não ter nada. Nem coloquei a hipótese de o
publicar. Por um motivo simples: trabalho num jornal e sou jornalista. Isso
implica só publicar o que considero estar sustentado, averiguado, verificado,
dando voz a todas as partes atendíveis. Faltava isso tudo.
Parêntesis aqui. Na segunda 25
pediram à Céu Neves, que se senta ao meu lado na redação, para fazer um artigo
sobre uma petição, com milhares de likes e partilhas no FB, para derrubar o
aqueduto de Segóvia, monumento com 2000 anos e património da humanidade, por
ser "um símbolo da opressão dos romanos". Havia desde dia 22 notícias acerca da dita no on line de vários media
espanhóis, incluindo o respeitável La Vanguardia (e na respetiva secção de
cultura). Em nenhuma o promotor da iniciativa, um consultor de comunicação, era
citado. A Céu mandou-lhe uma mensagem pelo FB e passado 10 minutos ele
ligou-lhe. Disse-lhe que obviamente se tratava de um chiste, uma experiência
comunicacional sobre fake news na era digital. E que nenhum jornalista o contactara até
então. Gostava de poder dizer que ficámos atónitas.
Fim de parêntesis. Casos como o
de Nicol são a minha raison d"être como jornalista, malgrado tratar-se de
uma profissão extenuante, muitas vezes frustrante, cada vez mais mal paga e
maltratada. Casos como o de Nicol são a certificação da necessidade do
jornalismo, o seu estandarte. Nenhuma alteração tecnológica ou de suporte muda
isso - com o on line, podemos publicar logo que está pronto, o que é bom; gosto
dessa fluidez. Mas não somos o FB, não somos o Twitter, não somos nem podemos
ser "sites" propagadores e agregadores de "conteúdos",
angariadores de cliques e likes. Somos profissionais com exigências técnicas e
éticas muito claras e a obrigação de as defender. Ou somos nada.
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