Os bastidores de um caso de
chantagem envolvendo sexo relembram o que Snowden demonstrou: governos e
achacadores têm acesso, também, a todos os nossos momentos íntimos
Annie Machon | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Edward Hopper
Algumas semanas atrás recebi pela
primeira vez um email ameaçador de alguém que dizia chamar-se Susana Peritz.
“Ela” disse que havia raqueado meu email, plantado vírus no meu computador e
depois me filmou enquanto eu me divertia assistindo “interessante” pornografia
online. Seu email me chamou a atenção porque mencionava, no assunto, uma senha
muito antiga, ligada a um endereço de email muito antigo, que eu não usava há
mais de uma década. O vírus deve ter sido plantado num computador defunto.
Deixando de lado o fato de que estou
muito mais preocupada com a GCHQ [serviço
de espionagem britânico] ou a NSA raqueando meu computador (como todos
deveríamos estar), isso me divertiu muito. Aparentemente, devo pagar a essa
“Susana” 1.000 dólares via Bitcoin ou então, ó céus, terei os alegados prazeres
compartilhados com meus conhecidos. E ontem à noite recebi outro pedido cortês
de dinheiro de alguém que diz chamar-se Jillie Abdulrazak, mas o preço agora
foi inflacionado para US$ 3.000.
Por que não estou preocupada?
Bem, posso dizer com segurança – e a mão no coração – que nunca assisti
pornografia online. Mas isso me fez pensar como e por que fui escolhida por um
chantagista, e me trouxe pensamentos bem sombrios. É perfeitamente possível
que, num raro momento desprotegido de amor à distância online, eu possa ter
sido capturada (mas por quem?). Isso provavelmente já teria acabado há uma
década, e por certo seria usando a velha conta de email que estava
ligada, à época, àquela senha particular.
Contudo, mesmo aquelas memórias
me foram negadas – lembro-se claramente de que por muito tempo havia estado
paranoica, e sempre cobri a lente da câmera interna do computador. Se alguma
coisa pode ter sido gravada, só seria de áudio – no máximo um telefonema
apimentado. Não pode mais haver vídeo do meu eu jovem, aliás.
Eu tive boas razões para ficar
paranoica. No final dos anos 1990, apoiei meu ex-parceiro e oficial de
inteligência do MI5, David Shalyer,
em suas buscas por informações para expor os crimes e a incompetência das
agências de espionagem do Reino Unido, à época. Em consequência tivemos de sair
literalmente correndo pela Europa, vivendo clandestinos durante um ano na
França profunda, e outros dois anos no exílio em Paris, antes de retornar
voluntariamente ao Reino Unido, em 2000, e sob os termos da draconiana Lei dos
Segredos Oficiais de 1989, ser presos por expor os crimes dos espiões
britânicos. Naqueles anos, conhecendo como eu conhecia os poderes dos espiões,
nunca desapareceu a sensação de estar sendo potencialmente observada.
A grande cena
Então, sabendo bem que eu nunca
havia assistido absolutamente nenhuma pornografia online, e sempre havia
mantido cobertas as lentes da câmera do meu computador, “Susana” e “Jillie”
puderam tornar-se denunciantes. Vocês tentaram sacudir a paranoide
ex-denunciante da MI5 errada, queridos. E meu pessoal de tecnologia está agora
caçando vocês.
Qualquer áudio poderia, suponho
eu, ser de alguma forma emendado em algum vídeo desonesto para forjar o
material dos sonhos de um chantagista. Será fácil “torná-lo forense” – e eu por
certo tenho amigos que podem fazer isso, um trabalho de classe mundial.
Alternativamente, o ex-amor pode
ter gravado o áudio, na época, para seu nefasto uso pessoal em algum momento do
futuro nebuloso. E se esse futuro é agora, depois dele ter-se mostrado, muito
tempo atrás, cronicamente desonesto, por que fazer isso em 2018, após anos de
separação? É possível que ele próprio tenha continuado a usar a velha conta de
email para ver imagens torpes – tinha a senha na época, com certeza, e talvez a
use para distanciar-se do próprio hábito pornô. Se esse é o caso, ele é ainda
menos digno do que imaginava que fosse. Ou será que isso é talvez algum tipo de
sombria operação-fantasma pelo Lovelnt, em alguma tentativa fracassada de me
assustar ou me envergonhar?
Mas, é claro, há um cenário maior
e mais político.
Desde quando trabalhei como
funcionária de inteligência para o MI5, antes de sair correndo com Shayler
durante os anos de denúncias, no fim da década de 1990, eu estive dolorosamente
consciente das capacidades dos espiões tecnológicos. Mesmo então sabíamos que
computadores podiam ser capturados por adversários e voltar-se contra você –
registradores de teclas, gravação remota via microfones, câmeras ligadas para
observá-lo e muitos outros horrores.
As denúncias de Edward Snowden em
2013 confirmaram tudo isso e muito mais, numa escala industrial e global –
estamos todos potencialmente em risco de sofrer essa invasão de nossa
privacidade pessoal. Mantive as lentes do meu computador e celular cobertas por
todos esses anos precisamente por causa dessa ameaça. Uma revelação específica
de Snowden, que recebeu pouca atenção da mídia tradicional, foi o programa OPTIC
NERVE. Era um programa GCHQ (financiado com dinheiro dos EUA) que permitia aos
espiões interceptar chamadas de videoconferência em tempo real. Acabou que, ó
horror, 10% deles eram de natureza obscena, e os espiões ficaram
chocados!
Tenho falado sobre privacidade e
vigilância em conferências pelo mundo todo e muitas, muitas vezes tenho que
debater a suposição de que “se você não está fazendo nada de errado, nada tem
nada a esconder”.
Contudo, a maioria das pessoas
gostariam de manter privados seus relacionamentos íntimos. Nessa era de viagens
a trabalho e relacionamentos a longa distância, muitos de nós bem podemos ter
conversas, ou mesmo vídeos íntimos via internet. Num contexto adulto,
consensual e mutuamente prazeroso, não estamos fazendo nada de errado e nada
temos a esconder, mas por certo não queremos espiões nos observando ou
escutando, assim como não queremos criminosos capturando imagens e tentando nos
chantagear por dinheiro.
Essa tentativa de extorsão, de
baixo nível e pateticamente amadora, é risível. Infelizmente, a ameaça dos
nossos espiões governamentais não é.
*Annie Machon é ex-oficial de
inteligência do Serviço de Segurança MI5 do Reino Unido.
1 comentário:
Nervo óptico: milhões de imagens de webcam do Yahoo interceptadas pelo GCHQ turbinando o desempenho
Enviar um comentário