segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Portugal | Asfaltar a CP


Há muitos anos que espero ver a CP a apanhar o comboio. Nesse dia que há-de trilhar caminho, picaremos bilhete num país com uma política de transportes que invista na ferrovia como força nuclear da inclusão geográfica das suas gentes, assumindo redes de circulação integradas.

Miguel Guedes* | opinião

Os Comboios de Portugal coram de vergonha perante a degradação e o desinvestimento, a anos-luz da filigrana das redes de transportes urbanos. Com ou sem demissões no Conselho de Administração, continuaremos a ser testemunhas a ver andar a carruagem, viajantes "wagon-lit" sem romantismo, dormentes pela interminável e dolorosa viagem. A perplexidade com que assistimos à degradação da CP e da qualidade do serviço que presta aos seus clientes atingiu máximos históricos neste verão de 2018. Mas não é indignação de primeira viagem. A deterioração, sentida há uma década de ferrugem, é visível a olho nu. Há limites. Mesmo para os indefectíveis de um "Trabant" a rolar em estradas albanesas.

A solução milagrosa poderia ser uma adaptação da receita que Cavaco Silva, plantador de alcatrão, prescreveu na década de oitenta. Asfaltar os carris. Bastaria uma ínfima parte do investimento que alcatroou Portugal entre 1986 e 2004 (de 196 km para mais de 2000 km de auto-estradas em 18 anos) ou uma quota-parte do investimento em estradas paralelamente construídas para, consulta do viajante, escoar mais parcerias do que pessoas em viagem. Se o assunto fosse alcatrão, não haveria apeadeiros para Portugal e os seus comboios. Há assuntos em que somos especialistas. Outros há, à beira da ruptura, que ignoramos olimpicamente até à última estação.

Ricardo Araújo Pereira vociferava "segue, segue, segue por uma estrada de espiche" num dos mais emblemáticos sketches do "Gato Fedorento". Manuel João Vieira, crónico candidato à Presidência da República, queria alcatifar Portugal. Plantar a ideia de que a CP é só mais uma empresa pública a ser mal gerida é coisa para fazer km de caminho. Aproveitando a falta de ar condicionado do momento e a supressão da paciência, não faltará quem clame pela entrega da empresa ao sector privado. E a liberalização do longo curso está já ali. Enquanto outros países investem na sua rede ferroviária como prioridade, não faltará quem procure a salvação noutros carris, invertendo o jogo, afastando ferozmente a CP do sector público enquanto se comovem sentimentalmente com o regresso dos comboios ao postal turístico da Linha do Tua.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

Artigo publicado no DN a 8 de agosto de 2018

* em Esquerda.net

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