Este é o resultado do
individualismo e da competitividade agressiva no emprego, criados pelas
políticas neoliberais com discursos violentos contra tudo o que cheire a
espírito colectivo e solidário.
Jorge Seabra | AbrilAbril |
opinião
Talvez por estarmos em Agosto, com
redacções depauperadas, parecendo haver falta de notícias para além dos suores,
do Sporting, de Trump e do incêndio de Monchique, nos últimos dias alguns
estudos sobre agressões a profissionais da Saúde e do Ensino público ocuparam
um inabitual espaço nos cabeçalhos de jornais.
O assunto é sério e reflecte
muito do que está (e continua) mal no nosso país e na «Europa» que tem seguido
o caminho de agressão ao «Estado Social», aberto por Tatcher e pela traição à
social-democracia da «terceira via» de Blair, aprofundado no século actual pela
«austeridade» do BCE e da troika.
Violência na Saúde...
«Casos de violência contra
médicos e enfermeiros estão a aumentar» – surge a toda a largura na primeira
página do Público de 11 de Agosto de 2018.
Um gráfico mostra que, há cerca
de dez anos (2007), as notificações de incidentes de violência contra
profissionais de Saúde eram de 35, passando, em 2017, a 678 (10% dos quais
com agressão física), sendo no primeiro semestre deste ano já de 439,
confirmando uma significativa subida.
Nada é realmente novo e, convém
perceber – como é afirmado pelos entrevistados –, que os números representam
apenas uma pequena ponta do iceberg.
De facto, a maioria dos insultos,
humilhações e agressões verbais e mesmo físicas não são notificadas, sendo
geridas na intimidade do agredido ou do grupo ou serviço onde trabalha, quer
pela sensação de inutilidade, quer pela perda de confiança e auto-estima que,
para muitos, o facto implica.
Não é difícil perceber as causas
nucleares deste aumento de agressividade para com quem dá a cara pelo Serviço
Nacional de Saúde.
As longas esperas em situações de
stress (que nem sempre a situação clínica justifica), o constante matraquear
pelos media de casos acusatórios passados em hospitais e centros de saúde
(grande parte dos quais injustificados e apresentados sem um contraditório
credível), a canalização pelo poder político desse mal-estar para um falso e
abusivo conceito de «direito cidadão» atirando utentes contra o serviço público
cuja degradação é da sua inteira responsabilidade, estão no centro de muitos
dos conflitos registados.
A isso soma-se o esgotamento e
«burn-out» dos profissionais, com tempos comprimidos e sem espaço para diálogo
e empatia (imprescindíveis a uma boa relação com o doente e a família), reflexo
da falta de recursos humanos e materiais, da «proletarização» sem direitos nem
carreiras, da burocratização e autocracia promovida por administrações
demasiado «empresariais», mais preocupadas com números e estatísticas.
Confirmando outros, um estudo
publicado na revista Acta Médica Portuguesa de Janeiro de 2016,
abrangendo 466 médicos e 1262 enfermeiros com uma média de 36,2 anos de idade,
encontrou 21,6% num estado moderado de esgotamento e 47,8% num estado de burn-out elevado.
A pressão e o cansaço, que levam
à impaciência, desumanização e «desligamento», reflecte-se também nas relações
entre os profissionais, afectando a formação e o trabalho multidisciplinar, com
multiplicação de casos de mobbing (assédio moral ou psicológico em
meio laboral), atingindo principalmente jovens internos e enfermeiros em início
de carreira, também sacrificados pela menorização do ensino, que exige tempo e
paciência, sobrecarregados com turnos excessivos e trabalhos de «carregadores
de piano».
...e no Ensino
A primeira página do mesmo jornal
abria no dia seguinte com «três em cada quatro professores já foram vítimas de
assédio moral», referindo uma investigação que abrangeu cerca de 2000
professores dos diversos níveis de ensino.
O assédio significa «violência
psicológica extrema, sistemática e recorrente, durante um tempo prolongado,
para destruir as redes de comunicação da vítima, a sua reputação e perturbar o
seu trabalho», na definição de Heinz Leymann.
Mesmo que os mais cépticos
considerem que no resultado há um hipotético exagero de queixas (o que nada
prova), estamos a navegar numa situação generalizada e grave.
Como responsáveis da agressão, o
estudo apontou, em primeiro lugar, «colega ou vários colegas» (62%), a Direcção
da Escola (48,6%), alunos ou familiares (36,9%).
Ao contrário do que alguns
poderiam pensar, e sem subestimar comportamentos inaceitáveis de alunos e
familiares que confundem falta de respeito e agressividade com direitos de
cidadania, tudo aponta para uma grande conflitualidade entre professores e
entre estes e as direcções das escolas, perdida que foi a gestão participada e
democrática.
Também aqui, as políticas dos
longos anos de «arco do poder» PS, PSD e CDS, devastaram o sentido colectivo,
de colaboração e a autoridade do corpo docente, instalando a desmotivação e a
desconfiança, a luta pelos pequenos poderes, o «cada um por si», a concorrência
egoísta estimulada por processos avaliativos divisionistas e sem qualquer
sentido de justiça.
De resto, em alguns momentos, a
tutela parece ter querido usar a dimensão da luta sindical dos professores,
para tentativas «exemplares» de intimidação e desmobilização de outras frentes
da função pública («se os professores não conseguem, como vamos nós
conseguir?»), procurando «quebrar a espinha» à sua unidade, copiando Tatcher e
a repressão dos mineiros ingleses, embora com menos sucesso.
Só assim se pode compreender que
o governo PS de Sócrates e da ministra Maria de Lurdes Rodrigues tenha decido
colocar como prioridade nacional a imposição de um desastroso processo de
avaliação dos professores portugueses.
Embora dificilmente alguém de bom
senso – num país mergulhado numa crise económica e com os bancos à beira da
falência (como depois se veio a verificar) –, pudesse encarar esse objectivo
como razoável e, menos ainda, como prioritário, o tema monopolizou durante
meses todos os debates, pondo os comentadores da «situação» a destilar veneno
contra «essa corporação de preguiçosos que não se querem deixar avaliar».
A resposta foi esmagadora e
deveria ter levado a uma leitura democrática.
Por duas vezes, mais de cem mil
professores saíram à rua em espantosas manifestações de unidade, que
inscreveram uma página inédita na história dos protestos de um só grupo
profissional.
Dez anos depois de ter provocado
o caos nas escolas, a ex-ministra veio reconhecer com descontracção e despudor
que «…é um grande conforto ver que melhorámos os resultados, e que a avaliação,
mesmo não sendo concretizada, afinal revelou-se um instrumento que pode ser
substituído por outros instrumentos» (Lusa, 10-2-2017).
A pouca seriedade com que o
actual governo falta agora ao seu próprio compromisso, contemplado no Orçamento
de Estado de 2018, na contagem de todo o tempo de carreira dos professores
congelada nos tempos na troika, parece reproduzir a lógica do governo da época
provocando a mesma revolta.
E se o enviesado processo de avaliação
de Maria de Lurdes Rodrigues não foi para a frente, a burocratização,
desestruturação e precarização das carreiras seguiu o seu caminho, destroçando
o espírito de corpo e a cooperação e cumplicidades tão importantes no processo
pedagógico, despertando invejas e comportamentos mesquinhos, estimulando a
lógica do medo, da subserviência e do «subir» a todo o custo, levando os
melhores ao cansaço e esgotamento.
Um recente estudo orientado pela
historiadora Raquel Varela e divulgado no passado mês de Julho, abrangendo
cerca de dezanove mil professores, encontrou em cerca de 60% níveis
preocupantes de exaustão emocional e 42,5% com um baixo índice de realização
profissional.
Não será pois de estranhar que só
1,5% dos alunos queira vir a ser professor, conforme afirma o Conselho Nacional
da Educação, tendo como base um relatório dos testes PISA a estudantes de 15
anos. E apesar de «os alunos portugueses terem até uma visão positiva dos seus
professores», os poucos que escolheram a carreira docente foram os que se
situaram nas piores classificações.
Tudo isto desenha um panorama
negro que não existia no período de crescimento e de democratização do SNS e da
Escola Pública, em que situações de pressão ou de «bulling» entre profissionais
podiam existir como casos isolados, mas não eram estimuladas nem tinham
repercussão sistémica.
Este é, sem dúvida, o resultado
do individualismo e da competitividade agressiva no emprego, criados pelas
políticas neoliberais com discursos violentos contra tudo o que cheire a espírito
colectivo e solidário, considerado «piegas» e próprio de loosers que não
têm a força para se afirmarem como líderes na «selva» da vida, lambendo as
botas aos chefes e espezinhando os colegas que lhes podem roubar o lugar nas
«avaliações individuais de desempenho», feitas exactamente para melhor dividir
e explorar.
E o pior, é que muito de tudo
isso se mantém apesar do discurso se ter tornado mais macio, e há gente que
acredita que esta é uma forma incontornável de viver, própria da modernidade da
época, como se não houvesse alternativa.
Foto: Istock
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