A única coisa necessária é que os
bons nada façam, disse Burke. É bonito e duro. Mas falso. Se vês o mal chegar e
nada fazes para o impedir não podes ser bom.
Fernando Câncio | Diário de Notícias
| opinião
A notícia é de dia 17: Bolsonaro
visitou Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, assinando com ele um
"compromisso formal" contra "o aborto, a educação sexual e a
legalização das drogas e em defesa da família e da liberdade religiosa". O
candidato, que foi fotografado e filmado com o prelado católico, resumiu
assim o conteúdo do documento: "É o compromisso que está no coração de
todo o brasileiro de bem."
A maioria dos jornalistas não
conseguiu assistir ao encontro; ficou no andar de baixo da arquidiocese, à
espera. Enquanto esperavam, lê-se nas notícias, "funcionárias da
arquidiocese vestidas com camisas amarelas posavam para fotógrafos fazendo
sinais de armas de fogo com os dedos das mãos diante de uma imagem de Jesus
Cristo." Há imagens.
Pode, claro, olhar-se para isto e
perguntar que podia o arcebispo fazer. Dizer que não recebia o homem que está à
frente nas sondagens para a segunda volta das presidenciais, a 28 de outubro?
Recusar o documento, alegando que não quer compromissos escritos de suposto
respeito pela vida e reivindicações de "vir do bem" da mão de um
homem que defende que o erro da ditadura foi matar pouco, que passa a vida a
incitar à violência contra os oponentes, e que já anunciou que não aceita a
existência de um centímetro de reserva indígena e ecológica, condenando assim à
extinção os povos índios e o ecossistema da Amazónia?
Seria uma posição difícil de
tomar, decerto, a de afrontar o favorito na corrida à presidência, mais a mais
num país no qual a igreja católica está em minoria face às evangélicas - que já
declararam o apoio ao candidato do viva la muerte. Mas talvez seja de
recordar que há dois meses o chefe do arcebispo - o papa Francisco - anunciou
que o catecismo da sua igreja passava a considerar a pena de morte inadmissível
(até agora admitia-a, apesar de condenar em absoluto o aborto) mesmo para os mais
terríveis crimes, porque, diz, a dignidade humana "está acima de tudo".
E que em 2015 assinou aquela que ficou conhecida como "a encíclica
verde", a Laudato Si (Louvado Sejas). Nesta, defende que a terra
não é da humanidade para fazer com ela o que lhe apetece, defendendo "um
cuidado particular, pela sua enorme importância para o ecossistema
mundial", com lugares como a Amazónia, descrevendo-a como "pulmão do
planeta repleto de biodiversidade".
A 11 dias da votação no Brasil, a
igreja católica escolheu trocar a proibição do aborto e da educação sexual nas
escolas pelo elogio da tortura e da morte à solta. Não é sequer o silêncio que,
bem diz Francisco, "mata": é dar a bênção ao mal.
Já neste ano, em visita ao Peru, em
janeiro, o papa anunciou a convocação de um sínodo (encontro de bispos) para a
Amazónia e, num encontro com representantes dos "povos indígenas", falou da região como "terra santa" que
além de "reserva de biodiversidade" é também "uma reserva
cultural que deve ser preservada". Manifestando preocupação com as ameaças
a estes grupos, disse: "Assusta o silêncio, porque mata."
E no entanto eis que o papa
não considerou adequado, até agora, dizer o que quer que seja sobre as
intenções declaradas do candidato Bolsonaro, nem o seu representante
brasileiro, o arcebispo Tempesta, dar qualquer sinal de reprovação face às
mesmas. O silêncio mata, mas pelos vistos às vezes - muitas vezes, na história
desta instituição que tanto gosta de se proclamar "milenar" - o silêncio,
quando não a mais ativa colaboração com os torcionários, é mais conveniente.
Virão os defensores de Francisco
e da igreja católica dizer que se e quando o pior ocorrer o papa "não se
calará". Admito que sim, que se os índios que restam na floresta
amazónica brasileira forem massacrados e se o sangue correr nas ruas do Brasil,
como Bolsonaro preconiza, o papa torcerá as mãos e chorará. Mas, seguindo os
seus próprios ensinamentos, deverá antes perguntar-se: "Onde está o teu
irmão? Que fizeste para o salvar? Onde estavas quando ele precisou de ti?"
Não sei que eficácia teria, no
sentido do voto, uma posição do papa ou dos bispos brasileiros em relação ao
que Bolsonaro defende e representa. Mas, a 11 dias da votação, a igreja
católica, dirigida pelo primeiro papa sul-americano da história, um papa que na
Argentina natal conheceu uma ditadura militar como a que Bolsonaro exalta,
escolheu ficar na foto com o torcionário.
Escolheu prestar-lhe tacitamente
o seu apoio ao aceitar as suas promessas; escolheu trocar, à vista de todos, a
proibição do aborto e da educação sexual nas escolas pelo elogio da tortura e
da morte à solta. Não; não se trata sequer do silêncio que, bem diz Francisco,
"mata": isto é dar a bênção ao mal. Depois, daqui uns séculos - se
alguém restar daqui a uns séculos - hão de pedir perdão.
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