quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Portugal | Tancos: a ponta manipulada do que se vê travestida de informação


A investigação dos crimes estritamente militares pode e deve ser do âmbito de um órgão de investigação criminal completamente autónomo em relação a quem administra a «coisa» militar.

Jorge Aires | Abril Abril | opinião

É cedo para concluir sobre o que se passou e as motivações subjacentes. Seria bom que a investigação fizesse luz e a opinião pública viesse a saber a verdade. Como na guerra, a história será escrita pelos vencedores pelo que é pertinente admitir que saberemos tão só o que nos quiserem dar a saber.

Importa contudo deixar registo do que me parece essencial e releva de uma certa idiossincrasia dos militares, quiçá de uma geração que exibe dificuldade de adaptação aos tempos de hoje onde em, múltiplas frentes, assistimos à erosão do sentimento de Estado-Nação para psicologicamente nos abaterem e mais facilmente nos colonizarem.

O combate à erosão desse sentimento merece bem mais a concentração do nosso esforço do que desgastarmo-nos na defesa de perímetro de uma realidade que demora a adaptar-se ao quadro constitucional vigente.

O funcionamento da Instituição Militar tem de inevitavelmente ser considerado em dois contextos distintos, o do conflito real e o da preparação para o conflito. Importa ter presente que a Constituição da República só prevê a existência de Tribunais Militares em estado de Guerra daí que, excluído o estado de guerra, a justiça seja administrada pelos Tribunais que, para o julgamento dos crimes estritamente militares, contam com a participação de militares. Aos Tribunais chega-se depois da investigação criminal desenvolvida por Órgãos de investigação criminal que devem ser autónomos de quem administra.

Saberão alguns que a Polícia Judiciária Militar (PJM), órgão de investigação criminal para os crimes estritamente militares, antes de depender de Sua Exa. o Ministro da Defesa já esteve (1977) na dependência do CEMGFA. Acontece que a separação de poderes aconselhará que para o âmbito de atuação da PJM se adotem, no caso, as mesmas práticas e enquadramento que justificam a autonomia da Polícia Judiciária (PJ).

A investigação dos crimes estritamente militares (substancialmente diferente de crimes cometidos por militares, seja no, ou fora do «quartel») pode e deve ser do âmbito de um órgão de investigação criminal completamente autónomo em relação a quem administra a «coisa» militar, Ministro e, ou Chefe Militar.

Conferir autonomia e enquadramento devido à entidade que investiga os crimes estritamente militares contribuirá para por um ponto final à propensão autocrática consubstanciada na filosofia de que «militar cumpre ordens». O que deve prevalecer, é, militar cumpre ordens legítimas. Se a ordem não for legitima tem a obrigação de recusar o seu cumprimento.

Por outro lado, a investigação de crimes comuns quando ocorridos em instalações militares (sentido lato – unidades estabelecimentos, órgãos, aeronaves, navios e outras embarcações e viaturas militares) deve ser levada a cabo por agentes de investigação com formação apropriada ao ambiente em que se vão movimentar o que poderia ser mais fácil de assegurar se tais agentes fossem militares ou, no mínimo, enquadrados por militares.1

Do que se escreveu emerge a ideia de que o País deve estar dotado de um Órgão especializado na investigação dos crimes tipificados na Lei como sendo estritamente militares. Órgão que deve possuir competências para investigar (ou no mínimo enquadrar as diligências a levar a cabo...) outros crimes ocorridos em instalações militares (no sentido lato), chame-se a esse órgão PJM.

A PJM não deve ser um órgão da Instituição Militar (IM). A PJM deve ter um enquadramento blindado à interferência da cadeia hierárquica da IM, do Ministério da Defesa ou de qualquer outro órgão do Estado que integra o chamado «poder executivo». O equilíbrio de poderes advém da sua separação.

A PJM tem de estar sob a alçada efetiva do Ministério Público (MP). Acresce que, tratando-se de um órgão de investigação criminal, só tem a lucrar com a sua integração na entidade para a qual essa atividade constitui razão da sua existência, a Polícia Judiciária (PJ).

Daí que, o mais apropriado, à semelhança do que sucedeu com os Tribunais Militares, seja a integração da PJM na PJ como unidade especializada na investigação dos crimes estritamente militares e de outros crimes que ocorram em instalações militares no sentido lato. Os técnicos da PJM devem ser militares qualificados e especializados em ciências forenses.

O anterior Ministro da Defesa Nacional, um homem com formação no Direito e Professor, achou necessário exorbitar e mandar auditar, cito, «ações de prevenção e investigação criminal desenvolvidas e promovidas por aquele corpo superior de polícia criminal que sejam da sua competência ou que lhe sejam cometidas pelas autoridades judiciárias competentes»!

Esta matéria é da exclusiva competência do Ministério Público. Foi «correr atrás do prejuízo» aumentando o mesmo. Fica mais um ato a acrescentar ao inventário da herança negativa que nos deixou.

Chegaremos a saber quem subtraiu as glocks ao inventário da PSP (?), quando e quantas lacunas ocorreram nos inventários de material militar à guarda da Instituição Militar (?), quem diabo roubou o quê e para quê? Nada disso sabemos.

Mas procuram-nos distrair com a stand up comedy de que um dia se saberá o que vossa excelência hoje já sabia para assim decidir quem ganha o debate, porque quem perde, sabemos, é o País. Mais do que retórica, o que é preciso é recuperar as alavancas do desenvolvimento, investir e fazer.

-- O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

1. Justifica-se uma nota sobre as diligências conexas com os crimes de corrupção. O bom senso sugere que o enquadramento de tais diligências seja assegurado com o envolvimento, ao nível apropriado, de militares quando as diligências têm de ser realizadas em instalações militares (vide o caso das messes da Força Aérea).

Na foto: O ex-ministro da Defesa Nacional, José Azeredo Lopes, acompanhado pelo almirante, António Silva Ribeiro, Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), após a cerimónia de tomada de posse do director-geral da Polícia Judiciária Militar, Capitão-de-mar-e-guerra Paulo Manuel José Isabel, em 2 de Outubro de 2018 – Créditos: António Cotrim / Agência Lusa

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