Miguel Guedes* | Jornal de Notícias
| opinião
Há uma santa propensão do
entendimento para os assuntos caseiros, aqueles que nascem, sucedem ou padecem
perante os nossos olhos.
É quase uma cruzada pelo
autoconhecimento nos lugares onde já conhecemos tudo. Onde fica fácil. Mas a
relevância das lembranças não pode ficar presa ao voto na reunião de
condomínio, na sede da vizinhança ou nos nossos veneráveis lugares-comuns. Como
João César Monteiro ou John Cage, o preto-a-negro da imagem, a alegoria do
silêncio. Ou como Yves Klein e a galeria de arte desocupada em 58. A imagem de ausências. O
salto no vazio é ainda mais válido 60 anos depois. O vazio para encher, um
vazio para encher de verbos. Sangrar o amor.
A pose de equilíbrio que
procuramos é sempre mal disfarçada. E por isso pouco sabemos acerca do que não
sabemos automaticamente. Há uma errónea noção sobre a distância de quilómetros
que nos separa do nosso metro quadrado. E não fosse essa ditadura da
vizinhança, algo mais saberíamos sobre a notícia mais relevante da semana: a
proposta para a transposição das regras do Tratado Orçamental para o direito
comunitário foi rejeitada e, através de um empate técnico em sede de votação na
comissão de Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu, é possível
equacionar que não haja coragem da Comissão Europeia para propagar - à revelia
dos parlamentos nacionais - a aberração das regras de austeridade excessiva que
definharam a economia europeia, impondo-a a cada um dos países da União. A
regras do défice e da dívida não podem ser repetidas e perpetuadas.
Esta inesperada votação
internacionalizou a geringonça. O voto de Marisa Matias (BE), de Miguel Viegas
(PCP) e de Pedro Silva Pereira (PS), deputados portugueses na Comissão,
permitiu uma enorme vitória política à autonomia e à admissão de alguma razoabilidade
no projecto europeu. Assim perceba a Comissão Europeia que não pode haver
atropelamento de tantos votos convergentes. Embora muitas dúvidas recaiam sobre
a idoneidade política e moral da Comissão Europeia, Marisa Matias
(relatora-sombra do documento) acredita que o Tratado Orçamental "deve
começar a morrer depois deste voto". O magnífico trabalho que em tantas
frentes encetou e definiu, dizem muito sobre a urgência das escolhas que
teremos que fazer nas próximas eleições europeias. Aquela distância de quilómetros
que nos separa do nosso metro quadrado já não existe.
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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