quarta-feira, 14 de novembro de 2018

BAFIENTA EVOCAÇÃO DA Iª GUERRA MUNDIAL


OU… O EUROCENTRISMO EM TODO O SEU ESPLENDOR


Como numa reinventada novela, a memória da Iª Guerra Mundial é pincelada em pleno século XXI, por uma propaganda eurocêntrica, como se a União Europeia fosse uma plataforma de subtil e continuada Guerra Psicológica a fim das potências dominantes que preenchem o sistema de vassalagem do império da hegemonia unipolar, continuaram a emitir as mensagens da conveniência exclusiva dum “eterno” domínio, de apodrecidas raízes coloniais.

1- Em todo o mundo e na Europa em especial, se está a comemorar o 100º aniversário do Armistício que pôs fim à Iª Guerra Mundial, lembrando muitos dos acontecimentos de então.

Duma forma geral há várias questões que a propósito, saltam à vista, ainda em reforço do espírito e da letra da Conferência de Berlim e das tantas lições que não foram integralmente aprendidas com as duas Guerras Mundiais e se reflectem no comportamento elitista dominante:

Europa contemporânea fora, os acontecimentos de realce relativos à memória da IªGuerra Mundial circunscrevem-se substancialmente no espaço e no tempo, aos que ocorreram no “velho continente”, deforma a colocar os europeus“voltados sobre si mesmos”, sobrevalorizando-os e, quando há alusão a tantos outros que em simultâneo ocorreram noutros continentes, eles são limitados a meras referências, a meras pinceladas à margem da página, subvalorizando-os;

Em África, muito embora o continente fosse palco de tantas refregas, a Iª Guerra Mundial é apenas lembrada por via das buriladas mensagens produzidas no hemisfério norte para agradar aos do hemisfério norte e subalternizar os outros, escamoteadas pelo eurocentrismo contemporâneo e de toda a conveniência (que bons serviços eles prestam) do império da hegemonia unipolar e da NATO!


 2- O exemplo português é uma prova flagrante dessa escalada e escalonada constatação!

O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito da lembrança do Armistício e num discurso de apenas 5 minutos, faz algumas referências às tropas portuguesas em África, isto depois dos dirigentes portugueses estarem presentes em muitos outros actos comemorativos da Iª Guerra Mundial que desde 2014 foram ocorrendo Europa fora, para evidenciar a necessidade de eurocentrismo e por fim fazer uma curta alusão a tensões internas a propósito do recente roubo de armamento ocorrido em Tancos…

Jamais lhe terá passado pela cabeça um dia, alguma vez procurar celebrar o Armistício no Cunene, ou no Rovuma, onde seria justa a denúncia da partilha da África formatada desde a Conferência de Berlim e das injustiças sangrentas desde então semeadas em África e mundo fora!

Para ele, pela omissão, nenhuma questão de fundo em relação às partilhas coloniais de então merece ser abordada… Portugal colonial, Prússia colonial, Império Britânico colonial, França colonial, pura e simplesmente não existiram, conforme sua douta intervenção e se existiram são apenas para a memória “heroica” evocada em meras pinceladas de contingência de uns poucos!

As pinceladas de propaganda fizeram relembrar, ainda que pela quase omissão do continente africano, os termos mil vezes repetidos da propaganda do Estado Novo, apelando ao patriotismo, à heroicidade épica e, no abstracto, conforme às conveniências, aos valores da ética e da moral militar (agora transferidos para as nuvens do eurocentrismo), quando tanta guerra colonial injusta, que tanta dolorosa memória ainda faz fervilhar está por recordar!

A ideologia fascista e colonial deste modo acaba por persistir numa apologia genérica das Forças Armadas Portuguesas com tão triste passado republicano.

Valorizando simbolicamente e no superlativo o papel das Forças Armadas Portugueses, entre desfile e fanfarra o Presidente Português parece ter esquecido que, na frescura da República Portuguesa que tinha sido praticamente acabada de estrear, era sobretudo a questão das partilhas coloniais resultantes da Conferência de Berlim que estava em jogo, que praticamente metade dos efectivos mobilizados foram colocados em Angola e Moçambique (ainda que mesmo antes da entrada de Portugal na Guerra em 1916), que as baixas militares portuguesas foram maiores nos teatros operacionais de África dos que as registadas na Europa, que os contingentes tiveram não só a missão de enfrentar os colonialistas alemães no sul de Angola e no norte de Moçambique (África Ocidental e Oriental Alemã), como também as resistências africanas com que se tiveram de deparar, particularmente no sul de Angola.

Esqueceu também de considerar que Portugal era de facto uma potência colonial europeia periférica e sua decisão de entrar ou não na Iª Guerra Mundial resultava muito mais das “obrigações” de vassalagem para com o Reino Unido, do que por decisão própria…

Afinal, imensa vassalagem obriga, 100 anos depois, nada há a aprender com as injustiças do capitalismo que se foram acumulando de forma sangrenta desde a Conferência de Berlim a ponto de fazerem fermentar duas Guerras Mundiais, sempre na frenética luta pela hegemonia e domínio das potências sobre os outros, a multidão de povos oprimidos de todo o mundo!


3- Em África os contingentes militares portugueses tiveram campanhas muito difíceis, sem ética, nem moral, (mas“heroicas” no espírito de Marcelo) particularmente no norte de Moçambique, onde o General alemão Paul Emil von Lettow-Vorbeck, comandante da campanha colonial prussiana na África Oriental Alemã na Primeira Guerra Mundial, a única campanha colonial dessa guerra onde a Alemanha não foi derrotada, fez a vida cara aos colonialistas britânicos e portugueses, com seus askaris (recrutas locais militarmente bem treinados e preparados) e sua estratégia de guerra de guerrilhas na altura inovadora e provadamente invencível.

Em Angola, em 1914, os contingentes portugueses foram derrotados pelos alemães sob o comando de Erich Victor Carl August Franke (comandante das Schutztruppe no Sudoeste Africano Alemão) no Cuangar e em Naulila, só se refazendo pouco a pouco com reforços que, além das disputas contra os colonialistas alemães no Cunene e Cuando Cubango, enfrentaram e acabaram por vencer a resistência africana sob o comando do rei cuanhama, Mandume Ya Nemufaio, em Môngua.

As baixas portuguesas foram provocadas não só como consequência directa das confrontações armadas, mas por causa das doenças tropicais que contribuíram para dizimar os efectivos, sanitariamente mal preparados e assistidos, quantas vezes entregues à sua sorte!

Os portugueses esqueceram também que os carregadores africanos mobilizados então sob suas ordens, sofreram como se fossem moscas, pesadas baixas, por causa das doenças provocadas pela insuficiente ou nula cobertura sanitária, da deficiente alimentação, dos maus tratos e da guerra, havendo muito poucos relatos dessa situação, tal o valor que era dado aos africanos, ainda que estivessem ao seu serviço.

Hoje como então, os africanos são “danos colaterais”… e como tal é, a censura até na morte actua, se possível pela via da omissão que é para nem gastar tinta e papel!

Nessa altura mesmo assim, o colonialismo português só ficou a ganhar ética e moralmente em relação à praga do colonialismo alemão no Sudoeste Africano, por que Erich Victor Carl August Franke, o comandante prussiano, é apontado como o terrível responsável pelo genocídio herero e nama de então, percussores de outros mais que se lhes seguiriam ao longo do século XX e XXI, até aos nossos dias…


4- Foi nesse ambiente que no sul de Angola, enfrentando os colonialistas alemães e portugueses, que o rei Mandume Ya Nemufaio, comandou a resistência, algo que África deveria lembrar como uma memória dos tempos conturbados da Iª Guerra Mundial num continente devassado pelas disputas entre as potências coloniais ávidas de suas riquezas e opressoras dos seus povos, após a Conferência de Berlim e ajustando por via da guerra as partilhas feitas entre si.

África feita capim pisado pelos elefantes de então, parece que continua, até pela ausência de sua voz, a ser o capim pisado pelos (mesmos) elefantes de hoje!

A memória do rei Mandume, quer para Angola, quer para a Namíbia, quer para África, tem toda a legitimidade ética e moral para ser lembrada e consequentemente valorizada, impondo-se por si, em contraste com a triste memória europeia da Iª Guerra Mundial, na perspectiva de qualquer um dos dois lados dos contentores e na perspectiva do discurso do professor Marcelo, Presidente da República Portuguesa!

As televisões e os meios de difusão europeia massiva que hoje inundam de mensagens o continente africano, como prova da devassa ultraperiferia que o continente continua a ser, desfilarão as conveniências da arrogância, do cinismo e da hipocrisia contemporânea europeia e das intervenções públicas bafientas dos seus dirigentes, na continuidade das alucinações coloniais que não acabaram, pelo contrário, refinaram-se por via das tão doutas quão bafientas cátedras das capitais europeias!...

A África continua a ser um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço… e isso sente-se até nos momentos de celebração da paz, neste caso por via das omissões de Marcelo, que se esqueceu por completo que, aos olhos dos oprimidos de todo o mundo, as potências envolvidas na Iª Guerra Mundial, todas elas com apetites coloniais e neocoloniais, assumem a barbaridade de se portarem sem honra, nem glória, nem ética, nem moral, perante toda a humanidade!

Triste, hipócrita e cínica maneira de celebrar o Armistício, evocando a humanidade e a dignidade… triste, hipócrita e cínica maneira de celebrar a paz!

Que bafientas cátedras, em nome da “civilização judaico-cristã ocidental”, persistem nas capitais dos tão “civilizados”povos do norte!?

Martinho Júnior - Luanda, 9 de Novembro de 2018

Imagens:
Marcelo e a celebração do Armistício;
Cavaco e a bandeira da República Portuguesa içada ao contrário;
Corpo Expedicionário Português em Angola, oficiais da Marinha;
Foto atribuída ao corpo decapitado do rei Mandume;
Monumento ao rei Mandume, no Cunene.

Discurso bafiento – Marcelo Rebelo de Sousa discursa em dia de cem anos do Armistício – "Não vamos tolerar que se repita a sangrenta divisão da Europa", avançou Presidente da República. –  https://www.cmjornal.pt/multimedia/videos/detalhe/marcelo-rebelo-de-sousa-discursa-em-dia-de-cem-anos-do-armisticio
A República ao contrário – https://www.youtube.com/watch?v=mtPKp6TPT-0

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