OU… O EUROCENTRISMO EM TODO O SEU ESPLENDOR
Martinho Júnior, Luanda
Como numa reinventada novela, a
memória da Iª Guerra Mundial é pincelada em pleno século XXI, por uma
propaganda eurocêntrica, como se a União Europeia fosse uma plataforma de
subtil e continuada Guerra Psicológica a fim das potências dominantes que preenchem
o sistema de vassalagem do império da hegemonia unipolar, continuaram a emitir
as mensagens da conveniência exclusiva dum “eterno” domínio, de
apodrecidas raízes coloniais.
1- Em todo o mundo e na Europa em
especial, se está a comemorar o 100º aniversário do Armistício que pôs fim à Iª
Guerra Mundial, lembrando muitos dos acontecimentos de então.
Duma forma geral há várias
questões que a propósito, saltam à vista, ainda em reforço do espírito e da
letra da Conferência de Berlim e das tantas lições que não foram integralmente
aprendidas com as duas Guerras Mundiais e se reflectem no comportamento
elitista dominante:
Europa contemporânea fora, os
acontecimentos de realce relativos à memória da IªGuerra Mundial
circunscrevem-se substancialmente no espaço e no tempo, aos que ocorreram
no “velho continente”, deforma a colocar os europeus“voltados sobre si
mesmos”, sobrevalorizando-os e, quando há alusão a tantos outros que em
simultâneo ocorreram noutros continentes, eles são limitados a meras referências,
a meras pinceladas à margem da página, subvalorizando-os;
Em África, muito embora o
continente fosse palco de tantas refregas, a Iª Guerra Mundial é apenas
lembrada por via das buriladas mensagens produzidas no hemisfério norte para
agradar aos do hemisfério norte e subalternizar os outros, escamoteadas pelo
eurocentrismo contemporâneo e de toda a conveniência (que bons serviços eles
prestam) do império da hegemonia unipolar e da NATO!
2- O exemplo português é uma
prova flagrante dessa escalada e escalonada constatação!
O Presidente da República
Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito da lembrança do Armistício e
num discurso de apenas 5 minutos, faz algumas referências às tropas portuguesas
em África, isto depois dos dirigentes portugueses estarem presentes em muitos
outros actos comemorativos da Iª Guerra Mundial que desde 2014 foram ocorrendo
Europa fora, para evidenciar a necessidade de eurocentrismo e por fim fazer uma
curta alusão a tensões internas a propósito do recente roubo de armamento
ocorrido em Tancos…
Jamais lhe terá passado pela
cabeça um dia, alguma vez procurar celebrar o Armistício no Cunene, ou no
Rovuma, onde seria justa a denúncia da partilha da África formatada desde a
Conferência de Berlim e das injustiças sangrentas desde então semeadas em
África e mundo fora!
Para ele, pela omissão, nenhuma
questão de fundo em relação às partilhas coloniais de então merece ser
abordada… Portugal colonial, Prússia colonial, Império Britânico colonial,
França colonial, pura e simplesmente não existiram, conforme sua douta intervenção
e se existiram são apenas para a memória “heroica” evocada em meras
pinceladas de contingência de uns poucos!
As pinceladas de propaganda
fizeram relembrar, ainda que pela quase omissão do continente africano, os
termos mil vezes repetidos da propaganda do Estado Novo, apelando ao
patriotismo, à heroicidade épica e, no abstracto, conforme às conveniências,
aos valores da ética e da moral militar (agora transferidos para as nuvens do
eurocentrismo), quando tanta guerra colonial injusta, que tanta dolorosa
memória ainda faz fervilhar está por recordar!
A ideologia fascista e colonial
deste modo acaba por persistir numa apologia genérica das Forças Armadas
Portuguesas com tão triste passado republicano.
Valorizando simbolicamente e no
superlativo o papel das Forças Armadas Portugueses, entre desfile e fanfarra o
Presidente Português parece ter esquecido que, na frescura da República
Portuguesa que tinha sido praticamente acabada de estrear, era sobretudo a
questão das partilhas coloniais resultantes da Conferência de Berlim que estava
em jogo, que praticamente metade dos efectivos mobilizados foram colocados em
Angola e Moçambique (ainda que mesmo antes da entrada de Portugal na Guerra em
1916), que as baixas militares portuguesas foram maiores nos teatros
operacionais de África dos que as registadas na Europa, que os contingentes
tiveram não só a missão de enfrentar os colonialistas alemães no sul de Angola
e no norte de Moçambique (África Ocidental e Oriental Alemã), como também as
resistências africanas com que se tiveram de deparar, particularmente no sul de
Angola.
Esqueceu também de considerar que
Portugal era de facto uma potência colonial europeia periférica e sua decisão
de entrar ou não na Iª Guerra Mundial resultava muito mais das “obrigações” de
vassalagem para com o Reino Unido, do que por decisão própria…
Afinal, imensa vassalagem obriga,
100 anos depois, nada há a aprender com as injustiças do capitalismo que se
foram acumulando de forma sangrenta desde a Conferência de Berlim a ponto de
fazerem fermentar duas Guerras Mundiais, sempre na frenética luta pela
hegemonia e domínio das potências sobre os outros, a multidão de povos
oprimidos de todo o mundo!
3- Em África os contingentes
militares portugueses tiveram campanhas muito difíceis, sem ética, nem moral,
(mas“heroicas” no espírito de Marcelo) particularmente no norte de
Moçambique, onde o General alemão Paul Emil von
Lettow-Vorbeck, comandante da campanha colonial prussiana na África Oriental Alemã na Primeira Guerra Mundial, a única campanha
colonial dessa guerra onde a Alemanha não foi derrotada, fez a vida cara aos
colonialistas britânicos e portugueses, com seus askaris (recrutas locais
militarmente bem treinados e preparados) e sua estratégia de guerra de
guerrilhas na altura inovadora e provadamente invencível.
Em Angola, em 1914, os
contingentes portugueses foram derrotados pelos alemães sob o comando de Erich
Victor Carl August Franke (comandante das Schutztruppe no Sudoeste Africano Alemão) no
Cuangar e em Naulila, só se refazendo pouco a pouco com reforços que, além das
disputas contra os colonialistas alemães no Cunene e Cuando Cubango, enfrentaram
e acabaram por vencer a resistência africana sob o comando do rei cuanhama,
Mandume Ya Nemufaio, em Môngua.
As baixas portuguesas foram
provocadas não só como consequência directa das confrontações armadas, mas por
causa das doenças tropicais que contribuíram para dizimar os efectivos,
sanitariamente mal preparados e assistidos, quantas vezes entregues à sua
sorte!
Os portugueses esqueceram também
que os carregadores africanos mobilizados então sob suas ordens, sofreram como
se fossem moscas, pesadas baixas, por causa das doenças provocadas pela
insuficiente ou nula cobertura sanitária, da deficiente alimentação, dos maus
tratos e da guerra, havendo muito poucos relatos dessa situação, tal o valor
que era dado aos africanos, ainda que estivessem ao seu serviço.
Hoje como então, os africanos
são “danos colaterais”… e como tal é, a censura até na morte actua, se
possível pela via da omissão que é para nem gastar tinta e papel!
Nessa altura mesmo assim, o
colonialismo português só ficou a ganhar ética e moralmente em relação à praga
do colonialismo alemão no Sudoeste Africano, por que Erich Victor Carl
August Franke, o comandante prussiano, é apontado como o terrível responsável
pelo genocídio herero e nama de então, percussores de outros mais que se lhes
seguiriam ao longo do século XX e XXI, até aos nossos dias…
4- Foi nesse ambiente que no sul
de Angola, enfrentando os colonialistas alemães e portugueses, que o
rei Mandume Ya Nemufaio, comandou a resistência, algo que África deveria
lembrar como uma memória dos tempos conturbados da Iª Guerra Mundial num
continente devassado pelas disputas entre as potências coloniais ávidas de suas
riquezas e opressoras dos seus povos, após a Conferência de Berlim e ajustando
por via da guerra as partilhas feitas entre si.
África feita capim pisado pelos
elefantes de então, parece que continua, até pela ausência de sua voz, a ser o
capim pisado pelos (mesmos) elefantes de hoje!
A memória do rei Mandume, quer
para Angola, quer para a Namíbia, quer para África, tem toda a legitimidade
ética e moral para ser lembrada e consequentemente valorizada, impondo-se por
si, em contraste com a triste memória europeia da Iª Guerra Mundial, na
perspectiva de qualquer um dos dois lados dos contentores e na perspectiva do
discurso do professor Marcelo, Presidente da República Portuguesa!
As televisões e os meios de
difusão europeia massiva que hoje inundam de mensagens o continente africano,
como prova da devassa ultraperiferia que o continente continua a ser,
desfilarão as conveniências da arrogância, do cinismo e da hipocrisia
contemporânea europeia e das intervenções públicas bafientas dos seus
dirigentes, na continuidade das alucinações coloniais que não acabaram, pelo
contrário, refinaram-se por via das tão doutas quão bafientas cátedras das
capitais europeias!...
A África continua a ser um corpo
inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço… e isso sente-se até nos
momentos de celebração da paz, neste caso por via das omissões de Marcelo, que
se esqueceu por completo que, aos olhos dos oprimidos de todo o mundo, as
potências envolvidas na Iª Guerra Mundial, todas elas com apetites coloniais e
neocoloniais, assumem a barbaridade de se portarem sem honra, nem glória, nem
ética, nem moral, perante toda a humanidade!
Triste, hipócrita e cínica
maneira de celebrar o Armistício, evocando a humanidade e a dignidade… triste,
hipócrita e cínica maneira de celebrar a paz!
Que bafientas cátedras, em nome
da “civilização judaico-cristã ocidental”, persistem nas capitais dos
tão “civilizados”povos do norte!?
Martinho Júnior - Luanda, 9 de Novembro de 2018
Imagens:
Marcelo e a celebração do
Armistício;
Cavaco e a bandeira da República
Portuguesa içada ao contrário;
Corpo Expedicionário Português em
Angola, oficiais da Marinha;
Foto atribuída ao corpo
decapitado do rei Mandume;
Monumento ao rei Mandume, no
Cunene.
Discurso bafiento – Marcelo Rebelo de Sousa discursa em dia de cem anos do
Armistício – "Não vamos tolerar que se repita a sangrenta
divisão da Europa", avançou Presidente da República. – https://www.cmjornal.pt/multimedia/videos/detalhe/marcelo-rebelo-de-sousa-discursa-em-dia-de-cem-anos-do-armisticio
A República ao contrário – https://www.youtube.com/watch?v=mtPKp6TPT-0
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