quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Portugal | Assoem-se ao guardanapo


"Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos." A frase está numa carta difundida como sendo de Rosa Coutinho, alto-comissário de Angola no pós-25 de Abril, ao então líder do MPLA, Agostinho Neto, em 1974. Nesta, relatando as orientações de uma reunião secreta com o PCP, o português incitaria o destinatário a criar uma campanha de terror contra a população branca, matando e pilhando.

Fernanda Câncio | TSF | opinião

Em 2008, António Barreto, indignado, escreveu sobre a carta no Público. Ferreira Fernandes e Pacheco Pereira desenganaram-no: trata-se de uma fabricação, publicada em 1975, num jornal sul-africano.

"Tão de encomenda, tão destinada a suscitar a repulsa, como absurda", diz Pacheco Pereira sobre a alegada carta. Mas, mesmo assim, enganou gente durante 33 anos. E, provavelmente, continua a enganar - um exemplo da renitência das 'fake news'. Há muitos outros: a acusação a Mário Soares de ter pisado ou cuspido a bandeira portuguesa numa manifestação em Londres, em 1973, aquando de uma visita oficial de Marcelo Caetano ao Reino Unido; muito mais recente, a "notícia", surgida, durante a campanha das legislativas de 2005, num site brasileiro, sobre a orientação sexual do então líder do PS, José Sócrates, e a sua relação com um actor, reproduzida, em manchete, num jornal português, O Crime.

O uso de falsidades e falsificações no combate político está, então, longe de ser uma novidade entre nós. Antes chamava-se desinformação, assassinato de carácter, campanha negra; agora chama-se 'fake news'.

A invenção, difundida num site que se faz passar por noticioso, de que António Costa iria processar um fotógrafo por ter captado uma deputada do PS a pintar as unhas no parlamento, inscreve-se pois numa longa tradição. A de invenções estúpidas, muitas vezes inverosímeis, mas, que, incrivelmente, funcionam. Porque há quem nelas queira crer; porque alimentam um ódio pré-existente; porque o ódio não quer saber de factos.

Nada de novo então, nem nas mentiras nem nos mentirosos nem nos que neles querem crer - apenas nova a forma como as mentiras chegam às pessoas, como se propagam.

Novo é também que as pessoas estão a deixar de procurar informação no jornalismo, e o jornalismo estar a parecer-se cada vez com o que era suposto combater.

Os próprios jornais, mesmo os ditos sérios, dão há anos guarida, quer sob a forma de opinião quer acoitando comentários sem filtro, a acusações não consubstanciadas, a puras calúnias e vis insultos, naturalizando e tornando aceitável, no espaço público, a degradação do discurso.

Agora podemos mandar as mãos à cabeça, dizer que a democracia está em perigo - e está - e pedir leis para combater isto.

Mas quais leis? As que os tribunais não aplicam, por se ter consagrado a noção de que tudo se pode dizer em nome da liberdade de expressão?

Como diria Vasco Graça Moura, agora assoem-se a este guardanapo.

- A autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF

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