"Sede cruéis sobretudo com
as crianças, as mulheres e os velhos." A frase está numa carta difundida
como sendo de Rosa Coutinho, alto-comissário de Angola no pós-25 de Abril, ao
então líder do MPLA, Agostinho Neto, em 1974. Nesta, relatando as orientações de
uma reunião secreta com o PCP, o português incitaria o destinatário a criar uma
campanha de terror contra a população branca, matando e pilhando.
Fernanda Câncio | TSF | opinião
Em 2008, António Barreto,
indignado, escreveu sobre a carta no Público. Ferreira Fernandes e Pacheco
Pereira desenganaram-no: trata-se de uma fabricação, publicada em 1975, num
jornal sul-africano.
"Tão de encomenda, tão
destinada a suscitar a repulsa, como absurda", diz Pacheco Pereira sobre a
alegada carta. Mas, mesmo assim, enganou gente durante 33 anos. E, provavelmente,
continua a enganar - um exemplo da renitência das 'fake news'. Há muitos
outros: a acusação a Mário Soares de ter pisado ou cuspido a bandeira
portuguesa numa manifestação em Londres, em 1973, aquando de uma visita oficial
de Marcelo Caetano ao Reino Unido; muito mais recente, a "notícia",
surgida, durante a campanha das legislativas de 2005, num site brasileiro,
sobre a orientação sexual do então líder do PS, José Sócrates, e a sua relação
com um actor, reproduzida, em manchete, num jornal português, O Crime.
O uso de falsidades e
falsificações no combate político está, então, longe de ser uma novidade entre
nós. Antes chamava-se desinformação, assassinato de carácter, campanha negra;
agora chama-se 'fake news'.
A invenção, difundida num site
que se faz passar por noticioso, de que António Costa iria processar um
fotógrafo por ter captado uma deputada do PS a pintar as unhas no parlamento,
inscreve-se pois numa longa tradição. A de invenções estúpidas, muitas vezes
inverosímeis, mas, que, incrivelmente, funcionam. Porque há quem nelas queira
crer; porque alimentam um ódio pré-existente; porque o ódio não quer saber de
factos.
Nada de novo então, nem nas
mentiras nem nos mentirosos nem nos que neles querem crer - apenas nova a forma
como as mentiras chegam às pessoas, como se propagam.
Novo é também que as pessoas
estão a deixar de procurar informação no jornalismo, e o jornalismo estar a
parecer-se cada vez com o que era suposto combater.
Os próprios jornais, mesmo os
ditos sérios, dão há anos guarida, quer sob a forma de opinião quer acoitando
comentários sem filtro, a acusações não consubstanciadas, a puras calúnias e
vis insultos, naturalizando e tornando aceitável, no espaço público, a
degradação do discurso.
Agora podemos mandar as mãos à
cabeça, dizer que a democracia está em perigo - e está - e pedir leis para
combater isto.
Mas quais leis? As que os
tribunais não aplicam, por se ter consagrado a noção de que tudo se pode dizer
em nome da liberdade de expressão?
Como diria Vasco Graça Moura,
agora assoem-se a este guardanapo.
- A autora não escreve segundo o
Acordo Ortográfico de 1990
"A Opinião" de Fernanda
Câncio, na Manhã TSF
Sem comentários:
Enviar um comentário