quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Portugal | Uma startup da decência

Há crianças a receber tratamento de quimioterapia nos corredores e as enfermarias não têm condições de higiene. Unidade pediátrica Joãozinho funciona há quase uma década em contentores.

Pedro Ivo Carvalho | Jornal de Notícias | opinião

Já sei o que vão dizer-me: não comparemos o incomparável. Pois eu não consigo deixar de comparar, porque o país é o mesmo. E as prioridades políticas são o que nos definem como nação. Por isso, vou comparar. De que nos serve projetar Portugal, de forma tão alegremente pomposa, no mundo das novas tecnologias se continuamos a ser incapazes de encontrar uma solução urgente que impeça que crianças com cancro continuem a ser tratadas em contentores provisórios e impróprios? De que nos serve gastar 110 milhões de euros de dinheiros públicos para garantir a Web Summit até 2028 se não temos a capacidade de aplicar o mesmo grau de compromisso na construção de um espaço físico definitivo (que custa um quinto desse valor) para acolher famílias e menores da Região Norte numa nova ala pediátrica do Hospital de S. João?

Não comparemos o incomparável, já sei. Lamento, mas tem de ser. Porque este país bipolar é um reflexo das opções políticas, não do acaso. E o que está a acontecer neste vergonhoso processo é um retrato vivo da inércia e gigantismo da Administração Pública, de burocracias espúrias e dramas concursais ininteligíveis. Do empurrar com a barriga. De juras de amor vãs. Do mesmo pecado (da) capital de sempre. Tudo oco. Andamos nisto há sete anos. Sete. Na melhor das hipóteses, crianças e pais vão ficar pelo menos até 2020 esquecidos nesses contentores. Até podemos aceitar que não seja juridicamente possível fazer a obra por ajuste direto, mas é certamente possível que, até ao desenlaçar do nó, se encontre uma solução melhor do que a atual. E isso só está ao alcance do hospital ou, no limite, de uma ordem da ministra. Ou do primeiro-ministro. Ou de uma palavra mais incisiva do sempre afoito presidente da República. Será que vamos ter de criar uma startup da decência para otimizar o sentido do ridículo? Em caso afirmativo, tenho uma sugestão: shameonyouportugal.com.

* Diretor-adjunto do JN

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