Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
Tudo o que os responsáveis
políticos da União Europeia (UE) e os dirigentes do Reino Unido (RU) disseram
até agora sobre as suas posições limite na gestão do Brexit é provisório. Uma e
outra parte já têm em marcha planos de contingência. Isto significa que o
Brexit sem acordo, à partida catalogado de catastrófico, tenderá a ser cada vez
menos inconcebível e cada vez mais provável, ou seja, uma coisa no início
considerada impensável, torna-se progressivamente possível a partir do momento
em que as suas implicações passam a ser encaradas, abertamente discutidas e
acauteladas.
O desenvolvimento desses planos
de contingência colocará em evidência muitas das contradições e perversões que,
no caminhar do "projeto europeu", foram sendo plasmadas nos conteúdos
dos tratados, ou adotadas nos objetivos e condicionantes da moeda única (o RU
nunca lá esteve), na estruturação de poderes e nas suas práticas políticas.
Estamos longe de poder projetar, com um mínimo de segurança, o que poderão ser
as perdas para cada uma das partes, sendo que a parte UE é composta por 27
países com condições distintas, logo sujeitos a impactos diferenciados,
provavelmente mais pesados para os povos dos países periféricos.
A UE apresenta-se hoje em
situação de pré-caos. O Brexit constitui a expressão mais evidente, mas há
outras bem fortes: o distanciamento dos cidadãos que se vai aprofundando; o
desarmar de condições para a afirmação do Estado social de direito democrático;
a acomodação ao avanço de forças da extrema-direita e fascistas; o desrespeito
pela soberania dos países que integram a União; a incapacidade de um
relacionamento externo equilibrado e de respeito recíproco entre estados e
povos.
Apesar do processo do Brexit já
estar bem quente, a política dualista dos dirigentes europeus prossegue.
Engolem violações de critérios do Pacto de Estabilidade para acomodar as opções
tomadas pela Itália e pela França, mas não desencadeiam a sua indispensável
reforma. Continuarão a impô-lo a países como Portugal e a tratar-nos com pouco
respeito.
Como se sabe, o Governo português
deu prioridade ao pagamento antecipado da linha de crédito contraída junto do
FMI. Depois de ter amortizado cerca de 82% do capital em dívida, pretendeu
agora pagar os restantes 4,7 mil milhões de euros. As autoridades europeias,
que deviam apoiar a opção do nosso país, aproveitaram o "direito" de
se pronunciar - estabelecido quando o Estado português, em 2011, recorreu ao
financiamento da troika - para nos imporem mais cinco condições contratuais
gravosas nas linhas de crédito que ainda se mantêm com os credores oficiais
europeus. E o nosso ministro das Finanças (o Governo) "acertou", à
socapa, tais condições. Tudo isto é indecoroso.
As imposições a que fomos
sujeitos têm efeitos negativos imediatos sobre a vida dos portugueses e podem
ter outros a prazo. O país, ao ser obrigado a criar uma "confortável"
almofada financeira, cativa recursos que poderia usar para estimular a
economia, para melhorar a prestação de direitos sociais fundamentais ou repor
direitos dos trabalhadores. As condições renegociadas retiram graus de
liberdade a uma gestão prudente da dívida em situação de crise dos mercados
financeiros, e incluem outros condicionalismos. Num contexto de crise
financeira e de subida das taxas de juros no mercado, as consequências podem
ser pesadas para a nossa despesa com juros. Aí estão, mais uma vez, os
dirigentes europeus a proteger os mercados e os credores oficiais e a castigar
o povo.
Ao não submeter as condições
desta renegociação à discussão e aprovação do Parlamento, o ministro das
Finanças não acautelou o interesse público nacional e não respeitou as
instituições democráticas. É escandaloso que se tenha tomado consciência dessa
renegociação através da divulgação do acordo que o Parlamento alemão lhe
concedeu.
A complexidade e profundidade das
implicações do Brexit deviam levar a UE a uma mudança de rumo. Isso não está a
ser assumido, nem se perspetiva que a relação de forças existente e aquela que
se imagina para depois das eleições do próximo verão propiciem condições
políticas para tal objetivo. A União Europeia vai mesmo em direção errada.
* Investigador e professor
universitário
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