Permitir que continuem em
situação de pobreza milhares de crianças portuguesas significa privá-las de
alimentação, vestuário ou calçado e também discriminá-las no acesso à educação,
saúde e habitação.
Anabela Laranjeira | Abril Abril
| opinião
Tu que inventas ternura e
brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Ary dos Santos
No Natal de 2018, quase vinte
anos passados do início do novo milénio (o tal tempo futuro que se anunciava )
quantas são as famílias que ainda se reveem nas
solidárias palavras de Ary dos Santos?
A pobreza, essa de que se
alimenta a caridade própria da época, está, como sabemos, tal como a guerra e a
violência, à mesa da maioria das famílias neste Natal.
De acordo com um relatório
lançado este ano no Fórum Económico Mundial, em Davos, metade da população do
planeta tem um rendimento diário entre 2 e 10 dólares (entre 1,6 euros e 8,1
euros). Houve um aumento histórico no número de multimilionários em todo o
mundo, mais 2043 do que em 2017, sendo que 9 em cada 10 são homens.
O património destes
multimilionários aumentou 13% ao ano em média desde 2010, seis vezes mais do
que os aumentos dos salários pagos aos trabalhadores (2% ao ano). Só em 2017 a riqueza desse grupo
aumentou 762 mil milhões de dólares (622,8 mil milhões de euros), uma verba
suficiente para acabar mais de sete vezes com a pobreza extrema no mundo. Tudo
isto nos duros anos da crise...
Na ponta de uma Europa onde se
aprofunda a exploração de quem trabalha, as crianças portuguesas não escapam a
estes números. Os anos de troika fizeram disparar os números da miséria em
Portugal: 23% dos portugueses sobrevivem com rendimentos abaixo do limiar da
pobreza.
Só em 2014, os indicadores
começaram a melhorar. Nos últimos três anos, a ligeiríssima diminuição do
desemprego e a reposição de rendimentos contribuíram para números mais
animadores, mas Portugal continua a ser um país com elevados níveis de pobreza
e precariedade, estando a pobreza intimamente ligada à degradação das condições
laborais.
Integrado na União Europeia, com
uma realidade bem distante de outras latitudes, e uma legislação que protege as
crianças e os jovens em particular, o nosso país apresenta um enorme
desfasamento entre o que está na Lei, os acordos assinados com várias entidades
e a vida diária das crianças e adolescentes provenientes de famílias
trabalhadoras.
Em Portugal, trabalhar
diariamente, oito ou mesmo mais horas por dia, não é condição para conseguir
afastar os filhos da pobreza. Apesar dos desempregados continuarem a ser o
grupo mais vulnerável à pobreza, mais de 10% da população empregada está na
mesma situação. São milhares as famílias trabalhadoras que, em Portugal,
recorrem a organizações como a Cáritas ou o Banco Alimentar, que, por estes
dias de Natal, não têm mãos a medir. Continua, numa larguíssima percentagem de
Juntas de Freguesia do nosso país, a atribuição dos chamados «Cabazes de Natal»
a famílias carenciadas, muitas delas com emprego.
O rendimento mensal médio por
adulto ronda os 900 euros, cerca de metade da média da União Europeia, que é de
1500 euros, mas os salários baixos e o salário mínimo (menos de 600 euros
líquidos) estão presentes em largos sectores de actividade. Os trabalhadores
mais jovens, em idade fértil e/ou com filhos, viram o seu ganho médio
reduzir-se em cerca de um terço (-31%).
De acordo com dados recentes,
lançados a propósito do dia da Erradicação da Pobreza, Portugal conta-se entre
os países com maior «taxa de pobreza infantil»: 29%, muito acima da média
europeia de 20%. Essa percentagem triplica para crianças provenientes de
famílias de etnia-cigana, famílias afro-descentes ou imigrantes, atingindo os
90%.
O risco de pobreza passa para os
33% se a família for monoparental, ainda que a mãe ou o pai trabalhem a tempo
inteiro. E aumenta com o número de filhos, provando a insuficiência de apoios
sociais como o abono de família ou outros. No caso de três ou mais filhos, a
taxa de pobreza é mesmo superior a 40%. A propaganda feita em torno das
famílias numerosas é das mais enganadoras que existe. Estas famílias são, hoje
em dia, provenientes de estratos sociais mais favorecidos, mesmo nas áreas
rurais do país.
A insuspeita Fundação Francisco
Manuel dos Santos juntou dados do Instituto Nacional de Estatística e do
Eurostat, e traçou um retrato da pobreza e da exclusão social no país. Em Portugal Desigual,
apresenta-se o retrato bem real das famílias trabalhadoras com filhos menores.
Um dos indicadores de que fala é
o da «privação material», dizendo-nos que «mais de um terço dos portugueses
ainda não consegue suportar o pagamento de uma despesa de 450 euros sem
recorrer a um empréstimo, 20% da população não tem capacidade para manter a
casa suficientemente aquecida, 8% não consegue pagar a tempo a renda ou outras
despesas correntes, e mais de 40% dos portugueses não consegue pagar uma semana
de férias por ano».
Com este retrato é possível
compreender o valor dado a medidas positivas tomadas recentemente, como o
ligeiro aumento do abono de família, a gratuitidade dos manuais escolares ou a
reposição de determinados rendimentos em alguns sectores de actividade. São
medidas que, não mudando profundamente a situação, aliviam famílias sobrecarregadas
de despesas básicas que consomem a totalidade (senão mais) dos seus parcos
rendimentos.
A propósito destes dados, o
economista e professor Carlos Farinha Rodrigues, um dos coordenadores
científicos, diz-nos que durante a crise «tivemos um fortíssimo agravamento das
crianças em situação de pobreza, este é o principal aspeto da pobreza em
Portugal, porque é um aspeto que tem a ver com o presente, mas que tem
repercussões no futuro. Em Portugal sempre existiu uma dificuldade enorme em
ter medidas efetivas de combate às crianças em situação de pobreza por esta não
ter apenas a ver com os jovens, mas também com as famílias. Como tal, são
necessárias medidas destinadas às crianças no setor da saúde, da educação, com
o acompanhamento de situações com problemas, mas também com os recursos das
famílias onde estas crianças estão. A primeira linha de ação para reduzir a
pobreza em Portugal é tratar de forma consistente e sustentada o problema das
crianças em situação de pobreza».
Permitir que continuem em
situação de pobreza milhares de crianças portuguesas, significa privá-las de
uma alimentação, vestuário ou calçado adequado durante uma fase decisiva do seu
crescimento, mas significa também discriminá-las no acesso à educação, à saúde
e a uma habitação com condições de conforto.
Sabemos hoje que uma pessoa que
vive a sua infância e adolescência em privação material tem menos
oportunidades, desperdiçando grande parte da sua energia e capacidades na
procura de soluções para uma sobrevivência precária. As marcas da pobreza na
infância, para além do sofrimento que causam no presente, são, em muitos casos,
uma herança para o futuro. Em Portugal, as marcas do trabalho infantil e das
condições em que viveu a actual geração de avós, não nos deixa esquecer este
facto, nem este fardo.
Uma vida diferente para as
famílias com crianças depende de um olhar atento às causas da chamada «pobreza
infantil» e a alteração das condições das famílias. Não existem crianças pobres
ou ricas, uma vez que não é a estas que pertence o rendimento do trabalho ou do
património. Existem pais e mães com mais ou menos oportunidades, mais ou menos
acesso a condições de vida e de trabalho que lhes permitam dar uma vida digna
aos seus dependentes. Existe um Estado que, de acordo com a sua Constituição
(Artigo 70º – protecção especial para efectivação dos direitos da juventude)
deve proteger os mais jovens, tornando possível uma vida sem pobreza no
presente e uma vida futura com horizontes mais largos.
**A autora escreve de acordo com
o Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)
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