quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Portugal | Famílias pobres, futuro em risco


Permitir que continuem em situação de pobreza milhares de crianças portuguesas significa privá-las de alimentação, vestuário ou calçado e também discriminá-las no acesso à educação, saúde e habitação.

Anabela Laranjeira | Abril Abril | opinião

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Ary dos Santos


No Natal de 2018, quase vinte anos passados do início do novo milénio (o tal tempo futuro que se anunciava ) quantas são as famílias que ainda se reveem nas solidárias palavras de Ary dos Santos?

A pobreza, essa de que se alimenta a caridade própria da época, está, como sabemos, tal como a guerra e a violência, à mesa da maioria das famílias neste Natal.

De acordo com um relatório lançado este ano no Fórum Económico Mundial, em Davos, metade da população do planeta tem um rendimento diário entre 2 e 10 dólares (entre 1,6 euros e 8,1 euros). Houve um aumento histórico no número de multimilionários em todo o mundo, mais 2043 do que em 2017, sendo que 9 em cada 10 são homens.

O património destes multimilionários aumentou 13% ao ano em média desde 2010, seis vezes mais do que os aumentos dos salários pagos aos trabalhadores (2% ao ano). Só em 2017 a riqueza desse grupo aumentou 762 mil milhões de dólares (622,8 mil milhões de euros), uma verba suficiente para acabar mais de sete vezes com a pobreza extrema no mundo. Tudo isto nos duros anos da crise...

Na ponta de uma Europa onde se aprofunda a exploração de quem trabalha, as crianças portuguesas não escapam a estes números. Os anos de troika fizeram disparar os números da miséria em Portugal: 23% dos portugueses sobrevivem com rendimentos abaixo do limiar da pobreza.

Só em 2014, os indicadores começaram a melhorar. Nos últimos três anos, a ligeiríssima diminuição do desemprego e a reposição de rendimentos contribuíram para números mais animadores, mas Portugal continua a ser um país com elevados níveis de pobreza e precariedade, estando a pobreza intimamente ligada à degradação das condições laborais.
Integrado na União Europeia, com uma realidade bem distante de outras latitudes, e uma legislação que protege as crianças e os jovens em particular, o nosso país apresenta um enorme desfasamento entre o que está na Lei, os acordos assinados com várias entidades e a vida diária das crianças e adolescentes provenientes de famílias trabalhadoras.

Em Portugal, trabalhar diariamente, oito ou mesmo mais horas por dia, não é condição para conseguir afastar os filhos da pobreza. Apesar dos desempregados continuarem a ser o grupo mais vulnerável à pobreza, mais de 10% da população empregada está na mesma situação. São milhares as famílias trabalhadoras que, em Portugal, recorrem a organizações como a Cáritas ou o Banco Alimentar, que, por estes dias de Natal, não têm mãos a medir. Continua, numa larguíssima percentagem de Juntas de Freguesia do nosso país, a atribuição dos chamados «Cabazes de Natal» a famílias carenciadas, muitas delas com emprego.

O rendimento mensal médio por adulto ronda os 900 euros, cerca de metade da média da União Europeia, que é de 1500 euros, mas os salários baixos e o salário mínimo (menos de 600 euros líquidos) estão presentes em largos sectores de actividade. Os trabalhadores mais jovens, em idade fértil e/ou com filhos, viram o seu ganho médio reduzir-se em cerca de um terço (-31%).

De acordo com dados recentes, lançados a propósito do dia da Erradicação da Pobreza, Portugal conta-se entre os países com maior «taxa de pobreza infantil»: 29%, muito acima da média europeia de 20%. Essa percentagem triplica para crianças provenientes de famílias de etnia-cigana, famílias afro-descentes ou imigrantes, atingindo os 90%.

O risco de pobreza passa para os 33% se a família for monoparental, ainda que a mãe ou o pai trabalhem a tempo inteiro. E aumenta com o número de filhos, provando a insuficiência de apoios sociais como o abono de família ou outros. No caso de três ou mais filhos, a taxa de pobreza é mesmo superior a 40%. A propaganda feita em torno das famílias numerosas é das mais enganadoras que existe. Estas famílias são, hoje em dia, provenientes de estratos sociais mais favorecidos, mesmo nas áreas rurais do país.

A insuspeita Fundação Francisco Manuel dos Santos juntou dados do Instituto Nacional de Estatística e do Eurostat, e traçou um retrato da pobreza e da exclusão social no país. Em Portugal Desigual, apresenta-se o retrato bem real das famílias trabalhadoras com filhos menores.

Um dos indicadores de que fala é o da «privação material», dizendo-nos que «mais de um terço dos portugueses ainda não consegue suportar o pagamento de uma despesa de 450 euros sem recorrer a um empréstimo, 20% da população não tem capacidade para manter a casa suficientemente aquecida, 8% não consegue pagar a tempo a renda ou outras despesas correntes, e mais de 40% dos portugueses não consegue pagar uma semana de férias por ano».

Com este retrato é possível compreender o valor dado a medidas positivas tomadas recentemente, como o ligeiro aumento do abono de família, a gratuitidade dos manuais escolares ou a reposição de determinados rendimentos em alguns sectores de actividade. São medidas que, não mudando profundamente a situação, aliviam famílias sobrecarregadas de despesas básicas que consomem a totalidade (senão mais) dos seus parcos rendimentos.

A propósito destes dados, o economista e professor Carlos Farinha Rodrigues, um dos coordenadores científicos, diz-nos que durante a crise «tivemos um fortíssimo agravamento das crianças em situação de pobreza, este é o principal aspeto da pobreza em Portugal, porque é um aspeto que tem a ver com o presente, mas que tem repercussões no futuro. Em Portugal sempre existiu uma dificuldade enorme em ter medidas efetivas de combate às crianças em situação de pobreza por esta não ter apenas a ver com os jovens, mas também com as famílias. Como tal, são necessárias medidas destinadas às crianças no setor da saúde, da educação, com o acompanhamento de situações com problemas, mas também com os recursos das famílias onde estas crianças estão. A primeira linha de ação para reduzir a pobreza em Portugal é tratar de forma consistente e sustentada o problema das crianças em situação de pobreza».

Permitir que continuem em situação de pobreza milhares de crianças portuguesas, significa privá-las de uma alimentação, vestuário ou calçado adequado durante uma fase decisiva do seu crescimento, mas significa também discriminá-las no acesso à educação, à saúde e a uma habitação com condições de conforto.

Sabemos hoje que uma pessoa que vive a sua infância e adolescência em privação material tem menos oportunidades, desperdiçando grande parte da sua energia e capacidades na procura de soluções para uma sobrevivência precária. As marcas da pobreza na infância, para além do sofrimento que causam no presente, são, em muitos casos, uma herança para o futuro. Em Portugal, as marcas do trabalho infantil e das condições em que viveu a actual geração de avós, não nos deixa esquecer este facto, nem este fardo.

Uma vida diferente para as famílias com crianças depende de um olhar atento às causas da chamada «pobreza infantil» e a alteração das condições das famílias. Não existem crianças pobres ou ricas, uma vez que não é a estas que pertence o rendimento do trabalho ou do património. Existem pais e mães com mais ou menos oportunidades, mais ou menos acesso a condições de vida e de trabalho que lhes permitam dar uma vida digna aos seus dependentes. Existe um Estado que, de acordo com a sua Constituição (Artigo 70º – protecção especial para efectivação dos direitos da juventude) deve proteger os mais jovens, tornando possível uma vida sem pobreza no presente e uma vida futura com horizontes mais largos.

**A autora escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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