Governo expõe múltiplas
contradições e incapacidades. Mas para frear a ofensiva conservadora, e
reconquistar as maiorias, será preciso algo que os partidos não parecem capazes
de oferecer
Antonio Martins | Outras Palavras
Um enigma crucial, sobre a figura
e o papel de Jair Bolsonaro, tormenta e ameaça boa parte dos que se opõem e
tentam resistir a ele. O que representa, afinal, o presidente? O homem
despreparado e patético, que chegou ao poder por circunstâncias extraordinárias
e dele poderá ser expelido a qualquer momento, assim que o jogo político
tradicional se reorganizar? Ou o poderoso representante do capitalismo
contemporâneo – brutal e avassalador, capaz de transformar para pior a face do
país e impor seus desígnios por largo prazo? Há vestígios destes dois
personagens nos dez dias iniciais de governo, que se completam amanhã.
O Bolsonaro frágil é o presidente
que anuncia uma alta de impostos para ser desmentido
duas vezes, nas horas seguintes, por seus subordinados. É o falastrão que
acena com uma base
militar norte-americana no Brasil e ouve seu ministro da Defesa dizer
que a ideia nem chegou a ser cogitada. É o ansioso que reúne
todo o ministério duas vezes, em oito dias, e não é capaz de apresentar um
único plano concreto. É o caótico cujos assessores apresentam a cada dia uma
ideia distinta sobre a contrarreforma
da Previdência. É o incauto que dá espaço para gatunagens pequenas e amadoras,
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capazes de se transformar, em pouco tempo, em armadilhas que reduzirão seu
espaço de manobra e de comprometer, no limite, a própria continuidade do
governo.
Mas este aparente poço de
incompetências age com força destrutiva superior à esperada, em múltiplas
frentes. Os bancos públicos têm agora dirigentes claramente empenhados
em liquidá-los, abrindo ainda mais espaço e negócios para a oligarquia
financeira privada. Uma nova onda de privatizações – incluindo
a Eletrobrás e o manejo dos rios – está a caminho, apesar das
pesquisas que revelam oposição
da sociedade a elas. O Consea,
um raro espaço de participação social na definição das políticas públicas, foi
extinto com uma penada. A demarcação
de terrasindígenas e quilombolas ficará bloqueada, no ministério da
Agricultura, por uma líder ruralista. Os LGBT estão excluídos da
política (?) de Direitos Humanos e a educação sexual nas escolas pode ser
banida, também em confronto
com a maioria. O sistema S e sua vasta ação cultural permanecem
por um fio. Haverá “monitoramento” das
ONGs. A lista amplia-se a cada dia.
Qual dos Bolsonaros é o real? –
pergunta-se. Mas talvez a dúvida decorra da falta de um elemento, na equação. É
impossível conhecer a força de um governo sem testá-la. E a característica mais
notável dos primeiros dez dias não está nos atos do capitão – mas no campo
aberto que ele parece ter à sua frente, para agir. Os partidos da ordem
tradicionais encolheram-se naturalmente, como era de esperar. A mídia e os
barões das finanças fazem jogo duplo, atiçando o fúria ultraliberal do governo
e buscando, ao mesmo tempo, encabrestar seus ímpetos antiestablishment. (Estas
duas atitudes merecem ser analisadas em textos futuros). Porém, o mais notável
é: a vasta galáxia que se opõe ao conservadorismo e ao ultracapitalismo
permanece desarticulada. A esquerda institucional parece incapaz de
representá-la e mesmo de dialogar com ela. Não surgiram formas alternativas de
construção de solidariedades, resistências comuns e alternativas. Enquanto esta
ausência persistir, será impossível tanto encarar as (anti)políticas do
bolsonarismo quanto reconquistar os vastíssimos setores do eleitorado que
votaram por ele sem compartilhar seu programa de retrocessos.
* * *
O analista político e professor
de Filosofia Marcos Nobre talvez tenha sido, até o momento, quem enxergou o
mais longe a capacidade de Bolsonaro para governar sem barreiras. Numa série de
artigos publicados na Piauí e uma entrevista concedida
a El País, no final do ano passado, ele demonstrou como estão
iludidos os que apostam num naufrágio inevitável do governo do capitão. A força
deste, argumenta Nobre, está no colapso do sistema político, evidente desde
2013. É um fenômeno global, aliás. As instituições e as políticas que mantinham
a coesão social, e a força dos partidos de centro ou adjacências, esgotaram-se.
Décadas de políticas neoliberais, de corrosão dos serviços públicos, de aumento
das desigualdades ou – como no caso do Brasil – de frustração de expectativas
produziram um estado de desencanto profundo que abre avenidas ao antissistema (vale
ler Priscila Figueiredo a respeito). Por mais precário que seja,
Bolsonaro e seu entorno terão muito impulso, enquanto surfarem nesta onda.
Mas talvez tenha escapado a
Marcos Nobre uma dimensão que revela a real profundidade do problema. Ele
propõe, como saída, uma Concertação
Democrática que, a exemplo da frente de oposição à ditadura
pós-64, esteja fortemente ancorada nos partidos. Nobre fala no PT, em Ciro, em
Marina, talvez num novo “centro” armado em torno de Luciano Huck. Sugere que
estes partidos “abram-se para a sociedade” por meio de instrumentos como as
prévias. E frisa que esta concertação não deveria apenas defender as
instituições – mas, ao mesmo tempo, consertá-las.
Há, porém, algum sinal, no
Brasil, de que os partidos, da esquerda ao centro, estejam dispostos a deixar a
pequenez de seus assuntos internos e a se lançar à aventura de desbravar e
enfrentar o capitalismo contemporâneo? O que permite a ascensão da ultradireita
não é um fenômeno superficial. A produção e as relações sociais estão, há décadas,
em transformação veloz. Este processo se acelerará, com o avanço da
inteligência artificial, da robótica, das edições genéticas, da nanotecnologia.
Neste cenário totalmente
reconfigurado, os velhos programas de enfrentamento do capital tornam-se ineficazes.
E é precisamente o impulso do capital para se expandir, para quebrar as velhas
regulações que lhe impõem limites, que dá origem a fenômenos como Bolsonaro.
Trump. O aumento contínuo e brutal das desigualdades humanas, que em breve
chegarão à
esfera biológica. A redução da internet a máquina de vigilância, comércio e
controle. As execuções de milhares de adversários sem julgamento, por meio de
drones, e a destruição de Estados nacionais como a Líbia – perpetradas por
“centristas” ou “centro-esquerdistas” como Barack Obama, Hillary Clinton e
François Hollande.
* * *
É possível reverter esta
ofensiva, que às vezes parece tão alucinante? Decerto, inclusive porque ela
devasta os direitos e condições de vida das maiorias, liquida as classes
médias, favorece no máximo uma minoria de 1%. Mas é preciso ter determinação
para rever, de alto a baixo, os antigos programas e métodos políticos. A luta
contra a opressão capitalista é cada vez mais atual. Muitas das formas que ela
assumiu nos séculos XIX e XX, não.
A renovação já está em curso –
mas de maneira muito embrionária. Pense no ar que se respirou nas ruas do
Brasil, em centenas de cidades, em episódios como o Ele Não, os
protestos contra a execução de Marielle Franco ou muitas das manifestações que
tentaram impedir o golpe de 2016. Foram multidões que se autoconvocaram,
provenientes de muitas constelações sociais e políticas, que se reconhecem
todas em lógicas pós-capitalistas. Entre elas, a distribuição radical de
riquezas, em vez do acúmulo. A reflexão sobre as relações sociais e o planeta,
no lugar do trabalho e consumo alienados. Cooperar, cuidar e colaborar, muito mais
que competir. O respeito às múltiplas formas de afeto. A cultura de paz.
Para mudar o mundo, não basta a
enunciação de novas lógicas. Mas é delas que partem a construção de outras
políticas e a formulação teórica. Talvez valha mais a pena apostar nestes
embriões de alternativa real ao sistema, do que numa improvável
regeneração dos partidos institucionais, para enfrentar Bolsonaro. Como no pós-64, a resistência foi tramada
nas bases da sociedade, enquanto a oposição institucional rendia-se (o
jornalista e ex-deputado Freitas Nobre, pai de Marcos Nobre, é uma saudosa
exceção). O então MDB, único partido oposicionista tolerado, incorporou-se à
luta contra a ditadura muito mais tarde, quando o ambiente social já havia
mudado.
Um dia, quando tal processo
avançar, surgirão aqui um Podemos, uma Frente Ampla (como a do Chile), um
Bernie Sanders, um Jeremy Corbyn. Mas nenhum destes existiria sem que houvesse
antes os Indignados espanhóis, os Pinguins de Santiago ou o Occupy. O Brasil,
pleno de contradições e de energia, precisa criar as condições que permitirão a
emergência de algo assim. Um jornalismo crítico e de profundidade pode ter um
papel, neste processo.
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