Redução das tarifas básicas de
importação. “Flexibilização” do Mercosul. Ingresso na OCDE, aceitando suas
exigências. Enquanto Araújo diz pataquadas Paulo Guedes prepara medidas que
podem tornar país ainda mais submisso, desindustrializado e dependente
Marcelo Zero, em Brasil
Debate
Enquanto o clã Bolsonaro e o
chanceler templário mesmerizam a opinião pública nacional e internacional com
suas declarações bombásticas, estapafúrdias e francamente cretinas sobre
política externa, a equipe econômica do novo governo prepara, praticamente na
surdina, decisões que terão, se implementadas, profundo impacto negativo na
inserção internacional do Brasil.
A primeira delas seria a revisão
das tarifas consolidadas que o Brasil tem na OMC.
As tarifas consolidadas são
aquelas que os países inserem na OMC como suas tarifas máximas de importação,
aquelas que consideram necessárias para a proteção dos seus diversos setores
produtivos. No caso do Brasil, tais tarifas situam-se em torno de 35%.
Pois bem, a equipe econômica pretende rever tais tarifas, com redução sensível de seu teto. Embora ainda não se saiba exatamente o montante de tal redução e quais os setores que seriam afetados, o objetivo é blindar, na OMC, a opção neoliberal da abertura acrítica da economia, tão cara ao novo tzar da economia, Paulo Guedes.
Uma vez inseridas, as novas
tarifas reduzidas na OMC dificilmente seriam revertidas, o que imporia aos
próximos governos obstáculos de monta para a prática de políticas comerciais
mais protetivas, bem como empecilhos praticamente intransponíveis para
políticas de industrialização, o que aceleraria o processo reprimarização
econômica que hoje afeta o Brasil.
A segunda medida tange à
flexibilização da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul. Com efeito, é
objetivo antigo dos neoliberais brasileiros acabar com a união aduaneira do
Mercosul e transformar esse bloco em mera área de livre comércio. Nesse caso, o
Brasil e os outros países do Mercosul poderiam negociar, de forma independente,
acordos de “livre” comércio com terceiros países.
Por que isso é ruim para os
interesses brasileiros? Porque o nosso país tem, com essa união aduaneira, um
mercado cativo para seus produtos manufaturados. O Brasil exporta para o
Mercosul produtos manufaturados com alíquota zero ou próxima de zero, enquanto
terceiros países pagam taxas elevadas de importação. Com a extinção da união
aduaneira do Mercosul, corre-se o risco de que produtos chineses, europeus e
norte-americanos entrem nesse mercado pagando também uma tarifa muito baixa, o
que acabaria com a competitividade de nossos produtos nesse mercado regional.
Saliente-se que 90% das nossas
exportações para o Mercosul são de produtos manufaturados. Não fosse pelo
Mercosul, com sua união aduaneira, e pela integração regional de um modo geral,
a indústria do Brasil estaria em situação muito pior.
Na última reunião de cúpula do
Mercosul, Bolsonaro e Macri já prepararam o terreno para tal procedimento. No
Brasil, ninguém comentou.
Uma terceira decisão, tomada já
pelo governo do golpe, tange à participação do Brasil na OCDE.
E o que é a OCDE? É uma
organização que reúne 35 países, a grande maioria nações plenamente
desenvolvidas — com algumas exceções, como México e Turquia, por exemplo.
Criada em 1961, a
partir da experiência da Organização para a Cooperação Econômica (OECE),
organização constituída para gerir o Plano Marshall, a OCDE é também conhecida
como o “Clube dos Ricos”, pois seus membros (basicamente os EUA, os países
europeus, Japão, Coreia, Canadá e Austrália) produzem mais da metade do PIB
mundial.
Seu objetivo político e econômico
fundamental é o de promover as supostas virtudes da “economia de mercado”, que
ela associa indissoluvelmente à “democracia” e aos “direitos humanos”. Em seu
site oficial, constam como suas prioridades atuais “restaurar a confiança no
mercado e nas instituições que o fazem funcionar” e “reestabelecer finanças
públicas saudáveis como base para o crescimento econômico sustentável”.
Assim, trata-se de uma
organização comprometida com os valores, os princípios e as teses neoliberais,
bem como com o funcionamento desregulado do capitalismo financeirizado, tal
qual convém a um “Clube dos Ricos”.
Pois bem, os governos pós-golpe
desejam ardentemente ver o Brasil nele incluído. Só faltam implorar para nele
ingressar. Falta, não. Estão praticamente implorando, mesmo.
Saliente-se que a adesão, se
concretizada, não virá de graça. A OCDE só aceitará o Brasil após uma avaliação
rigorosa de suas políticas e de suas práticas. Caso julgue necessário, a OCDE
demandará as devidas correções de rumo.
Embora os EUA tenham oposto
alguma resistência ao ingresso do Brasil nesse seleto clube, o governo
Bolsonaro está redobrando os esforços para que o Brasil faça parte da OCDE o
quanto antes.
Quais os objetivos de tudo isso?
O primeiro e óbvio objetivo é o
de abrir definitiva e totalmente a economia do Brasil, conforme recomenda
fortemente o receituário neoliberal.
Mas há também um segundo
objetivo, bem mais perigoso. Esse objetivo tange à blindagem política e
diplomática de uma opção neoliberal interna.
Com efeito, a maneira mais
eficiente de blindar uma opção econômica e política contra a soberania popular
é consagrá-la em compromissos internacionais.
É melhor até do que inscrevê-la
na Constituição.
O Congresso Nacional pode
modificar a Carta Magna por decisão de três quintos de seus membros. Mas o
Congresso Nacional não pode denunciar acordos internacionais, uma vez
ratificados. Essa é uma prerrogativa exclusiva do presidente da República. Além
disso, retirar-se de um acordo internacional de peso é muito complicado.
Esses acordos, especialmente os
de “livre” comércio, criam interesses e compromissos de reversão muito difícil,
mesmo para países poderosos. Está aí o exemplo de Trump, que tenta fazer
malabarismos para voltar a proteger a economia norte-americana. Está aí também
o exemplo do Brexit, que está suscitando forte retaliação da União Europeia.
O quadro é muito pior para países
em desenvolvimento, com menor poder de barganha. O México, por exemplo, selou
seu destino quando assinou o NAFTA.
Ao fazê-lo, e ao celebrar também
vários outros acordos de “livre” comércio, o México comprometeu-se
definitivamente com o neoliberalismo e chutou a escada de seu próprio
desenvolvimento. Quaisquer que sejam os governos eleitos naquele país, eles
ficam manietados pelas cláusulas liberais desses atos internacionais. O espaço decisório
interno para políticas públicas, especialmente para políticas econômicas,
políticas de desenvolvimento, políticas de industrialização e políticas para a
promoção da ciência e da tecnologia, fica consideravelmente reduzido.
López Obrador, embora bem-intencionado,
terá muitas dificuldades para reverter a desestruturação das cadeias produtivas
que o Nafta provocou no México. Hoje, o México importa até milho, base da sua
alimentação, dos Estados Unidos.
De acordo com a Cepal, os índices
de Gini do México ficaram estacionados nesse início de século, as taxas de
pobreza aumentaram e a participação dos salários no PIB diminuiu, ao contrário
do que aconteceu na maior parte dos países da região. O México, exemplo de
livre-cambismo acrítico, é um fracasso econômico e social.
Deve-se ter em mente que tais
acordos não se limitam a simplesmente abrir o comércio, via redução de tarifas
de importação. Na realidade, eles têm uma série de cláusulas relativas a
proteção de investimentos estrangeiros, propriedade intelectual, serviços,
compras governamentais, regras ambientais e trabalhistas, etc., que podem
comprometer a capacidade dos Estados de promoverem, a seus critérios, diversos
tipos de política desenvolvimentistas.
Assim, discretamente, sem chamar
atenção, a equipe econômica do governo Bolsonaro ensaia a blindagem
internacional de sua opção política pelo ultraneoliberalismo. Blindagem que,
como a Emenda Constitucional nº 95, limitará seriamente as opções políticas dos
próximos governos.
Golpes de Estado substituem a
soberania do voto popular pela vontade de maioria parlamentares
circunstanciais. E uma política externa de país periférico pode substituir a
soberania do Estado-Nação pelos interesses de nações hegemônicas e pelos
ditames do capital internacional.
Desse modo, o grande golpe contra
a democracia pode ser construído no cenário externo, pelos mecanismos
aparentemente neutros e “técnicos” dos compromissos internacionais.
No Itamaraty, a resistência a
esse descalabro está limitada, face ao processo de perseguição política que lá
se instalou. Até listas macarthistas, com nomes de diplomatas “petistas” e
“maus brasileiros”, por lá circulam impunemente. Coisa de gente sem caráter e
firmeza moral.
Portanto, a opinião pública e o
Congresso precisam estar atentos a esses movimentos discretos, porém
potencialmente muito danosos.
É bom esquecer um pouco as
bobagens pré-iluministas do chanceler templário e as cretinices patentes do clã
Bolsonaro, inspiradas por diáfanos astrólogos, e começar a prestar atenção na
ação discreta, aparentemente neutra e “técnica”, da equipe de Paulo Guedes,
assentada em poderosos e concretos interesses.
Se não o fizermos, o Brasil
poderá levar uma rasteira que o deixará em terra por muito tempo.
*Publicado em Outras Palavras
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