segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Brasil | A política externa oculta do governo Bolsonaro


Redução das tarifas básicas de importação. “Flexibilização” do Mercosul. Ingresso na OCDE, aceitando suas exigências. Enquanto Araújo diz pataquadas Paulo Guedes prepara medidas que podem tornar país ainda mais submisso, desindustrializado e dependente

Marcelo Zero, em Brasil Debate

Enquanto o clã Bolsonaro e o chanceler templário mesmerizam a opinião pública nacional e internacional com suas declarações bombásticas, estapafúrdias e francamente cretinas sobre política externa, a equipe econômica do novo governo prepara, praticamente na surdina, decisões que terão, se implementadas, profundo impacto negativo na inserção internacional do Brasil.

A primeira delas seria a revisão das tarifas consolidadas que o Brasil tem na OMC.

As tarifas consolidadas são aquelas que os países inserem na OMC como suas tarifas máximas de importação, aquelas que consideram necessárias para a proteção dos seus diversos setores produtivos. No caso do Brasil, tais tarifas situam-se em torno de 35%.


Pois bem, a equipe econômica pretende rever tais tarifas, com redução sensível de seu teto. Embora ainda não se saiba exatamente o montante de tal redução e quais os setores que seriam afetados, o objetivo é blindar, na OMC, a opção neoliberal da abertura acrítica da economia, tão cara ao novo tzar da economia, Paulo Guedes.

Uma vez inseridas, as novas tarifas reduzidas na OMC dificilmente seriam revertidas, o que imporia aos próximos governos obstáculos de monta para a prática de políticas comerciais mais protetivas, bem como empecilhos praticamente intransponíveis para políticas de industrialização, o que aceleraria o processo reprimarização econômica que hoje afeta o Brasil.

A segunda medida tange à flexibilização da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul. Com efeito, é objetivo antigo dos neoliberais brasileiros acabar com a união aduaneira do Mercosul e transformar esse bloco em mera área de livre comércio. Nesse caso, o Brasil e os outros países do Mercosul poderiam negociar, de forma independente, acordos de “livre” comércio com terceiros países.

Por que isso é ruim para os interesses brasileiros? Porque o nosso país tem, com essa união aduaneira, um mercado cativo para seus produtos manufaturados. O Brasil exporta para o Mercosul produtos manufaturados com alíquota zero ou próxima de zero, enquanto terceiros países pagam taxas elevadas de importação. Com a extinção da união aduaneira do Mercosul, corre-se o risco de que produtos chineses, europeus e norte-americanos entrem nesse mercado pagando também uma tarifa muito baixa, o que acabaria com a competitividade de nossos produtos nesse mercado regional.

Saliente-se que 90% das nossas exportações para o Mercosul são de produtos manufaturados. Não fosse pelo Mercosul, com sua união aduaneira, e pela integração regional de um modo geral, a indústria do Brasil estaria em situação muito pior.

Na última reunião de cúpula do Mercosul, Bolsonaro e Macri já prepararam o terreno para tal procedimento. No Brasil, ninguém comentou.

Uma terceira decisão, tomada já pelo governo do golpe, tange à participação do Brasil na OCDE.

E o que é a OCDE? É uma organização que reúne 35 países, a grande maioria nações plenamente desenvolvidas — com algumas exceções, como México e Turquia, por exemplo. Criada em 1961, a partir da experiência da Organização para a Cooperação Econômica (OECE), organização constituída para gerir o Plano Marshall, a OCDE é também conhecida como o “Clube dos Ricos”, pois seus membros (basicamente os EUA, os países europeus, Japão, Coreia, Canadá e Austrália) produzem mais da metade do PIB mundial.

Seu objetivo político e econômico fundamental é o de promover as supostas virtudes da “economia de mercado”, que ela associa indissoluvelmente à “democracia” e aos “direitos humanos”. Em seu site oficial, constam como suas prioridades atuais “restaurar a confiança no mercado e nas instituições que o fazem funcionar” e “reestabelecer finanças públicas saudáveis como base para o crescimento econômico sustentável”.

Assim, trata-se de uma organização comprometida com os valores, os princípios e as teses neoliberais, bem como com o funcionamento desregulado do capitalismo financeirizado, tal qual convém a um “Clube dos Ricos”.

Pois bem, os governos pós-golpe desejam ardentemente ver o Brasil nele incluído. Só faltam implorar para nele ingressar. Falta, não. Estão praticamente implorando, mesmo.

Saliente-se que a adesão, se concretizada, não virá de graça. A OCDE só aceitará o Brasil após uma avaliação rigorosa de suas políticas e de suas práticas. Caso julgue necessário, a OCDE demandará as devidas correções de rumo.

Embora os EUA tenham oposto alguma resistência ao ingresso do Brasil nesse seleto clube, o governo Bolsonaro está redobrando os esforços para que o Brasil faça parte da OCDE o quanto antes.

Quais os objetivos de tudo isso?

O primeiro e óbvio objetivo é o de abrir definitiva e totalmente a economia do Brasil, conforme recomenda fortemente o receituário neoliberal.

Mas há também um segundo objetivo, bem mais perigoso. Esse objetivo tange à blindagem política e diplomática de uma opção neoliberal interna.

Com efeito, a maneira mais eficiente de blindar uma opção econômica e política contra a soberania popular é consagrá-la em compromissos internacionais.

É melhor até do que inscrevê-la na Constituição.

O Congresso Nacional pode modificar a Carta Magna por decisão de três quintos de seus membros. Mas o Congresso Nacional não pode denunciar acordos internacionais, uma vez ratificados. Essa é uma prerrogativa exclusiva do presidente da República. Além disso, retirar-se de um acordo internacional de peso é muito complicado.

Esses acordos, especialmente os de “livre” comércio, criam interesses e compromissos de reversão muito difícil, mesmo para países poderosos. Está aí o exemplo de Trump, que tenta fazer malabarismos para voltar a proteger a economia norte-americana. Está aí também o exemplo do Brexit, que está suscitando forte retaliação da União Europeia.

O quadro é muito pior para países em desenvolvimento, com menor poder de barganha. O México, por exemplo, selou seu destino quando assinou o NAFTA.

Ao fazê-lo, e ao celebrar também vários outros acordos de “livre” comércio, o México comprometeu-se definitivamente com o neoliberalismo e chutou a escada de seu próprio desenvolvimento. Quaisquer que sejam os governos eleitos naquele país, eles ficam manietados pelas cláusulas liberais desses atos internacionais. O espaço decisório interno para políticas públicas, especialmente para políticas econômicas, políticas de desenvolvimento, políticas de industrialização e políticas para a promoção da ciência e da tecnologia, fica consideravelmente reduzido.

López Obrador, embora bem-intencionado, terá muitas dificuldades para reverter a desestruturação das cadeias produtivas que o Nafta provocou no México. Hoje, o México importa até milho, base da sua alimentação, dos Estados Unidos.

De acordo com a Cepal, os índices de Gini do México ficaram estacionados nesse início de século, as taxas de pobreza aumentaram e a participação dos salários no PIB diminuiu, ao contrário do que aconteceu na maior parte dos países da região. O México, exemplo de livre-cambismo acrítico, é um fracasso econômico e social.

Deve-se ter em mente que tais acordos não se limitam a simplesmente abrir o comércio, via redução de tarifas de importação. Na realidade, eles têm uma série de cláusulas relativas a proteção de investimentos estrangeiros, propriedade intelectual, serviços, compras governamentais, regras ambientais e trabalhistas, etc., que podem comprometer a capacidade dos Estados de promoverem, a seus critérios, diversos tipos de política desenvolvimentistas.

Assim, discretamente, sem chamar atenção, a equipe econômica do governo Bolsonaro ensaia a blindagem internacional de sua opção política pelo ultraneoliberalismo. Blindagem que, como a Emenda Constitucional nº 95, limitará seriamente as opções políticas dos próximos governos.

Golpes de Estado substituem a soberania do voto popular pela vontade de maioria parlamentares circunstanciais. E uma política externa de país periférico pode substituir a soberania do Estado-Nação pelos interesses de nações hegemônicas e pelos ditames do capital internacional.

Desse modo, o grande golpe contra a democracia pode ser construído no cenário externo, pelos mecanismos aparentemente neutros e “técnicos” dos compromissos internacionais.
No Itamaraty, a resistência a esse descalabro está limitada, face ao processo de perseguição política que lá se instalou. Até listas macarthistas, com nomes de diplomatas “petistas” e “maus brasileiros”, por lá circulam impunemente. Coisa de gente sem caráter e firmeza moral.

Portanto, a opinião pública e o Congresso precisam estar atentos a esses movimentos discretos, porém potencialmente muito danosos.

É bom esquecer um pouco as bobagens pré-iluministas do chanceler templário e as cretinices patentes do clã Bolsonaro, inspiradas por diáfanos astrólogos, e começar a prestar atenção na ação discreta, aparentemente neutra e “técnica”, da equipe de Paulo Guedes, assentada em poderosos e concretos interesses.

Se não o fizermos, o Brasil poderá levar uma rasteira que o deixará em terra por muito tempo.

*Publicado em Outras Palavras

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