quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Chove em Caracas


É preciso que a memória não seja curta, ou a amnésia selectiva: os que hoje golpeiam ou apoiam o golpe contra o povo venezuelano são os mesmos que em 1973 apoiaram o golpe fascista de Pinochet.

Agostinho Lopes | AbrilAbril | opinião

Ou o Chile outra vez. É preciso que a memória não seja curta, ou a amnésia selectiva: os que hoje golpeiam ou apoiam o golpe de Estado contra o povo venezuelano são os mesmos que em 1973 apoiaram o golpe fascista de Pinochet no Chile de Allende, de Neruda e da Unidade Popular.

E não julguem alguns que podem ficar oportunisticamente, face ao rolo compressor da onda mediática golpista, sentados em cima da ponte, no dilema Revolução Bolivariana versus Império do Norte. Que é o que significa afirmar não escolher entre Maduro e Trump. Que se lembrem se poderiam não ter optado por Allende. Ou, mais lá para trás, optar pela «neutralidade» da França e Inglaterra no avanço do fascismo contra a República Espanhola. Ou, em dias próximos, dizer como alguns disseram, «Nem Dilma nem Temer, eleições!»

Há diferenças. O imperialismo norte-americano não conseguiu, até hoje, convocar as forças armadas bolivarianas para afogar em sangue e repressão o povo da Venezuela, como fez no Chile. Mas não foi por falta de tentativas, a começar pelo golpe militar contra Chávez de 20021

Mas tudo o resto é um filme bem conhecido, encenado e desenvolvido pela CIA & Cia. E é absolutamente espantosa a credibilidade ou a hipocrisia com que tanta boa gente repete chavões e refrões de letras e músicas do disco rachado de todos os golpes e subversões do imperialismo norte-americano, incluindo na história da América Latina do século XX.

Faltam alimentos, e os que choram lágrimas de crocodilo com a fome dos venezuelanos, são os mesmos que aplaudem o cerco e bloqueio económico e financeiro, a confiscação ilegal de bens e recursos financeiros da Venezuela pelo imperialismo e comparsas, com sabotagem da importação de bens de primeira necessidade pelo Estado Venezuelano. Faltam medicamentos, e os que invocam a urgência de uma intervenção humanitária, são os mesmos que nada dizem sobre o boicote da compra pela República Bolivariana, inclusive pela chantagem sobre empresas farmacêuticas, dos fármacos destinados a doentes oncológicos, diabéticos ou necessitados de diálise.

Falam de democracia e mentem. Mentem com quantos dentes têm, sempre confiantes na máxima de Goebbels de que a mentira repetida se faça verdade, sobre as muitas eleições realizadas com Chávez e Maduro, sobre o sistema eleitoral e a liberdade de imprensa na Venezuela. Mentiras sobre a última eleição presidencial, antecipada para 20 de Maio de 2018 por exigência da oposição e seguida por mais de 150 observadores internacionais, confirmando que «as eleições foram muito transparentes e conformes às normas internacionais e à legislação nacional». Mentiras quando transfiguram a subversão terrorista interna, apoiada e paga pelos EUA, em forças da democracia e da liberdade.

As dificuldades, contradições, problemas da Revolução Bolivariana, em grande medida fomentados pelo imperialismo e por forças internas que nunca se conformaram com a vitória de Chávez e da Revolução, não podem ser transformados em razões para a destruir, nem para transformar em aliados os que, de fora e de dentro, sabotam a República Bolivariana. Os interesses soberanos do povo da Venezuela exigem, pelo contrário, a defesa da sua Revolução.

Pretendem continuar a rasgar as «veias abertas» das terras de Bolívar e Sucre, de Sandino e Zapata e Pancho Villa, de Luís Carlos Prestes e Fidel, de Guevara e tantos outros combatentes pela soberania e liberdade dos seus povos.

Depois da viragem à direita na Argentina e no Chile, depois do golpe no Brasil que destituiu Dilma e impediu Lula, pela prisão, de se candidatar, abrindo portas para o golpe maior da eleição de Bolsonaro, o imperialismo achou azado o momento. Reconstituído o arco de governos da Operação Condor (agora baptizados de Grupo de Lima), o imperialismo decidiu avançar. E a toque de caixa lá vai a sucursal da Europa, a União Europeia, dirigida por Merkel, Macron e May. Nada os ensina, porque é da sua natureza imperialista. Assim foi com a Jugoslávia, o Iraque, a Líbia, a Síria e tantos outros crimes!

Lá vão, cantando e rindo, com Trump e Bolsonaro para defender a democracia na Venezuela. Na Arábia Saudita, a defesa da democracia passa pela venda de armas e visitas de amizade eterna de Trump e Merkel, de Sánchez e Macron.

E o que faz, para vergonha nossa, Portugal nessa caterva de salteadores da soberania dos povos?

Vale tudo? Vale pois, como diz, o ex-marxista-leninista-maoista, e fundamentalmente anticomunista, Vicente Jorge da Silva, «Por vezes, não há soluções quimicamente puras para ultrapassar becos sem saída» (Público, 3 de Fevereiro de 2019) e logo, o golpe de Estado, a invasão militar, o apelo à subversão das forças armadas, podem ser necessários como foram no Chile! Mesmo se o sangue jorrar do coração aberto de um povo. Mesmo se for para montar uma tenebrosa ditadura! Tudo em nome da democracia… e, naturalmente, do petróleo!

E de cambulhada com essa tropa alinhada, mas fandanga, contra a Constituição Portuguesa, contra o Direito Internacional, contra a ordem internacional da Carta da ONU, lá vão António Costa disfarçado de Durão Barroso e Augusto Santos Silva de Martins da Cruz. Lá vão, para vergonha nossa!

Se amanhã «Chover em Caracas»2 saberemos a quem pedir contas!

Notas
1. Em 13 de Abril de 2018 o jornal Brasil de Fato publicou um artigo sobre o 16.º aniversário do golpe contra o presidente Hugo Chávez, onde protagonistas da resistência pró-Chávez explicam a articulação das várias componentes do golpe (meios de informação, empresários, poder judicial, militares, confrontos de rua, manipulação de imagens) e contam como devolveram Chávez ao poder. No fim do artigo o Brasil de Fato publica o documentário A verdade não será televisionada (The Revolution Will Not Be Televised no original), dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Brian. A equipa, que estava no país para filmar um documentário sobre a Venezuela, reagiu  em directo ao golpe e produziu um extraordinário documentosobre a crua verdade dos interesses económicos, sociais e políticos por trás do golpe e como o seu insucesso apenas foi possível pela dinâmica mobilização popular em defesa das conquistas da Revolução Bolivariana. Os pretextos, as mentiras, as manipulações, os confrontos e as provocações, são em tudo semelhantes àquelas a que hoje assistimos.
2. O título do artigo remete para «Chove em Santiago», nome de código da CIA para a operação contra Salvador Allende e o governo de Unidade Popular no Chile, que culminou no golpe militar fascista, desferido em 11 de Setembro de 1973, encabeçado pelo futuro ditador Augusto Pinochet, que cobriu de sangue aquele país da América do Sul e amordaçou por décadas o movimento popular chileno, permitindo ao capitalismo yankee e indígena explorar à rédea solta o país e o seu povo, com consequências gravíssimas, que ainda hoje perduram, muito depois de tombar a ditadura. Chove em Santiago é também o nome do corajoso filme realizado em 1975, dois anos depois do golpe, por Helvio Soto (1930-2001), numa co-produção franco-búlgara que contou com o concurso de actores como Jean-Louis Trintignant, Annie Girardot, John Abgey, ou Bibi Andersson, e a música foi assegurada por Astor Piazzola. Rodado na Bulgária, onde o autor se encontrava exilado, Il pleut sur Santiago (título original) foi o primeiro filme a retratar, denunciando-o, o processo do golpe de estado chileno. Portugal, onde foi acolhido nos primeiros anos da Revolução dos Cravos, foi um dos países em que o filme teve maior êxito. Segundo a Biblioteca Nacional do Chile, o filme constituiu uma homenagem à Unidade Popular e ao jornalista Augusto Olivares, o qual escolheu morrer de armas na mão ao lado de Salvador Allende, defendendo o Palácio Presidencial de La Moneda contra os taques e soldados golpistas.

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