"A Opinião" de Fernanda
Câncio, na Manhã TSF
Calhou. Ontem de manhã, uma
menina de dois anos foi encontrada no porta-bagagens de um carro. O pai
raptou-a depois de matar a sogra à facada. Matou também a menina. Depois
suicidou-se.
De tarde, soube-se que a
ex-mulher tinha feito queixa por violência doméstica e que a PSP sinalizara o
caso, em 2017, como "de risco elevado". Mas o Ministério Público
qualificou-o como coacção, um crime não público. A queixa foi retirada e o caso
morreu.
Não é novidade: estamos sempre a
saber de histórias destas, de queixas e pedidos de ajuda à Justiça de mulheres
que acabam mortas porque não as levaram a sério. Desta vez morreu uma criança e
a sua avó.
Calhou. Calhou desde que o ano
começou já haver nove mulheres mortas em contexto de violência doméstica; nove
mulheres e uma menina.
E calhou ser o dia em que o órgão
que superintende a judicatura reuniu para decidir sobre a conclusão do processo
disciplinar a dois juízes que, em 2017, assinaram um acórdão sobre um caso de
violência doméstica no qual desculpabilizavam o sequestro e a agressão, com uma
moca de pregos, de uma mulher, pelo ex-marido e um homem com quem mantivera uma
relação extra-conjugal.
O acórdão citava a Bíblia e o
facto de nesta a adúltera ser punida com a morte; as sociedades em que as
adúlteras são lapidadas; o Código Penal de 1886 e a norma, revogada em 1975,
que previa só seis meses fora da comarca para o homem que matasse a mulher
adúltera.
Ia ao ponto de culpar a vítima do
que lhe sucedeu e de a insultar: "Foi a deslealdade e a imoralidade sexual
da assistente que fez o arguido X [o ex marido] cair em profunda depressão e
foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou a
agressão."
Após o acórdão ser conhecido,
soube-se que não era a primeira vez que o juiz relator, Joaquim Neto de Moura,
usava, em decisões referentes a violência sobre mulheres, este tipo de
argumentação.
O processo que lhe foi movido
pelo órgão disciplinar dos juízes, porém, só teve em consideração o acórdão de
2017, não a reincidência. Mesmo assim, numa decisão inédita - nunca um juiz
fora antes sancionado por algo escrito numa sentença -, aplicaram-lhe a pena de
advertência.
É a pena mais leve do cardápio.
Pouco para alguém que renitentemente usou o seu poder de juiz para humilhar,
insultar e vitimizar vítimas, de forma claramente sexista e, portanto,
discriminatória.
Pouco para alguém que, como
escreveu o presidente do Supremo Tribunal e presidente do Conselho na sua
declaração de voto, usou "expressões que ultrapassam o limite da
ofensa"; "atentatórias dos princípios constitucionais e
supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas."
É pouco. Porque Neto de Moura vai
continuar, apesar deste comportamento intolerável, a ter o poder do qual tão
claramente abusou. Porque um juiz que se crê acima da lei e da Constituição não
é um juiz; é um déspota de toga.
Porque um juiz que acha que as mulheres
são menos que os homens, que os homens têm o direito de as considerar
propriedade, de as castigar por quererem ser livres e de ainda as culpar por
isso não devia ser juiz.
Mas, neste mês e pouco de nove
mulheres e uma menina mortas, que esta advertência advirta todos os que no
sistema de justiça pensam e agem como ele: pode ser que o vosso tempo esteja
finalmente a acabar.
*a autora não escreve segundo o
Acordo Ortográfico de 1990
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