sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Portugal | Aos déspotas de toga


"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF

Calhou. Ontem de manhã, uma menina de dois anos foi encontrada no porta-bagagens de um carro. O pai raptou-a depois de matar a sogra à facada. Matou também a menina. Depois suicidou-se.

De tarde, soube-se que a ex-mulher tinha feito queixa por violência doméstica e que a PSP sinalizara o caso, em 2017, como "de risco elevado". Mas o Ministério Público qualificou-o como coacção, um crime não público. A queixa foi retirada e o caso morreu.

Não é novidade: estamos sempre a saber de histórias destas, de queixas e pedidos de ajuda à Justiça de mulheres que acabam mortas porque não as levaram a sério. Desta vez morreu uma criança e a sua avó.

Calhou. Calhou desde que o ano começou já haver nove mulheres mortas em contexto de violência doméstica; nove mulheres e uma menina.

E calhou ser o dia em que o órgão que superintende a judicatura reuniu para decidir sobre a conclusão do processo disciplinar a dois juízes que, em 2017, assinaram um acórdão sobre um caso de violência doméstica no qual desculpabilizavam o sequestro e a agressão, com uma moca de pregos, de uma mulher, pelo ex-marido e um homem com quem mantivera uma relação extra-conjugal.

O acórdão citava a Bíblia e o facto de nesta a adúltera ser punida com a morte; as sociedades em que as adúlteras são lapidadas; o Código Penal de 1886 e a norma, revogada em 1975, que previa só seis meses fora da comarca para o homem que matasse a mulher adúltera.

Ia ao ponto de culpar a vítima do que lhe sucedeu e de a insultar: "Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X [o ex marido] cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou a agressão."

Após o acórdão ser conhecido, soube-se que não era a primeira vez que o juiz relator, Joaquim Neto de Moura, usava, em decisões referentes a violência sobre mulheres, este tipo de argumentação.

O processo que lhe foi movido pelo órgão disciplinar dos juízes, porém, só teve em consideração o acórdão de 2017, não a reincidência. Mesmo assim, numa decisão inédita - nunca um juiz fora antes sancionado por algo escrito numa sentença -, aplicaram-lhe a pena de advertência.

É a pena mais leve do cardápio. Pouco para alguém que renitentemente usou o seu poder de juiz para humilhar, insultar e vitimizar vítimas, de forma claramente sexista e, portanto, discriminatória.

Pouco para alguém que, como escreveu o presidente do Supremo Tribunal e presidente do Conselho na sua declaração de voto, usou "expressões que ultrapassam o limite da ofensa"; "atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas."

É pouco. Porque Neto de Moura vai continuar, apesar deste comportamento intolerável, a ter o poder do qual tão claramente abusou. Porque um juiz que se crê acima da lei e da Constituição não é um juiz; é um déspota de toga.

Porque um juiz que acha que as mulheres são menos que os homens, que os homens têm o direito de as considerar propriedade, de as castigar por quererem ser livres e de ainda as culpar por isso não devia ser juiz.

Mas, neste mês e pouco de nove mulheres e uma menina mortas, que esta advertência advirta todos os que no sistema de justiça pensam e agem como ele: pode ser que o vosso tempo esteja finalmente a acabar.

*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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