Um opositor ácido de Maduro acusa
os EUA: ações na fronteira visam provocar conflito, que envolveria Colômbia e
Brasil. Mas o chavismo e o país estão em crise: é hora de um referendo popular
sobre futuro do governo e do Legislativo
Edgardo Lander, entrevistado por Amy
Goodman, no Democracy Now |
Tradução: Felipe Calabrez| em Outras Palavras
Na Venezuela, o impasse entre o
presidente Nicolás Maduro e o líder da oposição e autoproclamado presidente
Juan Guaidó não parou de crescer. Guaidó alega estar se preparando para
entregar ajuda humanitária da fronteira colombiana no sábado. Maduro rejeitou o
plano, dizendo que o esforço é parte de uma tentativa mais ampla de derrubar
seu regime. Isso acontece quando o enviado especial de Trump à Venezuela — o
falcão de direita, Elliott Abrams — lidera uma delegação dos EUA que viajou em
avião militar até a fronteira colombiana, supostamente para ajudar a entregar a
ajuda.
As Nações Unidas, a Cruz Vermelha
e outras organizações de ajuda humanitária recusaram-se
a trabalhar com os EUA para entregar essa ajuda à Venezuela, que,
segundo eles, é politicamente motivada. Falamos com o sociólogo venezuelano
Edgardo Lander, membro da Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição. “Isso
certamente não é ajuda humanitária, e não é orientada com nenhum objetivo
humanitário”, diz Lander. “Este é claramente um golpe realizado pelo governo
dos Estados Unidos com seus aliados, com o Grupo Lima e a extrema direita na
Venezuela.”
A situação na Venezuela neste
momento é bastante tensa. O dia 23 — isto é, sábado — quando a suposta ajuda
humanitária deve entrar no país, de acordo com o grupo de Guaidó, não importa o
que seja, representa uma ameaça muito séria à Venezuela em termos de possibilidades
de violência. Isto certamente não é uma ajuda humanitária; é uma intervenção
“humanitária”.
Se o governo dos Estados Unidos
estivesse realmente interessado na democracia e nos direitos humanos, a
primeira coisa a fazer seria interromper parar o bloqueio, que afeta
enormemente o povo venezuelano e produz extrema dificuldade para o governo
venezuelano obter acesso aos mercados externos. Seu comércio é extremamente
difícil porque todo o sistema financeiro global é, de uma forma ou de outra, controlado
pelos Estados Unidos. E esse bloqueio limita as possibilidades de acesso a
parceiros comerciais.
Por outro lado, enormes quantias
de dinheiro, bilhões de dólares em ativos venezuelanos, foram confiscados pelo
governo dos EUA. E é de um cinismo absoluto que o governo dos EUA afirme estar
preocupado com a situação humanitária dos venezuelanos, oferecendo alguns
milhões de dólares, quando bilhões de dólares estão sendo mantidos longe da
capacidade de ação do governo venezuelano para responder à profunda crise que a
população enfrenta.
Existe essa ameaça de que esta
“ajuda” entrará na Venezuela a qualquer custo. Os falcões e os neoconservadores
que acompanham Trump nessas políticas são bem conhecidos. São pessoas como [o
“enviado especial da Casa Branca] Elliott Abrams ou [o conselheiro de Segurança
Nacional] John Bolton, que tiveram trajetórias conhecidas de intervenções
militares em diferentes lugares do mundo. E obviamente não há preocupação
alguma pela vida do povo venezuelano. A situação é tão tensa que o dia 23 pode
ser a faísca que inicia uma situação de guerra violenta e até civil no país.
Então, a absoluta necessidade de encontrar algum tipo de solução, algum tipo de
negociação, que pare com essa escalada de violência, é crítica. E isso tem que
ser feito em breve, porque o sábado é um dia crucial.
Você pode falar sobre o papel dos
venezuelanos em negociar uma solução? A possibilidade, os apelos para que o
Papa se envolva, ou o presidente do México, López Obrador. E o que dizer das
próprias pessoas na Venezuela? E seu grupo: o que a plataforma do Cidadão está
pedindo?
A Plataforma do Cidadão em Defesa
da Constituição está pedindo um referendo — algo que está previsto na
Constituição venezuelana quando questões nacionais de importância crítica têm
que ser enfrentadas. Enfrentamos uma profunda crise constitucional. Temos uma
luta entre a Assembleia Nacional, por um lado, e o Executivo, por outro lado.
Um não reconhece o outro como legítimo. Como consequência, surge a visão
segundo a qual a política é um confronto amigo-inimigo, cujo propósito é
destruir o inimigo, esmagá-lo completamente. Não há vontade de nenhum lado hoje
para entrar em algum tipo de acordo que permita ao povo venezuelano decidir o
que quer para seu futuro.
A Plataforma do Cidadão em Defesa
da Constituição, assim como outros grupos — principalmente da esquerda, mas não
apenas — tem argumentado que precisamos desse referendo consultivo para que o
povo venezuelano decida se quer ter novas autoridades gerais no país — isto é,
todos os poderes nacionais, incluindo o Executivo e a Assembléia Nacional. Mas
isso requer um acordo, porque precisamos de um novo Conselho Nacional
Eleitoral. O atual Conselho Eleitoral é totalmente controlado pelo governo e
não é confiável para a maioria da população venezuelana. Assim, precisaríamos,
como primeiro passo, de algum acordo básico, um Conselho Eleitoral Nacional
consensual, e este chamado para um referendo em que o povo venezuelano possa
dar sua própria opinião e decidir se quer manter as autoridades presentes ou se
quer renovar completamente o sistema político — não a estrutura do sistema, mas
quem é o presidente hoje, o que é a Assembléia.
No momento, a Assembléia Nacional
está clamando a necessidade de eleições presidenciais e, por outro lado, o
presidente Maduro está clamando a necessidade de novas eleições parlamentares.
Portanto, nenhum dos lados está disposto a chegar a um acordo. É claro que
precisaríamos de algum tipo de acompanhamento de alguns atores internacionais.
E como você mencionou, a possibilidade de ter os presidentes do Uruguai, do
México, talvez o secretário-geral das Nações Unidas e o Papa, seriam
extremamente críticos em termos da possibilidade de alcançar tal acordo. Então,
isso requer duas coisas: de um lado, pressão e envolvimento das pessoas que não
estão interessadas em violência, mas tentando evitar uma guerra civil — essa
tem sido a declaração do Uruguai, do México, do Papa. Por outro lado, a pressão
do povo venezuelano para ter esse acordo mínimo para um novo Conselho Eleitoral
e o referendo que permitiria às pessoas decidirem.
Há razões pelas quais há um
enorme, gigantesco descontentamento na Venezuela em relação ao governo de
Maduro. As crises que o povo venezuelano enfrenta são, em grande parte,
responsabilidade desse governo, extremamente corrupto, ineficiente e cada vez
mais repressivo. Mas isso de forma alguma justifica uma intervenção militar
norte-americana ou essa tentativa de estrangular a economia venezuelana — o
que, é claro, prejudica muito mais o povo do que o governo venezuelano.
Nessa situação, em que a maioria
das pessoas na Venezuela rejeita o governo de Maduro e, por outro lado, uma
grande maioria também rejeita a intervenção dos EUA, precisamos de uma
negociação que abra o caminho para os venezuelanos decidirem por si mesmos. E
esta é a opção de ambas as negociações com algum apoio internacional, por um
lado, e este referendo que estamos pedindo, da plataforma e de outros grupos na
Venezuela, que acham que a maior ameaça para os venezuelanos hoje é a ameaça
dessa escalada de violência, a possibilidade de uma guerra civil e a
possibilidade, constantemente anunciada, de uma intervenção militar do governo
dos Estados Unidos.
Em seu discurso na última
segunda-feira, o presidente Trump chamou Maduro de “fantoche de Cuba”. […] Um
novo livro lançado esta semana pelo ex-diretor do FBI Andrew McCabe revela que
Trump discutiu em particular a possibilidade de entrar em guerra com a
Venezuela em 2017. McCabe escreve: “Então o presidente falou sobre a Venezuela.
Esse é o país com o qual deveríamos entrar em guerra, ele disse. Eles têm todo
esse petróleo e estão bem na nossa porta dos fundos”.
Você poderia dizer o que
exatamente os EUA estão fazendo, quem é Guaidó, e também falar um pouco da
questão da ajuda humanitária, questões que preocupam a todos? Há um avião que
está voando de um lado para o outro, ou vários aviões, de uma empresa na
Carolina do Norte — aparentemente, cerca de 40 vôos. O governo venezuelano
encontrou armas escondidas, talvez de um desses vôos. É uma empresa que
trabalhou anteriormente com a CIA. O fato de que as Nações Unidas e a Cruz
Vermelha disseram que não vão trabalhar nesta chamada ajuda humanitária, porque
é politicamente motivada, e que não é ajuda humanitária. O que você acha que
vai acontecer na fronteira, com Elliott Abrams sendo transportado por avião
militar com sua delegação à fronteira Colômbia-Venezuela? E o significado do
fechamento da fronteira Brasil-Venezuela e o fato de Maduro considerar fechar
também a fronteira Colômbia-Venezuela?
Bem, em primeiro lugar, gostaria
de insistir no fato de que isso certamente não é ajuda humanitária, e não é
orientado com nenhum objetivo humanitário. Este é claramente um golpe realizado
pelo governo dos Estados Unidos com seus aliados, com o Grupo Lima e a extrema
direita na Venezuela. A oposição de direita, na Venezuela, as pessoas que
controlam o Parlamento e os partidos da oposição, se enfraqueceram nos últimos
anos e não conseguiram chegar a um único acordo político em relação a formas de
enfrentar o governo de Maduro. Mas agora, é óbvio que essa extrema-direita está
em estreita coordenação com o governo dos Estados Unidos há algum tempo. E esse
roteiro que vem sendo seguido desde que Guaidó se autoproclamou presidente é um
roteiro basicamente dos EUA. Esse script está em andamento agora.
Não há preocupação alguma com a
situação da população venezuelana, porque, como eu disse anteriormente, se você
tira bilhões da capacidade do governo para responder às necessidades de
remédios e alimentos, por um lado, e oferece uns poucos milhões de dólares em
alimentos e remédios na fronteira colombiana, é claro que o objetivo não é
responder à situação da população venezuelana, mas criar um conflito na
fronteira. Como as pessoas têm sido chamadas por Guaidó e seu pessoal, para se
concentrarem na fronteira, e um concerto foi organizado no lado colombiano do
governo, isso pode levar a um confronto entre os dois lados. O governo
venezuelano anunciou que poderia fechar a fronteira. Ainda não foi decidido.
Mas a possibilidade do fechamento da fronteira significa que, como agora – há
presença militar venezuelana neste lado da fronteira, e obviamente há todo tipo
de grupos paramilitares, representantes da CIA, membros das forças armadas da
Colômbia do outro lado. E qualquer coisa poderia desencadear alguma violência
que pudesse levar ao início de um confronto. Eu não acho que o sábado será o
Dia D, em que um grande confronto começará, poderia ser a faísca que levaria ao
aumento da violência e aos riscos de uma guerra civil.
Então, temos que enfrentar essa
suposta ajuda humanitária, que não é ajuda humanitária. É apenas uma
intervenção direta para ter uma mudança de regime, o que tem sido o objetivo do
governo Trump desde o início. E sabemos o que a mudança de regime significou em
outros lugares. Conhecemos a experiência da mudança de regime na Líbia.
Conhecemos a experiência da mudança de regime no Iraque. Sabemos o que as
pessoas na Síria estão enfrentando hoje como consequência dessas tentativas
imperiais de mudança de regime. Portanto, não há possibilidade de que essa
chamada ajuda humanitária contribua positivamente para a situação venezuelana.
Isso só vai piorar, porque está aprofundando a crise em termos de remédios e
comida para o povo venezuelano, por um lado; e está aumentando a probabilidade
de uma escalada de violência e abrindo as portas para a possibilidade de uma
guerra civil.
Assim, há necessidade de algum
tipo de negociação, para pôr fim a esta escalada. É preciso responsabilizar,
por um lado, o governo Maduro — por ter, ao longo destes seis anos de governo,
criado um colapso tão incrível da economia venezuelana — hoje, a produção é
metade do que era quando Maduro chegou ao poder. As sanções dos EUA contra a
Venezuela, as sanções de Trump contra a Venezuela, começaram há um ano e meio,
por volta de meados de 2017. Mas a crise veio muito antes. As sanções dos EUA
aprofundaram a crise, mas não são a principal causa da crise. A principal causa
da crise é inépcia e corrupção do governo de Maduro.
Assim, nós na Venezuela nos
defrontamos com esses dois males, com esses dois inimigos confrontantes. No
meio, está o povo venezuelano, obrigado a pagar pela inaptidão e violência dos
dois lados em
disputa Precisamos ter algum tipo de pressão sobre o governo
dos EUA para impedir esse nível de intervenção, essa ameaça de intervenção
militar. E nós temos que pedir ao governo de Maduro que esteja disposto a abrir
uma negociação, porque há muitas razões pelas quais as pessoas na Venezuela
realmente não confiam em Maduro quando ele afirma sua disposição de negociar —
já que sempre diz a mesma coisa. Quando as negociações ocorrearam, ele não se
mostrou disposto a ceder nada.
Na imagem: Aviões militares
norte-americanos estacionados na Colômbia, diante da fronteira venezuelana. Cinco
mil soldados de forças especiais dos EUA já foram deslocados para lá.
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