domingo, 31 de março de 2019

Moçambique | O drama dos esquecidos


Zambézia, Tete e Manica são outras vítimas do ciclone “Idai”. Há surtos de cólera e paludismo

As atenções do mundo concentram-se na cidade da Beira e nas vilas de Nhamatanda e Buzi, na província de Sofala, mas a pior crise humanitária provocada pela passagem do ciclone “Idai” pode estar a ocorrer nas províncias circundantes de Tete, Manica e Zambézia. Além de diarreias e casos de cólera, há registo de surtos de febres, tosse convulsa e de paludismo. As condições de acolhimento das vítimas da tempestade podem não evitar o surgimento de outras doenças como a pneumonia e a tuberculose.

“O ciclone ‘Idai’ não passou apenas pela Beira. Devastou também as províncias da Zambézia, Manica e Tete. Na Zambézia, tive a oportunidade de visitar alguns bairros da capital, Quelimane, e centros de acolhimento no distrito de Nicoadala. A situação é muito crítica”, diz ao Expresso Arão Valoi, da WaterAid.

“As vítimas do ciclone recebem apenas um copo de arroz e outro de feijão, por família — independentemente do agregado — e um bidão de 20 litros de óleo para o total de 2113 pessoas acolhidas no centro de Namitangurine”, salienta o responsável pela comunicação desta ONG inglesa. Valoi insiste para que Governo moçambicano, sociedade civil, organizações humanitárias e o auxílio internacional não concentrem esforços apenas na cidade da Beira e na província de Sofala, “porque há zonas piores, esquecidas”.



Na periferia da cidade de Quelimane não houve até agora qualquer intervenção efetiva para apoiar as populações cujas casas estão submersas pelas águas das chuvas. Nos bairros de Manhewa e Janeiro há situações que precisam de intervenção urgente, sob pena de “eclosão de doenças de origem hídrica, tendo em conta que o fecalismo a céu aberto — os sanitários foram engolidos pela água — tornou-se prática frequente”, acrescenta Arão Valoi.

Situação idêntica é relatada por Inácio Armando, repórter voluntário da Rádio Comunitária de Nhamatanda, na província de Sofala. “A alimentação e a água distribuídas não chegam para todos”. E as pessoas consomem água imprópria, dos poços. Água que pode estar misturada com fezes e outras impurezas, dado que as latrinas desabaram e toda a sujidade foi arrastada para a água”. Uma situação que está na origem do surto de diarreias e de casos de cólera que eclodiu nos centros de acolhimento de Sofala, Manica, Tete e Zambézia. “No centro de Metochira (Nhamatanda, Sofala) o problema é muito sério”, disse. E o cenário poderá ser bem pior em zonas como Nhampoca, onde só se chega de helicóptero.

As condições de habitação e de higiene são outros dos maiores problemas dos centros de acolhimento da região centro de Moçambique.

VINTE FAMÍLIAS NUMA TENDA

Na Zambézia, por exemplo, são acomodadas, por cada tenda, dezenas de famílias, cada um com seus hábitos. As poucas latrinas ali montadas tornam-se insuficientes para satisfazer as necessidades fisiológicas dos refugiados. Esta é a situação que se vive nos centros de acolhimento de Namitangurine (2113 pessoas de 470 famílias) e Dugudiua (822 pessoas de 203 famílias) que albergam quase 3000 pessoas em apenas 71 tendas. Ou seja, cada tenda é partilhada por entre 10 e 20 famílias.

Regina Afonso, Angelina Pedro e Emília Malelanane relatam ao Expresso por telefone a ocorrência de surtos de doenças várias nos centros onde estão albergadas, aumentando o risco de contágio de pneumonia, cólera e até de tuberculose. “Os sanitários improvisados são mal usados. Há pessoas que defecam e urinam fora e as crianças, principalmente, podem pisar e contrair várias doenças”, diz Regina.

Marcos Amaral, dirigente do Centro de Coordenação de ONG Para a Higiene, Água e Saneamento (CECOHAS), corrobora as descrições feitas e salienta que falta apoio efetivo a muita gente. Mais: as latrinas das escolas que acolhem vítimas do ciclone “estão cheias, o que cria outro problema de saúde pública”. No posto de saúde instalado no local já foram diagnosticados mais de 250 casos de tosse convulsa e perto de 350 casos de paludismo, anunciaram esta quarta-feira as autoridades provinciais. Um idoso que partilhava a tenda com nove famílias — cerca de 30 pessoas — foi transferido para um hospital, mas acabou por morrer vítima de pneumonia.

DURO REGRESSO A CASA

Nas regiões de Buzi e Nhamatanda, as pessoas começaram a regressar às suas casas, não obstante a ameaça de doenças e a falta de condições. Américo Brondalo, residente em Buzi, depois de mais de uma semana refugiado da água regressou à sua residência. O que encontrou foi uma casa parcialmente destruída, mas em condições de ser habitada mediante um retoque aqui e acolá. Nos últimos dois dias, quarta e quinta-feira, Américo dedicou-se a remover a lama e a limpar os destroços para reiniciar a vida.

“A situação está caótica. Neste momento estamos a arrumar a casa, a tirar a lama. É uma situação bastante complicada”, explicou por telefone ao Expresso com uma voz bastante cansada, própria de uma pessoa desesperada com o que está a viver.

Grande parte das vítimas de Buzi foram evacuadas para os centros de acolhimento da Beira e de Guara-Guara, a 30 quilómetros da vila sede de Buzi.

O ciclone tropical “Idai” passou pelo centro do Moçambique há quase duas semanas, deixando um rasto de destruição e cerca de 500 mortos, mais de três dezenas terão sido enterradas em valas comuns no posto administrativo de Dombe, no distrito de Sussungenga, na província de Manica. Só entre quarta e a sexta-feira subiram de 5 para 271 os casos de cólera confirmados. Até ao fecho desta edição as autoridades confirmaram cinco mortes devido à doença.

Lázaro Mabunda | Expresso | Foto: Mike Hutchings/Reuters

Sem comentários:

Mais lidas da semana