quarta-feira, 24 de abril de 2019

Brasil | A “inteligência caolha” da família Bolsonaro


Provocações de Carlos Bolsonaro revelam o lado reacionário e violento dos regimes de exceção. Poderiam o poeta Rimbaud e o filósofo Agamben explicar os devaneios do filho Número 2?

Maria Luiza Franco Busse | Outras Palavras | Imagem: Hieronymus Bosch, O Conjurador (1502)

Mais um acontecimento incrível, fantástico, extraordinário, veio da parte de Carlos Bolsonaro. O vereador e filho de Número 02 da família que está no poder apresentou no twitter a questão filosófica mais cara e permanente da existência: “Quem sou eu”, seguida do que originou a indagação: “Neste monte de gente estrelada?”.

“Quem sou eu neste monte de gente estrelada?” foi o desabafo em função de ter sido enquadrado depois de postar vídeo no canal de Youtube do pai em que militares foram duramente ofendidos e criticados pelo mentor que vive nos Estados Unidos.



O vídeo foi publicado no sábado, dia 20 de abril, deletado às 18h30 do domingo, dia 21, e, por volta das 23h, Carlos declarou que iniciaria nova fase: “longe de todos que de perto nada fazem a não ser para si mesmos”. Senão, vejamos, o que seria uma manifestação edificante e de grande contribuição para a relação que privilegia a compreensão, a troca, o debate e o afeto de Um com o Outro. Seria, mas não é o caso em que se tratando do emissor. Entretanto é, se pensamos na famosa e aparentemente enigmática frase de Rimbaud em carta enviada ao amigo e também poeta Paul Démeny, datada de 1871 e que completará 148 anos no próximo dia 15 de maio:­ “Pois EU é um outro”, escreveu Rimbaud.

Não há nada de enigmático no EU é um outro. Rimbaud forneceu a melhor deixa de como se inclui o Outro no eu de cada um, o que permite que o EU se constitua fora do padrão instituído pelo capitalismo, ou seja, o da inclusão excludente que está no cerne de tudo o que representa o Número 02. “Se os velhos imbecis não tivessem encontrado apenas o significado falso de EU”, continua Rimbaud, “não teríamos que limpar esses milhões de esqueletos que, desde um tempo infinito, acumularam os produtos de sua inteligência caolha, clamando que eram os autores!”.

Sem romantismo, bem ao gosto do poeta, Rimbaud nos leva a Karl Polanyi e Giorgio Agamben, para uma análise da constituição política liberal-democrata das sociedades ocidentais desde a Revolução Francesa até o presente recente e a implicação desse modelo na emergência de governos autoritários e fascistas.

Ao longo da História liberal, o conceito de “democracia protegida”, retirado de Agamben, está assegurado em artigos na forma jurídica das Constituições. E foram, e ainda são, esses dispositivos constitucionais em nome do “estado de necessidade interna” para a salvaguarda da segurança e da ordem pública que vêm servindo de suporte de legalidade aos estados de exceção, ao fascismo e ao capitalismo que no seu estágio financeiro prescinde cada vez mais da democracia que inclui o povo como cidadão de direitos e oportunidades iguais.

A democracia do capital, agora financeiro, protegida pelos artigos constitucionais, faz emergir por dentro das instituições o mais reacionário, violento e atrasado lado do liberalismo que são o fascismo e o nazismo. Esses são sentidos que nascem e dormem no berço do capitalismo e despertam nas crises do Estado liberal.

Quando as tentativas de êxito do mercado autorregulável esbarram nas suas irremediáveis contradições internas, acirrando-se ao paroxismo, o fascismo se toma de organizador da ordem em defesa da propriedade privada e do extermínio da oposição das esquerdas, dos trabalhadores como classe e de seus representantes formais e informais.

Ao contrário do que se pensa o fascismo não depende das grandes massas. O que faz a força do fascismo é o acolhimento e a recepção conivente por parte dos que ocupam postos institucionais de relevância. Foi assim com Mussolini, então chefe de um pequeno agrupamento, chamado pelo rei Vitor Emanuel para ser primeiro-ministro da Itália. O mesmo se deu na Espanha em 1923, quando o general Primo de Rivera, sem nenhuma base popular, instaurou a ditadura fascista com o beneplácito do rei Afonso XIII.

Na Alemanha de 1932, Hitler, derrotado nas urnas, é nomeado chanceler da República de Weimar pelo presidente Hindenburg, atendendo a pedido declarado em carta pública assinada por industriais e banqueiros, os mais altos representantes da coligação industrial-financeira do país. O aristocrata militar Hindenbug classificou o ato de “a nova força na velha grandeza”. Nos 12 anos em que governou a Alemanha, Hitler nunca se ocupou em revogar a Constituição de República alemã de Weimar porque o artigo 48 lhe garantia todos os mandos, assim estabelecendo:

“Se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais estabelecidos nos artigos 114, 115,117,118,123,124 e 153″.

A partir do que é possível chamar de gênese da política de revogação da inclusão de direitos e bem estar do povo pobre e trabalhador como categoria e classe de representação de si e para si mesmo, o texto faz um recorte na violência material e simbólica que atinge o Brasil desde o golpe de 2016 que destituiu pela via da democracia protegida do liberal-capitalismo financeiro a presidente Dilma Rousseff, eleita pelo voto direto de 54 milhões de brasileiros.

Desde então, na política, na ética e na estética, o Brasil vem praticando ações fascistas. Pelas mãos do Judiciário, a política vira polícia, a ética é golpeada e a estética se degenera.

O fascismo não ama o amor e odeia a diferença. Só admite o seu igual. Também não tem local e data. Está em toda parte. Seu nome é legião, como ensinou Roland Barthes. Tem por hábito atrair os chamados cidadãos e cidadãs de boa vontade e princípios virtuosos que salivam de prazer ao assistir prisões e condenações arbitrárias, tudo em nome do combate à corrupção que de tão intima nas suas bocas cheias de cuspe moralista tem os erres suprimidos na fala ágil que passa a dizer ‘co’pção’.

Agamben, Polany e Rimbaud não conviveram pessoalmente. São de momentos diferentes, mas são observadores tocados pela mesma longa época que ainda é a época do Capital. Nessa estrada, cada EU de si foi constituído na forma íntegra de relação com o Outro. Com esse EU, que é um outro, contribuíram para o entendimento de que a democracia protetora dos direitos exclusivos do mercado autorregulável e da globalização imperialista e neocolonial é o fator de risco da sobrevivência do povo pobre e trabalhador.

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