Chamar “criminoso” a um cidadão
que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza
de Sérgio Moro.
Manuel Carvalho | Público | opinião
É, no mínimo, um desplante. E no
máximo um desplante no limiar do agravo diplomático que um ministro da Justiça
estrangeiro venha até nós chamar “criminoso” a um ex-primeiro ministro que nem
sequer foi condenado em primeira instância.
Que José Sócrates seja um espinho
cravado na ética republicana, que acumule um pecúlio
de suspeitas capazes de legitimar o estatuto de político que todos
amam odiar, que se tenha transformado no ícone maior dos vícios do regime, é
uma coisa; que seja apelidado de “criminoso” na praça pública sem que a sua
sentença tenha transitado em julgado (sem que se saiba até se vai haver
julgamento), é outra coisa completamente diferente. Caso o juiz Sérgio Moro
tenha esquecido, num Estado de direito existe a presunção de inocência. A menos
que…
A menos que Sérgio Moro tenha
definitivamente despido a toga de juiz para se vestir com a pele de justiceiro,
uma suspeita que a forma como geriu alguns processos da Operação Lava Jato legitima
junto de muitos observadores.
Porque, é óbvio, um juiz tem o
dever de ser minucioso na atribuição de estatutos a terceiros. Tem de conservar
a prudência e o recato sobre processos em investigação, principalmente quando
está num país estrangeiro. Tem de ser capaz de manter a elevação do seu cargo e
da sua responsabilidade e saber resistir às
acusações como as que José Sócrates, na sua delirante visão do mundo, lhe
dirigiu. Tem, finalmente, de respeitar a independência da Justiça nos
países que visita, abdicando de condenar sumariamente pessoas que nem sequer
começaram a ser julgadas.
Sérgio Moro tem toda a
legitimidade em defender as suas ideias sobre as virtudes do sistema penal
brasileiro sobre o português, incluindo os méritos da delação premiada ou essa
acumulação de funções que concedem ao juiz de instrução a responsabilidade de
ser também o juiz que preside aos julgamentos dos suspeitos. Pela dignidade do
seu cargo e pelo prestígio que acumulou antes de acelerar o julgamento de Lula
para impedir a sua recandidatura, antes de produzir uma condenação que muitos
observadores internacionais consideram
ser forçada face à fragilidade das provas, antes de aceitar ser ministro do
mais polémico presidente do Brasil das últimas décadas, Moro seria sempre
bem-vindo a Portugal para fazer a apologia das suas ideias de justiça. O
que disse sobre Sócrates foi muito para lá do tolerável e tornou-o uma persona
non grata.
Estranha-se por isso a ruidosa
teia de silêncio que se abateu sobre as suas lamentáveis acusações a José
Sócrates. Não haver um juiz que lhe lembre o óbvio, um jurista que lhe aponte o
atentado ou um governante que lhe denuncie o abuso é um triste sinal. Ninguém
se quer colar a José Sócrates porque Sócrates é um activo tóxico, bem se sabe.
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