quarta-feira, 22 de maio de 2019

A judicialização da política em Cabo Verde


Gil Évora | Expresso das Ilhar | opinião

O maior partido da oposição, através da sua presidente, Janira Hopffer Almada, e numa lógica sem precedentes, tem procurado que eventuais conflitos que relevam de decisões políticas, em vez de serem dirimidos nos espaços da política (Parlamento por exemplo) ou no limite, pelo sufrágio directo, passem a ser resolvidos pelos tribunais, expondo claramente o seu Partido à acusação pública de estar a judicializar a política em Cabo Verde.

Nunca neste Cabo Verde democrático, qualquer outro partido apresentara, tantas queixas contra medidas de natureza legislativa tomadas ou pelo governo ou pelo parlamento. Janira Almada, porventura na falta de argumentos políticos, lançou agora esta moda nefasta, ao propor que sejam os tribunais a ajuizar sobre o mérito de medidas que vão sendo tomadas, o que nos parece claramente enquadrar-se na lógica de judicialização da política em Cabo Verde. A verdade é que passados quase 30 anos sobre a instalação da democracia, há gente que ainda não percebeu que a independência e a separação de poderes em Cabo Verde foi e é condição basilar do estado de direito e, como já dizia alguém, “ à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Não parece no entanto ser este o entendimento da líder do PAICV tal a frequência com que tem-se socorrido dos tribunais (SOFA, Mercado do Côco e agora Banca Furada) facto que, ao mesmo tempo banaliza o acto judicial e empobrece a contribuição de um partido do arco da governação que não merecia estar, por dá cá aquela palha, nas secretarias dos tribunais a queixar-se de qualquer coisa ou de alguém, permanentemente.



Procurar as razões para o insucesso da barragem de banca furada nos tribunais é das decisões das mais estapafúrdias tomadas pela presidente do PAICV e com este acto revela não estar à altura de politicamente debater esta questão que é essencialmente política e cuja decisão havia sido tomada pelo governo a que pertencia. Procura assim refúgio e conforto em supostos processos judiciais que já se sabe à partida vão dar em nada. 

Estamos perante a utilização de truques e argumentos confusos para se fazer a oposição, quando na verdade existe um campo vasto para se fazer a oposição política ao actual governo, mas neste ritmo a sociedade civil vai confirmando que está patente a inexistência de uma oposição com argumentos políticos para enfrentar o actual governo. O PAICV sabe claramente fazer melhor e responder com mais firmeza aos questionamentos da sociedade civil cabo-verdiana, teve sempre quadros qualificados, hoje muitos deles afastados por esta presidência e decididamente não se pode querer uma oposição que por nada vocifera estar contra quase tudo, sem colocar para o debate alternativas para a avaliação dos cabo-verdianos.

Banca Furada: ataque ao Governo de Ulisses ou acerto de contas com JMN?

Mas interessa saber quais são na verdade as reais intenções de Janira com esta prática. Será que pretende mesmo atacar o governo de Ulisses Correia e Silva como vem fazendo nem sempre de forma assertiva ou, o seu objetivo é continuar a mostrar a sua oposição a certos actos tomados pelo governo de José Maria Neves a que ela também pertenceu. Porque numa ínfima hipótese de condenação, a actual líder não deixaria de ter também responsabilidades políticas na decisão tomada em relação à referida barragem e, a ter pernas para andar, este parece ser um processo em que a queixosa corre sérios riscos de se transformar em testemunha ou mesmo arguida. Mas para já, o mais importante para JHA parece ser barrar o caminho de JMN à Presidência da Republica custe o que custar e, como diria uma actual deputada tambarina por Santiago Sul “já está na hora deste PAICV se libertar das amarras de JMN!”.

Contudo estas posições de JHA não podem nem devem surpreender ninguém. Ainda no início do mandato, a actual líder já dava mostras de uma musculação exacerbada, com muita ansiedade como se os governos não fossem eleitos para toda a legislatura. Em verdade não é de hoje que a presidente do PAICV, quer pelas declarações públicas, quer em questões internas vem assumindo uma postura quizilenta ao invés das necessárias pontes que pudessem permitir ao PAICV desempenhar com maior serenidade o seu papel de maior partido da oposição.

À oposição tem faltado no meu ponto de vista serenidade e rigor. A democracia caboverdeana é tão participada e legítima quanto as melhores democracias, pelo que há “lições” consabidas em matéria da promoção da estabilidade política . Os rankings afirmam que somos uma democracia consolidada. E somo-lo de facto. Por isso, só devido a muita imaturidade política da actual direcção do PAICV é que não se percebe que o caminho para se regressar ao poder não pode ser o da crítica vã, que judicializa a política, que critica e manda calar deputados e que grita sem consequências maldizendo quase tudo o que mexe.

O PAICV pode e deve dar um contributo relevante para a consolidação da nossa democracia, e este país precisa de um PAICV forte e que ajude a equacionar os problemas e apresentar alternativas, pois ser oposição é também ser capaz de construir uma narrativa positiva sobre o País com ideias alternativas. Só que infelizmente aos olhos da sociedade, a actual presidente do PAICV é praticamente uma força de bloqueio e não mais que isso, recusando constantemente atitudes construtivas, pelo que nunca conseguirá mostrar à sociedade estar preparada para levar o PAICV à reconquista do poder.

A importância do PAICV como oposição

Hoje, em pleno ano de 2019, se quiséssemos fazer um balanço, contraditoriamente, teríamos de dizer que aquilo que foram os compromissos assumidos em Congresso pela presidente do PAICV, nenhum deles foi alcançado. A coesão interna continua a ser uma miragem e estão aí sucessivos actos para o provar: processos disciplinares a deputados, interferências grosseiras nas eleições internas, (o paradigmático caso de Santiago Sul que culminou com o afastamento de Nelson Centeio), o afastamento de vozes incômodas, a gestão desregrada do grupo parlamentar, e mais recentemente a eleição para a JPAI-Praia, são apenas alguns maus exemplos que protelam a mais do que necessária coesão interna.

O próprio processo que envolveu a votação na generalidade da lei da regionalização, pôs a descoberto a preocupação desta actual direcção em promover publicamente o linchamento moral de alguns deputados que não se abstiveram ou que se ausentaram durante a apresentação do diploma sobre a Regionalização. Os processos disciplinares instruídos com este propósito tiveram um respaldo grande na sociedade caboverdeana, que entendeu o acto como antidemocrático porque destoou da Constituição e das demais leis da República.

Ignorando todo um passado de um partido histórico esta liderança do PAICV tem adoptado uma postura dirigista e uma estratégia de quase omnipresença em todas as esferas do partido, contaminando decisões de estruturas intermédias, sem permitir ao partido e seus militantes espaços de descompressão e de exercício livre de opinião.

A tática da vitimização e das supostas guerras internas vai-lhe permitindo quase que uma re-legitimação permanente junto dos militantes, ao mesmo tempo que a liberdade é dramatizada para poder acenar com processos disciplinares em relação àqueles que pensam pela própria cabeça.

E em boa verdade aquilo que devia ser entendido como vitalidade democrática nos partidos modernos, tende a ser substituído pelo culto de personalidade numa lógica dirigista que não pode ser aturada nos tempos modernos que correm.

A necessidade de uma liderança esclarecida e congregadora

Todo e qualquer partido, acho, está sob um processo de adaptação e ajustamento às variáveis sociais e políticas que emergem permanentemente na sociedade. 

No nosso caso, onde o processo democrático estrutural vem acontecendo e se consolidando nos últimos anos, onde as dinâmicas sócio-politicas estão em ebulição permanente, esta necessidade de adaptação é quase uma questão de sobrevivência política dos Partidos. Pelo que, o que se exige nestes novos tempos são lideranças esclarecidas que, respeitando os princípios dos Partidos, são igualmente capazes de os gerir em diálogo permanente, quer entre os seus próprios membros, quer entre estes e a sociedade no geral. Como dizia Churchill, há gente que muda de partido por causa dos princípios e gente que muda de princípios por causa do partido. Quando se olha para este PAICV interpelo-me se esta liderança, pelas atitudes e práticas que vem tendo, acredita ser este PAICV o partido depositário dos princípios defendidos por Cabral, onde a generosidade, o respeito e a camaradagem sempre se revelaram aspectos importantes.  

Muitas vezes fica-se com a sensação de que esta direcção tem uma agenda própria que não coincide de todo com a agenda global do PAICV, e vem tentando a todo o custo impor esta mesma agenda ao colectivo daquele partido, mas sem sucesso.

Contudo, por mais que custe à actual direcção do PAICV, é tempo de arrepiar caminho caso o partido pretenda disputar as próximas eleições com dignidade e combatividade politica.

A gestão do Partido tem de obrigatoriamente mudar, tem de ser menos ansiosa e menos inconsequente, e olhar para o País com mais generosidade, abertura e responsabilidade, diferente desta gestão actual do bota abaixo em que o PAICV parece estar contra tudo e contra todos. Se de algum exemplo necessitássemos, as declarações de JHA em relação à questão do Liceu da Várzea aí estão para provar o desnorte, a insensatez e a falta de sentido de estado de uma líder. O que António Monteiro da UCID diz Janira não pode repetir, pela simples razão de que o PAICV é um partido do arco do poder, e isso basta!!

O Partido precisa de estar em condições de assumir plenamente as suas responsabilidades de importante protagonista da história de Cabo Verde e isso só poderá ser feito de outra maneira, com outra ética, com outra grandeza e, provavelmente … com outra liderança.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019. 

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